sexta-feira, 15 de novembro de 2002

A questão do cheque-ensino

Está de novo em voga a questão da liberdade de ensinar e de aprender, e entende-se por isto pelo menos duas coisas distintas: o Estado deve renunciar ao seu quase monopólio na educação, deixando que floresça uma nova indústria privada capaz de competir vantajosamente com ele no tocante a qualidade e inovação; e deve devolver aos pais, segundo critérios de capitação e de forma igualitária, o dinheiro dos impostos destinado à educação pública, sempre que aqueles optem por colocar os filhos em escolas privadas, o que equivale tão-somente a reembolsar o custo de um serviço público que afinal não é prestado.

Teoricamente, a questão é muito simples: o Estado dispor-se-ia a entregar um cheque-ensino (“voucher”) a cada encarregado de educação por cada um dos seus educandos, e ficaria assim resolvido o problema económico da liberdade de escolha e, juntamente com ele e por acréscimo, o da qualidade, já que esta resultaria espontaneamente da própria concorrência entre as escolas, ciosas de captar alunos e recursos.

Isto é o que se passaria no melhor dos mundos possíveis. Vejamos agora o que é previsível que se passe no admirável mundo real.

A grande ofensiva em prol da liberdade de ensino vem sobretudo de organizações confessionais que pretendem ver integrados na educação dos jovens os valores morais e religiosos que professam. Se o movimento ganhar força, outras se lhe seguirão. Isso não traz nenhum mal ao mundo, bem pelo contrário, pois tudo parece preferível à incapacidade manifesta da educação pública para inculcar valores de qualquer espécie, atolada que está num laicismo exagerado e num relativismo paralisante. Quando a imparcialidade (apenas aparente, no fundo) é levada ao extremo de todos os valores e tendências culturais serem colocados ao mesmo nível, por mais contraditórios e desnivelados que sejam em termos civilizacionais, esquecendo por completo as raízes culturais do país e um certo grau de disciplina pessoal e cívica que o bom senso e o desenvolvimento exigem, daí só pode resultar a total ausência de valores e a quebra abrupta das tradições (que, aos olhos de muitos “progressistas”, todas parecem agora ser um mal em si mesmas e um verdadeiro impedimento à liberdade).

Porém, do outro lado também um perigo espreita. As escolas de inspiração confessional terão de ser obrigadas pela lei a respeitar o mesmo grau de liberdade e tolerância religiosas de que a educação pública tem dado provas. Onde quer que o ensino privado assegure ou substitua a função educativa do Estado, não pode haver imposição de cultos ou acessos condicionados pela opção religiosa, pois é irrealista pensar que todo o território possa ser coberto homogeneamente por uma dupla oferta, com características múltiplas. Exercer legitimamente uma influência moral e religiosa não pode significar o mesmo que impô-la facciosamente, pelo que, mesmo nas escolas de inspiração confessional, a prática dos cultos e a frequência das disciplinas religiosas deverá ser obrigatoriamente facultativa, sujeita à livre decisão de alunos e pais, e não poderão as matérias consideradas científicas ser pervertidas ou obstruídas pela interferência abusiva das crenças, criando desigualdades pedagógicas graves que iriam condicionar o futuro académico dos alunos. A julgar pelos exemplos lamentáveis que nos chegam do estrangeiro, mesmo de países avançados, esse é um perigo real. E havendo as mais diversas tendências religiosas, umas nativas, outras trazidas pela imigração, umas já com uma forte tradição de tolerância, outras ainda mal percebendo o que isso é, seria um erro potencialmente muito grave negligenciar os efeitos futuros no tecido social de quaisquer fundamentalismos consentidos agora.

Outro aspecto, talvez mais melindroso, tem a ver com os custos. Algo de que os defensores dos “vouchers” ainda não se aperceberam, e que constitui uma das maiores dificuldades que terão de contornar, é que este sistema aumenta inegavelmente o custo per capita da educação. Como não é previsível que se possam encerrar escolas na exacta proporção do êxodo que se verificasse para o ensino privado (pois que esse êxodo não seria concentrado, mas disperso), as escolas públicas perderiam importantes economias de escala e os encargos educativos subiriam vertiginosamente (não em termos absolutos, mas em custos unitários), tendo apenas por limite a estratosfera – o que por sua vez implicaria aumentar cada vez mais o valor dos “vouchers”, num círculo vicioso.

É preciso ter em consideração que a maior parte dos custos das escolas públicas são muito pouco elásticos. Há uma quantidade considerável de despesas que variam pouco, mesmo quando o número de alunos varia muito; mas em contrapartida, verificando-se neste um decréscimo acentuado, haverá muito menos dinheiro para pagá-las – a não ser que o orçamento do Estado resolva engordar bastante. Ora isto é dificilmente sustentável numa época de combate ao despesismo estatal.

Finalmente, a questão da qualidade. Não há dúvida de que a concorrência entre escolas só pode ser benéfica, analogamente ao que sucederia em qualquer outra fatia de mercado, desde que sejam fixados padrões mínimos de transmissão de conhecimentos. Mas não esperemos milagres. Sobretudo, não podemos esquecer que os bons professores e os bons directores são um recurso limitado.

Convém evitar toda a espécie de sofismas. O ensino privado não é uma solução segura para o problema da qualidade, só pelo simples facto de ser privado. Já tivemos a prova disso. Infelizmente, terá de ser sempre o Estado, directa ou delegadamente, a fixar e a garantir padrões mínimos para a educação dos jovens – a começar, muito desejavelmente, pela que ele próprio lhes ministra. E desde que sejam asseguradas qualidade e flexibilidade, não é muito importante para os pais donde elas provêm. Mas se não houver salvaguardas vindas do Estado central e das autarquias, a educação privada será mais propensa a assegurar uma proliferação da diversidade do que uma proliferação da qualidade. Ora é óbvio que uma não interessa muito sem a outra.

Como resolver então o problema? Dado que o método dos “vouchers” parece unicamente adequado a sociedades afluentes, e portanto não utilizável em muito larga escala, há que dar outras formas de oportunidade ao ensino privado, se não como alternativa, pelo menos como complemento. Uma das soluções poderia ser a de o Estado entregar à iniciativa privada as escolas que notoriamente funcionam mal. Vários métodos são possíveis para a transferência de poderes e competências: privatizações por concurso público, concessões, contratos de gestão privada, et cetera.

Outra solução ousada consistiria em ter a coragem política de celebrar verdadeiros contratos de autonomia com os corpos docentes das escolas, indo bastante além daquilo que a legislação já actualmente prevê e nunca foi concretizado pelos governos, e permitir que os próprios professores possam ser também beneficiários financeiros das melhorias de gestão e de qualidade que consigam implantar. No fim de contas, quem é suposto perceber mais de educação do que eles? Os empresários, os gestores profissionais, os burocratas, os autarcas eleitos? Os ministros que temos tido e outros de igual estaleca que venhamos a ter? Pode ser que os professores, devido a certas tendências na moda, constituam afinal uma parte do problema – mas não há nenhuma solução sem eles, e nenhuma boa por cima deles.