domingo, 7 de julho de 2002

A reforma do sistema político (I)

Há quem diga que o principal obstáculo ao progresso são os maus governos. A acusação não é inteiramente merecida, porque não vai à raiz das coisas: os maus governos resultam muitas vezes, como consequência previsível, dos maus sistemas políticos.

O assunto está na ordem do dia, por moda e por necessidade. Mas as soluções mais vulgarmente apontadas, também em voga por razões que pouco têm a ver com um puro exercício de lucidez, poderão não resolver grande coisa, pois contemplam sobretudo aspectos secundários dos problemas.

O financiamento exclusivamente público dos partidos políticos, por exemplo, é em teoria uma ideia defensável, já que parece evitar perversões e dependências, mas a verdade é que ninguém ainda conseguiu explicar bem como é que essa medida, só por si, irá acabar com as óbvias ligações de muitos políticos aos interesses económicos, assumindo directa ou veladamente a representação destes. Poderá perguntar-se também onde é que falha aí a ética, quando a representação de tais interesses se faz por racionalidade e convicção e não por puro mercenarismo... No fim de contas, se a economia representa, de uma maneira ou de outra, mais de noventa por cento da política, como se pode pretender que andem divorciadas? E querendo levar-se por diante um tal purismo, acaso já alguém inventou um método seguro para acabar com os donativos e patrocínios secretos? Esta será, por certo, mais uma daquelas leis exemplares que ninguém conseguirá fazer cumprir, com elevado potencial para promover virtudes públicas e vícios privados...

Como os excessos de zelo são indesejáveis e contraproducentes, e porque não convém ir além do que é fiscalizável, proibir o financiamento dos partidos políticos por empresas é suficiente para salvaguardar a moralidade aparente do sistema e tem a vantagem de não sobrecarregar em vão o orçamento do Estado.

Quanto às leis eleitorais, não há agora orador de serviço que não fale em aproximar os eleitores dos eleitos, sugerindo mais uma vez a estafada ideia da criação de círculos uninominais. É um dos estereótipos obrigatórios do momento. Correndo embora o risco de ser desmancha-prazeres, deixem-me assinalar que o problema está triplamente mal posto.

Em primeiro lugar, são os eleitos que precisam de aproximar-se dos eleitores, e não o inverso, colocando-se aqueles mais a par das realidades práticas deste mundo e não deixando que as cortinas dos gabinetes os impeçam de manter o imprescindível contacto com elas. Mas isso nada tem a ver com o tamanho dos círculos, é simplesmente uma questão de os eleitos se interessarem verdadeiramente por conhecer e resolver os problemas da população que os elege. Direi mesmo que é uma pura questão de mentalidade, um modo de ocupar cargos e exercer funções, uma manifestação de um certo estado de espírito que se chama “serviço público” e que se resume afinal a justificar plenamente o próprio facto da eleição. Por outras palavras: fazer bem aquilo que é suposto fazer-se no lugar que se foi ocupar, em vez de reduzir o encargo à sua expressão mínima e preencher o espaço restante do mandato com uma habilidosa gestão da própria carreira política e dos seus proventos financeiros.

Em segundo lugar, e em verdadeiro rigor, os círculos uninominais já existem, pois outra coisa não significa a eleição dos presidentes de câmara em cada um dos concelhos do país. A principal diferença – mas não muito importante – é que o eleito leva atrás de si alguns lugares-tenentes e ordenanças, para o melhor e para o pior (mais usualmente, apenas para o melhor...). É a esse eleito que compete dar satisfação às necessidades locais da população e, naquilo que transcende os seus poderes, dar-lhes voz e expressão noutras instâncias, representando o seu município perante os órgãos políticos e administrativos do país. Não há necessidade de mais um deputado para o fazer, nem tão-pouco se vislumbra a conveniência disso. Adoptar em eleições legislativas uma metodologia eleitoral apenas adequada para eleições municipais, com a agravante de nem sequer ser possível uma concordância territorial entre os respectivos círculos, só pode dar asneira. Mas um pouco de bom senso agora evitar-nos-ia perder vinte e tal anos para chegar a essa conclusão.

De facto, a opção por círculos uninominais é tão artificial que as suas consequências são facilmente previsíveis: duplicação de representações locais; rivalidades indecorosas entre deputados e autarcas; perda do sentido nacional dos mandatos; maior intromissão de lobbies locais no trabalho parlamentar; preterição de candidatos de mérito em círculos disputados por duas ou mais figuras de primeira linha; desvios perniciosos e absurdos ao princípio da representação proporcional; a distância entre eleitos e eleitores não desaparecerá, porque é de uma mudança de comportamentos políticos e não de métodos eleitorais que isso depende; e o próprio insucesso da reforma acentuará ainda mais o descrédito da classe política.

Como é aliás possível que um método eleitoral que, historicamente falando, não passa de um arcaísmo anglo-saxónico, ande agora nas bocas do mundo como uma alternativa “moderna”?

Em terceiro lugar, e isto é que é essencial, salvo no caso óbvio das assembleias parlamentares regionais, um deputado não representa um círculo eleitoral restrito, ele representa todo o país. O seu cargo é de âmbito nacional, o seu mandato é nacional e é de problemas nacionais que ele tem de ocupar-se (o que não exclui, obviamente, que se preocupe também com o impacto nacional de problemas sectoriais ou regionais). A sua missão constitucional é zelar pelos interesses, pelas necessidades, pelo progresso de Portugal inteiro, no âmbito de um órgão com funções próprias, que é o Parlamento. Para promover prioritariamente os interesses e necessidades meramente locais existem outros órgãos e outros mandatários: os municípios e os respectivos autarcas. Estes, como é evidente, querem ter voz própria, não querem mandar recados a ninguém através de um interposto deputado. (Os autarcas que pensem bem nisto: os círculos uninominais podem vir a provocar, com o andar do tempo, uma erosão do poder autárquico e da sua legitimidade, dada a sobreposição e a emulação entre representações localizadas.)

Já a questão do regime de incompatibilidades dos titulares dos cargos políticos requer verdadeira coragem e urgente inovação. Sobram-nos os exemplos de miscelânea de cargos, de promiscuidade de funções, de alternância casuística de posições, de habilidosas danças de titularidades e suplências. Como, felizmente, também sobra população neste país, a ninguém deveria ser permitido ocupar, em simultâneo ou em alternância arbitrária, mais do que um cargo político. Ou seja: não deve ser constitucionalmente autorizada a titularidade de um cargo sem a prévia e definitiva renúncia a todos os outros. E não me acodem à memória quaisquer excepções que mereçam ser consideradas.

Passando agora à apregoada diminuição do número de deputados, não parece que seja panaceia para coisa nenhuma. O seu número já foi diminuído uma vez e ninguém viu o benefício disso. Diminuição de despesas do Parlamento? É ilusório: os avultados salários de deputados pagos a menos são facilmente compensados com o aumento de assessorias e de despesas administrativas. E embora possa vir a haver no futuro ainda menos deputados, creio que o seu número não pode diminuir muito mais, sob pena de pôr em risco o desejável funcionamento das comissões parlamentares, particularmente no tão desprezado capítulo da fiscalização sectorial do governo. Nas circunstâncias actuais, duzentos deputados é um número razoável e talvez o mínimo compatível com a eficácia do Parlamento. O facto de sermos um país relativamente pequeno não torna menor o número das tarefas que incumbem aos deputados; de facto, as missões e as exigências são quase as mesmas que para um país grande.

No que respeita à instauração de um sistema bicameral, composto por uma Câmara Baixa (Parlamento) e por uma Câmara Alta (Senado), cabendo a este uma representação não proporcional do território, por regiões ou por distritos, parece-me ser esta uma brilhante elucubração de estudiosos de ciência política com pouco faro para as realidades. Por uma lado, o tamanho exíguo do país não justifica este artifício, dispendioso e desnecessário; por outro, não teria lógica e coerência implantar tal sistema num país que rejeitou formalmente a regionalização e que vê nos distritos meras divisões administrativas destinadas à extinção e que não têm qualquer correspondência nítida com especificidades étnicas, económicas e culturais que as distingam claramente e sem controvérsias. Ou seja: uma representação territorial fragmentada de Portugal seria tão artificial como o é a tentativa de dividir o território em áreas politicamente diferenciadas. Este país tem sido e quer continuar a ser uno e unido. Deixemo-lo continuar assim e não criemos artificialmente o germe dos problemas com que se defrontam as nações que não tiveram outro remédio senão reconhecer e institucionalizar a sua fragmentação regional. Temos a sorte de ser uma população praticamente sem linhas de fractura perceptíveis. Seria uma estupidez crassa ter a veleidade de criá-las por acto legislativo e negligenciar o risco de futuras rivalidades e antagonismos. O que a História uniu não deve a fantasia separar.