terça-feira, 29 de outubro de 2002

A independência dos deputados

Uma questão que tem sido tratada como marginal nos debates sobre a reforma do sistema político é a da independência dos deputados.

De um modo geral, serem os deputados politicamente independentes significa que não respondem perante ninguém, quanto às opções por si defendidas e aos votos expressos no Parlamento, a não ser perante os seus eleitores. Mas será de facto assim? Uma análise mais cuidada permite verificar que não. Além de responderem politicamente perante o eleitorado, todos os deputados respondem também perante o seu partido, que deles espera nada menos que cinco coisas: uma certa propensão ideológica, fidelidade aos dirigentes nacionais, acatamento das orientações dadas pelo partido, solidariedade institucional de tipo sectário e disciplina de voto. É a observância destes requisitos, esperada no futuro e, se possível, comprovada no passado, que determinará, mais do que a sua competência técnica ou política, a respectiva inclusão nas próximas listas eleitorais a submeter ao sufrágio.

É precisamente aí que reside o drama: os eleitos não são o resultado puro de um escrutínio. Antes de se submeterem a um processo de votação externo, que decidirá se passam efectivamente a ser membros do Parlamento, os futuros deputados são sujeitos a um processo interno de designação, nas fileiras do seu próprio partido, que determina se integrarão ou não as listas de candidatos. Como esta designação não depende de eleições internas, mas de uma escolha arbitrária confiada estatutariamente ao líder do partido ou ao seu directório nacional, a possibilidade futura de eleição fica de facto condicionada, ainda numa fase prévia, a uma espécie de declaração tácita de renúncia à sua própria independência política. É essa a actual natureza das coisas.

De facto, o deputado não é entre nós, assim como noutros sistemas políticos, considerado um mero representante de si próprio, eleito em função do mérito pessoal e da capacidade que lhe são reconhecidos, nem tão-pouco um simples representante do povo, por este eleito para dar voz aos seus anseios e aspirações (seja qual for a fracção do povo que se sinta nele representada); é mais exactamente um representante do seu partido, ética e estatutariamente submetido a uma direcção política – nem sempre por via directa, o que poderia ser mais chocante, mas através da chefia da sua bancada parlamentar – e compelido a uma actuação de facto que é supervisionada, nas suas componentes ideológica e de exercício do voto, pelos órgãos dirigentes do partido e respectivas ramificações. Na prática, o deputado torna-se independente de quem o elegeu e dependente de quem o pode voltar a designar como candidato.

Qual é o mal disso? Reside precisamente no pormenor não desprezível de os dirigentes nacionais que o designaram serem em princípio os mesmos que, com grande probabilidade e em grande percentagem, se tornarão membros do Governo, no caso de o seu partido sair vencedor das eleições. Ora como é suposto o Parlamento exercer o controle e fiscalização do Governo, de acordo com o princípio da separação dos poderes, mas a maioria parlamentar está refém das orientações políticas da direcção nacional do partido que vence as eleições e forma o próprio Governo, fica assim criada uma contradição insanável. Pior: invertem-se os termos e é o Governo que fiscaliza o Parlamento, já que o chefe do poder executivo controla de facto os votos da maioria dos deputados na assembleia legislativa e está em posição de exercer chantagem sobre a futura carreira política de muitos ou de cada um deles. Eis o cenário ideal para os abusos da acção governativa.

Se queremos um Parlamento que realmente controle e fiscalize o Governo, os deputados deverão ser politicamente independentes. Se preferirmos um Parlamento que sistematicamente dê cobertura aos erros e abusos do Governo, então podemos deixar as coisas como estão. Os deputados continuarão a votar alinhados com o seu chefe de bancada e este com o presidente do partido, e nomeadamente os da maioria parlamentar votarão alinhados com o Governo. Assim, este faz o que quer, desde que a lei permita; se a lei não permite, o Governo manda recado à maioria parlamentar (um recado que é uma ordem implícita, entenda-se) para que mude a lei a seu contento. O principal contratempo que pode surgir é a alteração da lei exigir uma maioria qualificada e o Governo não dispor dela, sendo forçado a negociar com a oposição. Mas isso é a excepção e não a regra.