segunda-feira, 29 de novembro de 2004

Combater a mediocridade

O mote foi dado: é necessário contribuir para que os políticos competentes afastem os incompetentes.

Porém, como consegui-lo? Não bastam apelos à ética cívica e ao patriotismo desinteressado, quando está em causa combater lóbis políticos influentes e bem entrincheirados. Ânimos voluntariosos podem até aparecer, mas algumas medidas legais são também indispensáveis.

Se a mediocridade reina na actividade política, isso deve-se a três causas principais: a falta de democraticidade interna dos partidos, a reduzida filtragem institucional das políticas incorrectas ou populistas e o reduzido atractivo remuneratório dos cargos políticos para as elites profissionais com carreiras consagradas.

No que respeita aos partidos, a lei tem pretendido regular restritivamente as suas condições de formação e de financiamento, com um zelo que chega a ser excessivo e quase fundamentalista, mas nos legisladores tem prevalecido o entendimento de que o Estado não deve imiscuir-se demasiado nas regras de funcionamenbto interno das organizações partidárias. Demasiado, de facto, não deve intrometer-se; não pode é abdicar de impor regras mínimas de democraticidade interna. Assim como é necessário assegurar a livre concorrência entre os partidos e as tendências que representam, é também necessário assegurar a livre concorrência, dentro dos partidos, às diversas facções e opiniões que neles se degladiam e lutam pelo poder interno. Em última análise, a democracia ao nível “macro” é um reflexo da democracia ao nível “micro”.

Pouca gente parece notar que, devido à falta de regras legais adequadas, os partidos políticos se converteram em oligarquias fortemente burocratizadas que se preservam a si próprias, não obstante a competição renhida por chefias, cargos e privilégios. Discute-se a hierarquia dentro do bando dominante, mas este mantém os outros bandos à distância através de expedientes sórdidos. Criam-se barreiras deliberadas à entrada de novos valores individuais ou à emergência de novas tendências. Vicia-se e restringe-se com habilidades estatutárias ou com procedimentos indecorosos o livre e proveitoso confronto entre as personalidades e as facções.

A concorrência de ideias e tendências é tão fundamental no mercado político quanto a concorrência entre produtos e empresas no mercado económico. Mas enquanto neste se combate organizadamente, por meios institucionais, as restrições e os desvios à concorrência, assim como os abusos de posição dominante, no mercado político não se faz nada disso.

Dentro dos partidos, hoje em dia, as candidaturas para certos cargos externos (deputados, membros de assembleias municipais, autarcas) são escolhidas por designação das cúpulas dos vários níveis, não por sufrágio interno. Para eleger dirigentes concelhios ou distritais, chegam a fazer-se eleições sem qualquer período de debate prévio e sem divulgação completa e atempada do calendário eleitoral, para que as oposições internas não tenham oportunidade ou tempo de aprontar listas e preparar campanhas. Quando chega a haver um simulacro de debate, existem estratégias cuidadosamente montadas para abortá-lo. E quando alguém pretende tomar iniciativas, são-lhe negados os meios, tal como o acesso às instalações ou à lista de contactos dos outros filiados.

Mais do que oligarquias entrincheiradas, os partidos políticos converteram-se em discretos sovietes. Em muitas circunstâncias em que deveria acontecer o contrário, o poder já não emerge de baixo para cima, é distribuído de cima para baixo. As candidaturas a cargos externos são apenas um exemplo.

No que respeita à reduzida filtragem institucional das políticas públicas, existe uma generalizada falta de fiscalização e controlo: o Parlamento não fiscaliza o Governo, as assembleias municipais não fiscalizam os executivos camarários, os tribunais especializados não têm todas as competências e meios necessários para fiscalizar as contas públicas e as execuções orçamentais. As assembleias, sejam elas parlamentares ou autárquicas, a quem cabe doutrinária e constitucionalmente o encargo de fiscalizar políticas governativas e camarárias, vêem-se tolhidas pelas fidelidades partidárias impostas e pela pouca independência dos políticos eleitos pelo povo, mas designados pelos partidos (deveriam também, dentro destes, ser eleitos, e sempre por sufrágio directo). A par com a falta de democraticidade interna na selecção de candidatos, há o vício fundamental da disciplina de voto imposta depois aos eleitos. Ambos são vícios capitais. Ambos contribuem decisivamente para substituir a consciência cívica pelas lealdades partidárias, a independência crítica pela fidelidade às lideranças.

No que respeita a atrair à política activa as elites profissionais, há não só que desmantelar legalmente as barreiras à livre entrada de pessoas e à livre divulgação de ideias dentro dos partidos, que continuam a ser o cerne da democracia, mas também possibilitar que um elevado nível de competência, quando aplicado ao serviço público, não implique um grau excessivo de sacrifício privado. No fim de contas, administrar um país envolve muito mais responsabilidade do que administrar uma empresa, por mais tentacular que esta seja.

domingo, 14 de novembro de 2004

Israel e Palestina na UE

Foi o antigo ministro dos negócios estrangeiros israelita, Shimon Peres, um diplomata muito prestigiado e cujas opiniões costumam ser atentamente ouvidas em todos os quadrantes, quem primeiro defendeu abertamente a integração de Israel, de um futuro Estado palestiniano e da Jordânia na União Europeia, depois de terminado o “processo de paz” na região. Ele considerou mesmo que um convite de adesão constituiria um estímulo adicional para a pacificação, e defendeu essa teoria com base na experiência de Chipre, ilha dividida durante décadas entre turcos e gregos, que só começou a resolver o impasse diplomático em que se encontrava depois do arranque do seu processo de adesão à União. Neste caso particular, a experiência diplomática parece vir em auxílio da visão política para demonstrar que a inserção europeia de uma parte do Médio Oriente é algo mais que uma ideia peregrina.

Certamente, a adesão israelita já estaria há muito na ordem do dia se não existisse o conflito sangrento com os palestinianos. Enquanto existir, poucos se atrevem a colocar a questão, mesmo projectando-a no futuro. Os europeus, apesar de todo o seu empenho em apaziguar os árabes e o mundo muçulmano em geral, preferem no essencial assobiar para o lado e fazer de conta que a questão palestiniana não é um problema europeu; por esse facto, vão oferecendo os seus bons ofícios e alguns incentivos financeiros como quem simplesmente colabora na resolução de um problema externo. Provavelmente, deixará de o ser muito em breve. Se as partes chegarem a um armistício definitivo e se forem bem sucedidas na erradicação do terrorismo e da militância agressiva dos respectivos radicais, começarão a pensar mais seriamente no espaço político e económico em que lhes interessa inserir-se. E há até algumas razões para vaticinar que vários dos problemas da zona, posteriores à pacificação, só possam ter cabal resolução no cenário estável de uma integração europeia conjunta, especialmente no que respeita à livre circulação de pessoas, à gestão da água ou ao estatuto e administração de Jerusalém.

As afinidades europeias da cultura judaica não carecem de ser demonstradas. Pode ser um caso peculiar, mas não é um caso único. A Palestina partilha com Israel a localização de muitos das cidades e santuários que povoam a tradição bíblica (entre as quais sobressaem, além da própria Jerusalém, as de Belém, Hebron e Jericó). Também o actual território do reino jordano corresponde a antigas regiões bíblicas, mas o seu vínculo remoto à história cristã não é menos significativo. O país, depois de ter integrado os impérios grego e romano, fez parte do Reino Latino de Jerusalém, controlado pelos cruzados europeus, e foi um importante centro difusor da cristandade.

Não obstante o predomínio muçulmano de hoje em dois deles, todos estes países têm ligações ancestrais às próprias fontes da civilização ocidental. Todos eles passaram pela influência helenística e pelo poder imperial romano, antes de serem sujeitos à dominação de árabes e otomanos, e por décadas de administração inglesa até meados do século passado. As ligações históricas existem, apesar dos diversos contrastes religiosos. E hoje em dia, o fascínio da prosperidade material do Ocidente não é certamente inferior ao peso das tradições.

Agora que a morte de Yasser Arafat, o líder histórico de uma certa causa palestiniana, parece abrir as portas a uma fase completamente nova e mais pragmática para a resolução do conflito entre judeus e palestinianos, talvez fosse a altura certa para a União Europeia, ainda que de um modo informal, acenar aos três países da zona mais afectados pelo conflito (no caso da Jordânia, devido ao facto de ter acolhido milhões de refugiados) com a possibilidade a prazo de virem a integrar a Europa política.

A concretização deste projecto poderá levar uma ou duas gerações, tal como no caso previsível da Turquia. Talvez exija um cuidadoso faseamento, dado que o desenvolvimento relativo dos três países está longe de ser idêntico. Mas não se pode dizer que se trate de um esforço megalómano, dada a exiguidade das respectivas populações e o impacto reduzido das suas economias nacionais.

Israel tem cerca de seis milhões de habitantes, a Jordânia apenas cinco, e a Palestina não vai muito além de três milhões, no conjunto da Cisjordânia e da faixa de Gaza. O esforço de integração de Israel seria relativamente indolor, como quase toda a gente reconhece. Quanto à Palestina e à Jordânia, tomadas em conjunto, têm demograficamente uma expressão equivalente à da Bulgária, actual candidata à adesão, mas não representam muito mais que um terço da população da Roménia, também candidata. Economicamente, talvez representem um desafio um pouco maior, mas poderá o seu desenvolvimento exigir mais empenho financeiro do que as ajudas à modernização de vários outros países aderentes, quer veteranos quer recentes?

De um só fôlego, a União Europeia acaba de engolir dez Estados e mais de setenta e cinco milhões de habitantes. Não se justificará um esforço adicional, desde já perspectivado a prazo, para trazer a paz definitiva e o desenvolvimento a uma das regiões mais turbulentas do mundo, aqui bem à nossa ilharga?