quinta-feira, 23 de dezembro de 2004

A obsessão do défice

São espantosos os resultados a que o fervor ideológico pode conduzir. Na América, a nova ortodoxia religiosa pretende fazer tábua rasa de quase dois séculos de avanço científico e regressar aos dogmas do criacionismo, suprimindo dos manuais escolares quaisquer referências a Darwin e à teoria evolucionista. Na Europa, um vento de ortodoxia sopra também nas teorias financeiras em voga, vituperando qualquer défice orçamental como um pecado em si mesmo e fazendo de conta que Keynes nunca existiu.

O que não deixa de ser curioso. Durante décadas, ensinou-se nas universidades, e de um modo geral em qualquer curso roçando ao de leve a economia política, que o recurso ao défice orçamental era um instrumento possível e útil no combate à recessão ou à estagnação económicas. Contra-indicado em períodos de forte e espontâneo crescimento económico ou no cenário de significativas tensões inflacionistas, era uma terapêutica recomendada para sair de depressões ou para enfrentar ameaças delas. É certo que entretanto o remédio ganhou má fama pelos exageros do seu uso e pelo modo indiscriminado como foi administrado; mas o seu princípio activo não deixou de ser eficaz. Seja como for, conjugam-se agora inúmeras forças para bani-lo do receituário.

Hoje em dia, em certos quadrantes do pensamento económico, Keynes passou a ser tão proscrito como Darwin na biologia. De um momento para o outro, segundo parece, alguém se lembrou de estatuir que qualquer destes génios só disse asneira e que as suas teorias estão desajustadas aos factos, embora não desmentidas por eles. E a partir daí, com zelo escolástico e ecoando fortemente na imprensa, não mais deixaram de se entoar loas ao equilíbrio orçamental nas contas públicas, como se essa fosse a verdadeira e única panaceia universal.

Mesmo perante as evidências, muitos economistas encartados se recusam a reconhecer que retracções bruscas na despesa pública em clima de depressão económica só podem contribuir para agravá-la. Não adianta argumentar. O célebre Pacto de Estabilidade e Crescimento que os líderes europeus inventaram ainda em período de vacas gordas, sem preverem que ele podia ser absolutamente inadequado e contraproducente no período de vacas magras que lhe iria suceder, continua a ser a cartilha de todas as virtudes. E olham-se como consequências do défice orçamental todos os efeitos perversos que resultam do próprio combate ao défice. Este atingiu tal paranóia obsessiva e um grau tal de dogmatismo que a ele se sacrificam o emprego, o crescimento, a saúde das empresas e o progresso dos particulares.

Resta aguardar por outra vaga de ortodoxia que um dia nos explique, preto no branco e com o mesmo tom de convicção, que tudo isto não passou de um enorme disparate. Esse dia virá, não sei é quando. Mas seria bom que fosse depressa.

domingo, 19 de dezembro de 2004

Duas tradições políticas: utopismo e reformismo

Podem descortinar-se duas tradições distintas na história política e doutrinária do Ocidente, a que por simplicidade (e simplificação grosseira) chamarei utopismo e reformismo.

O utopismo, apesar das suas múltiplas variedades e ramificações, radica na ideia matriz de que é possível conceber intelectualmente e implantar socialmente uma qualquer forma de comunidade perfeita, baseada em leis e instituições racionais. Uma tal racionalidade intrínseca retiraria substância e fundamento a quaisquer conflitos civis, quer entre os próprios cidadãos, quer entre estes e as instituições. A resultante necessária só poderiam ser a harmonia social e um estado de paz geral, já que a racionalidade pressupõe a justiça, o respeito dos direitos individuais e a ausência de corrupção no exercício de um poder legítimo.

O reformismo parte de pressupostos diferentes: a racionalidade humana é limitada e, por esta e por diversas outras razões, conflituante; aos princípios e aos valores, os indivíduos frequentemente sobrepõem os seus egoísmos e interesses pessoais; desta divergência de premissas e objectivos resulta um estado crónico de conflito, latente ou manifesto, que as instituições podem lograr amortecer ou civilizar, mas não suprimir; e os própios poderes de facto na sociedade são facilmente permeáveis à corrupção e aos excessos de ambição, pelo que raramente se pode esperar deles uma actuação à altura dos cânones doutrinários.

Estas duas visões têm importantes consequências teóricas e práticas. O que não é de admirar, pois a cada uma delas subjaz uma diferente concepção do homem.

O utopismo apoia-se na noção de um homo rationalis, mas não tem geralmente a pretensão de que cada exemplar da espécie corresponda integralmente a este ideal. São admitidos diferentes graus de racionalidade, conforme a diversificação que é comum na natureza, e por isso caberá naturalmente aos mais dotados inteligir ou estabelecer os própios padrões do pensamento e do comportamento racionais, assim como delinear as instituições desejáveis e exercer o poder que lhes é inerente. Ora isto conduz em linha recta à ideia de uma aristocracia necessária, e ainda por cima de uma aristocracia de privilégio, visto que o seu direito à pilotagem da sociedade deriva de uma inquestionada superioridade intelectual.

Como se admite que a racionalidade pode ter diferentes graus, base de uma indispensável estratificação social, mas não manifestações divergentes entre si, fermento de facções e conflitualidades, disso se extrai que não há razão para uma diversificação das fontes do poder. Se a razão é una, o poder deve ser uno também. E como, em princípio, nada de válido se pode opor à razão, não sobra fundamento para a instituição de contrapoderes. Por tudo isto somado, a tendência dos utopistas sempre foi para a concentração autoritária do poder.

É fácil de perceber que a este poder concentrado está associada uma presunção de ciência e infalibilidade para aqueles que exercem o poder; e qualquer oposição que por absurdo pudesse despontar teria ab origine o anátema do desvario ou do obscurantismo, justificando a sua posterior submissão pela persuasão ou, se necessário, pela repressão, visto que se pode considerar que é também um dever da razão erradicar o obscurantismo, seja qual for a forma por que se manifeste.

Racionalidade, infalibilidade, concentração, jurisdição sobre os actos e as consciências, legitimidade na supressão dos antagonismos: eis aqui reunidos os principais ingredientes de um poder totalitário. Este surge quase como a consequência natural das radicais exigências da razão. Dada a infelicidade de as capacidades racionais não estarem igualmente repartidas entre os indivíduos (caso contrário, a sociedade ideal seria de geração espontânea), deve a razão impor-se contra todas as resistências, contra todos os focos de irracionalidade, e só pode fazê-lo se estiver investida de uma autoridade total. Uma autoridade mitigada não poderia impedir a subsistência ou a explosão de variadas formas de irracionalidade e imperfeição para que tendem os indivíduos comuns. Como corolário, a sociedade perfeita não pode brotar senão de um poder forte, autoritário, abrangente, ubíquo, exercido pela clarividência de uma elite dotada. E tão importante como isso, não pode ser uma sociedade aberta a influências estranhas, pertubadoras, imprevistas, que ponham em causa o seu delicado equilíbrio. Deve ser, pelo contrário, uma sociedade fechada à novidade e à heterogeneidade, uma sociedade privada da liberdade de mudar e até da própria liberdade de conhecer o que lhe pudesse originar o desejo de mudar, visto que a única mudança a partir do racional só pode ser a degenerescência sob qualquer forma. Utopismo e liberdade são portanto incompatíveis.

O reformismo, pelo contrário, apoia-se na noção do homo pragmaticus, que procura difíceis e fortuitas convergências entre os princípios e os interesses, entre a racionalidade e os egoísmos, e que engendra múltiplas concepções da acção desejável e das instituições adequadas para harmonizar os conflitos daí resultantes. Só que tal harmonia já não é procurada na perfeição racional, na pureza dos ideais e dos valores, mas nas soluções de compromisso capazes de gerar equilíbrios duradouros. A fasquia não é colocada no ideal, mas na linha média entre o desejável e o possível.

Não existindo um só padrão de racionalidade e aceitando que a história deu sobejos exemplos de que as diversas racionalizações possíveis da realidade nem sempre se conformam com as lições da experiência, a visão reformista abre-se à diversidade das perspectivas, dos valores, das soluções. Aceita a diversidade como um fenómeno natural e acredita que ele seja um factor de aprendizagem e de progresso.

Ora a existência desta diversidade amplamente aceite postula que o confronto de ideias e de tendências tenha o seu lugar, a sua utilidade e a sua justificação. A heterogeneidade é criativa, através da crítica recíproca ou da simbiose, enquanto que a homogeneidade paralisa. Mas isso implica liberdade e tolerância, não a imposição de um padrão uniforme de pensamento e de actuação.

Também a aceitação lúcida das naturais limitações e perversões do comportamento individual tem as suas consequências. A existir uma aristocracia, tem de ser fundada no mérito e não no privilégio, visto que em ninguém se presume a clarividência e esta, mesmo quando exista, é indemonstrável. E às limitações das elites dirigentes deve corresponder uma saudável limitação do poder, em termos absolutos e relativos. Isto é: devem existir poderes, e não apenas o Poder -- poderes separados, mas interdependentes; restritos, mas contrabalançando-se mutuamente; somando à delimitação pela lei da sua esfera de acção a acção fiscalizadora de contrapoderes adequados para prevenir ou sancionar abusos.

O reformismo compatibiliza assim a ideia de uma liberdade necessária com a da própria limitação do poder. A trajectória resultante não será a da sociedade ideal, mas é a da sociedade composta pela simbiose possível dos seus elementos heterogéneos, cuja diversidade assegura um progresso talvez mais lento do que a razão pode aspirar, mas mais seguro, tanto quanto a realidade prática pode suportar em quantidade e em ritmo.

terça-feira, 14 de dezembro de 2004

Os políticos e os «média»

A relação entre os políticos e os media pode ser sujeita a duas fortes críticas. Uma delas tem sido frequentemente feita, a outra parece estar ainda à espera de vez.

A crítica conhecida aponta para a submersão da política no mundo do espectáculo.
Diz-se ─ e é verdade ─ que as principais qualidades políticas passaram a ser as qualidades mediáticas, pelo que contam cada vez mais a imagem e o estilo e cada vez menos as ideias, as causas e os projectos.

A reflexão com horizontes passou a ser substituída pela vivência do momento. E as circunstâncias tornaram-se um mero cenário onde a actuação visível dos políticos coloca a lógica do artifício acima da lógica das convicções.

Se o que prevalece é a imagem, isso implica que a distinção crucial passou a ser entre as pessoas mediáticas e as não mediáticas. Ora o mediatismo jornalístico tende a colocar o concreto acima do abstracto, o particular acima do geral, o imediato acima das visões a prazo, a superficialidade acima da estratégia. É o terreno de cultura adequado para os que perseguem objectivos simples e demagógicos, mas não para os que defendem valores e causas consistentes. É o paraíso dos que se movimentam com à‑vontade em trajectórias sinuosas, ao sabor dos ventos e brisas da opinião pública, mas o purgatório dos que propõem rumos firmes.

Estas tendências do gosto mediático influenciam certamente o grau de sucesso ou insucesso dos políticos encartados. Quem tem opiniões sem brilho é facilmente suplantado por quem brilha sem opiniões. Quem consegue juntar ambas as coisas, mesmo que as opiniões sejam alheias e em formato pré-cozinhado por um staff de assessores, candidata-se naturalmente à primazia. São estas as regras do jogo. Mas pouco importa que as opiniões despendidas sejam profundas ou superficiais, conhecedoras ou aventureiras, razoáveis ou delirantes, porque a maioria do público é sempre consideravelmente ignorante do que se discute (refiro-me a fundamentos, não a factos) e a comunicação social não as filtra pela qualidade, mas pelo alarido ou pela pretensa representatividade.

A segunda crítica à mediatização crescente da política não é certamente original, mas não logrou ainda adquirir mais do que um relevo secundário. Refiro-me ao modo como os media condicionam o acesso à ribalta, quer dos políticos e das organizações, quer das opiniões e das doutrinas.

A superabundância de informação dilui a importância das novas ideias, assim como a busca deliberada do sensacionalismo diminui a urgência das coisas essenciais. As questões decisivas onde se joga o nosso futuro colectivo são secundarizadas em relação ao que faz mexer as vendas e as audiências. E a grandiloquência barroca e repetitiva dos vultos conhecidos ofusca as opiniões inovadoras de quem apenas consegue mover-se nos obscuros bastidores da cena política. Não por acaso, as irrelevâncias e os simples deslizes das figuras públicas são mais avidamente perseguidos e granjeiam mais destaque do que as propostas mais substanciais das personalidades de segunda linha. Longe de contrariar esta tendência, os meios de comunicação social fomentam‑na.

Numa época em que os grandes debates já não se travam nas secções ou nos congressos partidários, reduzidos a meros palcos de movimentações de poder e de influências, nem nos hemiciclos parlamentares, convertidos em locais anódinos onde são oficiados os dogmas e as praxes das diversas liturgias ideológicas, restam os meios de comunicação social para confrontar o país com as várias perspectivas do seu destino.
Contudo, a televisão não é o meio mais adequado para o debate público de ideias, dada a tirania da imagem e a tentação dos protagonismos partidários, ambas somadas à habitual falta de disciplina cívica e argumentativa dos participantes. Resta a imprensa. Mas esta, e sobretudo nos jornais de referência, encontra-se em grande parte colonizada pelos jornalistas profissionais e por um escol de analistas e comentadores que adquiriram “direitos de coutada” e, mal ou bem, os exercem obrigando-se a ter opiniões próprias com uma periodicidade previamente estabelecida. Assim, o profissionalismo e o amadorismo por contrato substituem o pulsar espontâneo da sociedade. São eles que condicionam a nossa percepção daquilo que nos rodeia e que decidem o que e quem merece sair do anonimato.

Paradoxalmente, os media fazem não só o que se espera deles, mas também o seu contrário. Não se diga que se limitam a informar, porque tal é falso. Eles lutam subtilmente para impor hegemonias políticas, reescrevem a História, metamorfoseiam o quotidiano, tornam-se a própria memória social, decidem a importância dos factos e dos boatos, seleccionam as opiniões, fazem julgamentos públicos, invadem a privacidade, constroem as “verdades”, criam e manipulam estereótipos e estabelecem a seu bel‑prazer a hierarquia de interesse das coisas, assim como montam e desfazem acontecimentos.

Na arena política, isto significa que quem não consegue forçar a passagem e tornar-se uma figura mediática, independentemente dos seus méritos, não existe politicamente. E ponto final.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2004

A renovação da classe política

Há muita gente que ainda não compreendeu bem o problema. Ou melhor: acertou numa parte do diagnóstico, mas continua a não reparar na inconsistência das soluções propostas.

Que os partidos estão fechados sobre si próprios, que as suas elites estão mais ou menos reduzidas a um núcleo duro profissionalizado, que existem barreiras à entrada ou ascensão de novos protagonistas, isso tem sido dito repetidamente e corresponde à verdade. Necessariamente, tal situação conduz a um anquilosamento das estruturas partidárias e da sua capacidade de renovação política, não obstante a dança das lideranças e dos seus séquitos.

Mas supor que o problema se resolve com apelos cívicos é de uma enorme candura. Não basta pedir que os partidos se abram a políticos não profissionais, que tentem atrair um número maior de independentes ou que, para o preenchimento de lugares ou candidaturas, alarguem o seu recrutamento para fora do núcleo duro profissionalizado. A grande questão é que as oligarquias instaladas (ou já com esperanças de instalar-se) não estão interessadas nisso. Absolutamente nada.

A última coisa de que os políticos profissionais querem ouvir falar é de nova concorrência que venha disputar-lhes os lugares alcançados ou cobiçados. É por isso que os partidos não se abrem à sociedade civil, que não se esforçam por recrutar novos valores, que asfixiam as próprias tentativas de transformação interna. É também por isso que o debate político quase desapareceu do funcionamento partidário, sendo substituído por episódicas litanias de apoio à claque dirigente e às suas pretensões. A própria contestação interna é abafada sempre que possível e em regra considerada uma traição quando tornada pública ou alardeada do exterior.

Os partidos políticos são hoje hostes profissionais de assalto aos cargos públicos e o seu quadro permanente de oficiais já está preenchido. Novos recrutas só se pretendem para os lugares do fundo da hierarquia, desprendidos de ambições ou suficientemente pacientes para saberem aguardar a sua vez.

Fora dos partidos, consegue medrar alguma preocupação com a renovação da classe política; dentro deles, falar nisso é quase uma blasfémia, pelo menos quando soa aos ouvidos de quaisquer estruturas dirigentes. Há excepções, claro. Mas essas mantêm‑se discretas.

É pois ilusório pensar que algum dia irão chover convites sobre as pessoas competentes da sociedade civil ou que haverá a preocupação sistemática de as atrair. Na óptica dos dirigentes partidários, gente que pensa pela sua cabeça é uma ameaça. E que algum dia se estabeleça um qualquer sistema de cotas para políticos não profissionais, conforme já foi proposto, é francamente duvidoso. Se vier a acontecer, a sua expressão será tão limitada e inócua que facilmente nela se reconhecerá o contorno demagógico de uma mera operação de maquilhagem do enquistamento partidário.

O que falta nos partidos políticos é mais democracia interna. Ou seja: regras que melhorem a concorrência lá dentro. E sobretudo, acabar com as designações para candidaturas a cargos electivos e substituí-las pelo resultado de um sufrágio interno. Permitir que a ascensão de pessoas e ideias possa sempre resultar da discussão e do voto e não dependa de cooptação dos maiorais já instalados.

A lei deve interferir sem pejo na orgânica geral dos partidos e impor-lhes uma maior democraticidade interna, tão essencial à concorrência das ideias e dos projectos como à renovação das elites.

Estamos mal servidos de políticos, reconheça-se, porque também estamos mal servidos de democracia na esfera interna dos partidos.

segunda-feira, 29 de novembro de 2004

Combater a mediocridade

O mote foi dado: é necessário contribuir para que os políticos competentes afastem os incompetentes.

Porém, como consegui-lo? Não bastam apelos à ética cívica e ao patriotismo desinteressado, quando está em causa combater lóbis políticos influentes e bem entrincheirados. Ânimos voluntariosos podem até aparecer, mas algumas medidas legais são também indispensáveis.

Se a mediocridade reina na actividade política, isso deve-se a três causas principais: a falta de democraticidade interna dos partidos, a reduzida filtragem institucional das políticas incorrectas ou populistas e o reduzido atractivo remuneratório dos cargos políticos para as elites profissionais com carreiras consagradas.

No que respeita aos partidos, a lei tem pretendido regular restritivamente as suas condições de formação e de financiamento, com um zelo que chega a ser excessivo e quase fundamentalista, mas nos legisladores tem prevalecido o entendimento de que o Estado não deve imiscuir-se demasiado nas regras de funcionamenbto interno das organizações partidárias. Demasiado, de facto, não deve intrometer-se; não pode é abdicar de impor regras mínimas de democraticidade interna. Assim como é necessário assegurar a livre concorrência entre os partidos e as tendências que representam, é também necessário assegurar a livre concorrência, dentro dos partidos, às diversas facções e opiniões que neles se degladiam e lutam pelo poder interno. Em última análise, a democracia ao nível “macro” é um reflexo da democracia ao nível “micro”.

Pouca gente parece notar que, devido à falta de regras legais adequadas, os partidos políticos se converteram em oligarquias fortemente burocratizadas que se preservam a si próprias, não obstante a competição renhida por chefias, cargos e privilégios. Discute-se a hierarquia dentro do bando dominante, mas este mantém os outros bandos à distância através de expedientes sórdidos. Criam-se barreiras deliberadas à entrada de novos valores individuais ou à emergência de novas tendências. Vicia-se e restringe-se com habilidades estatutárias ou com procedimentos indecorosos o livre e proveitoso confronto entre as personalidades e as facções.

A concorrência de ideias e tendências é tão fundamental no mercado político quanto a concorrência entre produtos e empresas no mercado económico. Mas enquanto neste se combate organizadamente, por meios institucionais, as restrições e os desvios à concorrência, assim como os abusos de posição dominante, no mercado político não se faz nada disso.

Dentro dos partidos, hoje em dia, as candidaturas para certos cargos externos (deputados, membros de assembleias municipais, autarcas) são escolhidas por designação das cúpulas dos vários níveis, não por sufrágio interno. Para eleger dirigentes concelhios ou distritais, chegam a fazer-se eleições sem qualquer período de debate prévio e sem divulgação completa e atempada do calendário eleitoral, para que as oposições internas não tenham oportunidade ou tempo de aprontar listas e preparar campanhas. Quando chega a haver um simulacro de debate, existem estratégias cuidadosamente montadas para abortá-lo. E quando alguém pretende tomar iniciativas, são-lhe negados os meios, tal como o acesso às instalações ou à lista de contactos dos outros filiados.

Mais do que oligarquias entrincheiradas, os partidos políticos converteram-se em discretos sovietes. Em muitas circunstâncias em que deveria acontecer o contrário, o poder já não emerge de baixo para cima, é distribuído de cima para baixo. As candidaturas a cargos externos são apenas um exemplo.

No que respeita à reduzida filtragem institucional das políticas públicas, existe uma generalizada falta de fiscalização e controlo: o Parlamento não fiscaliza o Governo, as assembleias municipais não fiscalizam os executivos camarários, os tribunais especializados não têm todas as competências e meios necessários para fiscalizar as contas públicas e as execuções orçamentais. As assembleias, sejam elas parlamentares ou autárquicas, a quem cabe doutrinária e constitucionalmente o encargo de fiscalizar políticas governativas e camarárias, vêem-se tolhidas pelas fidelidades partidárias impostas e pela pouca independência dos políticos eleitos pelo povo, mas designados pelos partidos (deveriam também, dentro destes, ser eleitos, e sempre por sufrágio directo). A par com a falta de democraticidade interna na selecção de candidatos, há o vício fundamental da disciplina de voto imposta depois aos eleitos. Ambos são vícios capitais. Ambos contribuem decisivamente para substituir a consciência cívica pelas lealdades partidárias, a independência crítica pela fidelidade às lideranças.

No que respeita a atrair à política activa as elites profissionais, há não só que desmantelar legalmente as barreiras à livre entrada de pessoas e à livre divulgação de ideias dentro dos partidos, que continuam a ser o cerne da democracia, mas também possibilitar que um elevado nível de competência, quando aplicado ao serviço público, não implique um grau excessivo de sacrifício privado. No fim de contas, administrar um país envolve muito mais responsabilidade do que administrar uma empresa, por mais tentacular que esta seja.

domingo, 14 de novembro de 2004

Israel e Palestina na UE

Foi o antigo ministro dos negócios estrangeiros israelita, Shimon Peres, um diplomata muito prestigiado e cujas opiniões costumam ser atentamente ouvidas em todos os quadrantes, quem primeiro defendeu abertamente a integração de Israel, de um futuro Estado palestiniano e da Jordânia na União Europeia, depois de terminado o “processo de paz” na região. Ele considerou mesmo que um convite de adesão constituiria um estímulo adicional para a pacificação, e defendeu essa teoria com base na experiência de Chipre, ilha dividida durante décadas entre turcos e gregos, que só começou a resolver o impasse diplomático em que se encontrava depois do arranque do seu processo de adesão à União. Neste caso particular, a experiência diplomática parece vir em auxílio da visão política para demonstrar que a inserção europeia de uma parte do Médio Oriente é algo mais que uma ideia peregrina.

Certamente, a adesão israelita já estaria há muito na ordem do dia se não existisse o conflito sangrento com os palestinianos. Enquanto existir, poucos se atrevem a colocar a questão, mesmo projectando-a no futuro. Os europeus, apesar de todo o seu empenho em apaziguar os árabes e o mundo muçulmano em geral, preferem no essencial assobiar para o lado e fazer de conta que a questão palestiniana não é um problema europeu; por esse facto, vão oferecendo os seus bons ofícios e alguns incentivos financeiros como quem simplesmente colabora na resolução de um problema externo. Provavelmente, deixará de o ser muito em breve. Se as partes chegarem a um armistício definitivo e se forem bem sucedidas na erradicação do terrorismo e da militância agressiva dos respectivos radicais, começarão a pensar mais seriamente no espaço político e económico em que lhes interessa inserir-se. E há até algumas razões para vaticinar que vários dos problemas da zona, posteriores à pacificação, só possam ter cabal resolução no cenário estável de uma integração europeia conjunta, especialmente no que respeita à livre circulação de pessoas, à gestão da água ou ao estatuto e administração de Jerusalém.

As afinidades europeias da cultura judaica não carecem de ser demonstradas. Pode ser um caso peculiar, mas não é um caso único. A Palestina partilha com Israel a localização de muitos das cidades e santuários que povoam a tradição bíblica (entre as quais sobressaem, além da própria Jerusalém, as de Belém, Hebron e Jericó). Também o actual território do reino jordano corresponde a antigas regiões bíblicas, mas o seu vínculo remoto à história cristã não é menos significativo. O país, depois de ter integrado os impérios grego e romano, fez parte do Reino Latino de Jerusalém, controlado pelos cruzados europeus, e foi um importante centro difusor da cristandade.

Não obstante o predomínio muçulmano de hoje em dois deles, todos estes países têm ligações ancestrais às próprias fontes da civilização ocidental. Todos eles passaram pela influência helenística e pelo poder imperial romano, antes de serem sujeitos à dominação de árabes e otomanos, e por décadas de administração inglesa até meados do século passado. As ligações históricas existem, apesar dos diversos contrastes religiosos. E hoje em dia, o fascínio da prosperidade material do Ocidente não é certamente inferior ao peso das tradições.

Agora que a morte de Yasser Arafat, o líder histórico de uma certa causa palestiniana, parece abrir as portas a uma fase completamente nova e mais pragmática para a resolução do conflito entre judeus e palestinianos, talvez fosse a altura certa para a União Europeia, ainda que de um modo informal, acenar aos três países da zona mais afectados pelo conflito (no caso da Jordânia, devido ao facto de ter acolhido milhões de refugiados) com a possibilidade a prazo de virem a integrar a Europa política.

A concretização deste projecto poderá levar uma ou duas gerações, tal como no caso previsível da Turquia. Talvez exija um cuidadoso faseamento, dado que o desenvolvimento relativo dos três países está longe de ser idêntico. Mas não se pode dizer que se trate de um esforço megalómano, dada a exiguidade das respectivas populações e o impacto reduzido das suas economias nacionais.

Israel tem cerca de seis milhões de habitantes, a Jordânia apenas cinco, e a Palestina não vai muito além de três milhões, no conjunto da Cisjordânia e da faixa de Gaza. O esforço de integração de Israel seria relativamente indolor, como quase toda a gente reconhece. Quanto à Palestina e à Jordânia, tomadas em conjunto, têm demograficamente uma expressão equivalente à da Bulgária, actual candidata à adesão, mas não representam muito mais que um terço da população da Roménia, também candidata. Economicamente, talvez representem um desafio um pouco maior, mas poderá o seu desenvolvimento exigir mais empenho financeiro do que as ajudas à modernização de vários outros países aderentes, quer veteranos quer recentes?

De um só fôlego, a União Europeia acaba de engolir dez Estados e mais de setenta e cinco milhões de habitantes. Não se justificará um esforço adicional, desde já perspectivado a prazo, para trazer a paz definitiva e o desenvolvimento a uma das regiões mais turbulentas do mundo, aqui bem à nossa ilharga?