sábado, 5 de novembro de 2005

A apologia do óbvio

Pergunto-me às vezes de que serve que as nossas universidades despejem todos os anos centenas de licenciados em economia e que as suas cátedras estejam repletas de reputados especialistas, se nem delas nem sob a influência delas surgem os defensores lúcidos de um rumo adequado para o país...
A culpa não pode ser dos indivíduos, só pode ser das doutrinas em voga. Talvez vá sendo altura de concluir que elas preconizam métodos que não resultam.
Ano após ano, e sem solução real à vista, apesar das promessas repetidas, o espectáculo do descalabro das nossas contas públicas continua. O problema não se resolve, atenua-se apenas à custa de expedientes e medidas de emergência. Os impostos sobem, mas as receitas fiscais não tanto. A aceleração da despesa é contida, mas o desperdício financeiro não tanto. E assim por diante.
A generalidade das ciências pratica hoje em dia um certo espírito experimental, do qual resulta que sejam afastadas as hipóteses que não dão resultados satisfatórios. Parece que só em economia se não faz isso, apesar de a disciplina tanto reclamar o estatuto de ciência. Tendo posto em prática medidas que não deram os resultados desejáveis, pretende ainda obtê-los pelo reforço das mesmas medidas. Que maravilha de persistência, de empenho, de credulidade!
Pela minha parte, não sendo académico nem especialista reputado, não tenho que estar vinculado a nenhuma doutrina em voga. E como não tenho que defender nem ensinar nada, posso simplesmente observar os factos, relacionar causas com efeitos, comparar as intenções e os resultados. E o que vejo é que, de cada vez que os impostos sobem, a economia contrai ou abranda; os rendimentos caem, as transacções diminuem, os lucros ressentem-se; e sempre que isso acontece, as receitas fiscais declinam e as previsões financeiras derrapam. Em suma: a solução do défice orçamental elevado fica adiada para a próxima tentativa, sempre mais drástica, do mesmo método infrutífero. Já antes lhe chamei "um círculo vicioso", título de um artigo que passou despercebido, como também este certamente irá passar.
O que o país precisa, pelo contrário, é algo diferente: baixar os impostos. Diria mesmo mais: baixar drasticamente os impostos e outras contribuições obrigatórias. São elas que estrangulam a economia, mais do que qualquer outra coisa. E uma economia estrangulada inviabiliza qualquer crescimento indolor das receitas fiscais.
É o crescimento económico que, através do incremento das transacções comerciais e dos rendimentos, traz consigo a subida dos impostos efectivamente cobrados, directos e indirectos. A simples subida das taxas, em clima de estagnação ou recessão, não produz esse efeito. Taxas mais elevadas sobre transacções e rendimentos em queda só podem agravar o défice.
Não esqueçamos o famoso efeito multiplicador que, como uma onda de choque, se propaga a montante e a jusante das actividades empresariais, quando uma economia se expande; pelo contrário, quando os negócios e os rendimentos se contraem, o que temos é um efeito desmultiplicador, simétrico nos seus efeitos, contra o qual não há subidas de taxas que aguentem.
Aqui fica, mais uma vez, o aviso. Vem mais défice a caminho.

terça-feira, 20 de setembro de 2005

Um círculo vicioso

Explicar à maioria dos cidadãos, e mesmo a muitos supostos especialistas em economia, que aumentar os impostos é uma decisão que faz subir a receita pública no imediato e tende a agravar o défice orçamental a médio prazo, não é tarefa fácil.
Se há défice, isso significa que o Estado precisa de mais receitas, de menos despesas ou de ambas as coisas. Se o défice é grande, não há que hesitar: precisa dessas duas terapias. Mas como diminuir despesas a curto prazo parece difícil, nem que seja pela razão simples de só ser possível com medidas drásticas e muito impopulares, a alternativa inteligente parece ser a de fazer os cortes possíveis nas despesas (entenda-se: os cortes politicamente menos inconvenientes) e agravar impostos directos ou indirectos para fazer aumentar as receitas. Há neste raciocínio dois pressupostos básicos que ninguém põe em discussão: aumentam-se os impostos e as receitas fiscais sobem; teoricamente, deverão até subir na mesma proporção. Como circunstância agravante, confunde-se ainda o aumento das receitas fiscais com o aumento das taxas de imposto, apesar de serem coisas diferentes (e de uma não conduzir necessariamente à outra).
Há aí um duplo erro. Primeiro, os aumentos de impostos constituem sempre um estímulo adicional para a evasão fiscal e têm como efeito indesejável um incremento da economia paralela; em consequência, a receita efectivamente gerada é sempre inferior à prevista pelos cálculos que não tenham em conta tal efeito. Segundo, é completamente menosprezado o impacto das sucessivas ondas de choque causadas pelo agravamento. Vejamos porquê.
Se um imposto, tal como o que recai sobre o valor acrescentado (IVA), é aumentado em 2%, parece à primeira vista que os cidadãos continuarão a pretender gastar o mesmo, mas o Estado arrecada mais 2% do que antes. Esquece-se, porém, que a subida dos impostos indirectos sobre os bens e serviços constitui um pequeno travão psicológico para certos tipos de consumo, que poderá levar muitos indivíduos e empresas a adiar algumas despesas não essenciais nem urgentes, esperando que uma posterior descida da carga fiscal reduza o desembolso necessário. Este freio actua sobretudo sobre a gama dos artigos caros ou de luxo, no caso dos indivíduos, ou sobre os investimentos arriscados ou adiáveis, no caso das empresas. As áreas mais atingidas representam normalmente transacções de valor elevado.
Mesmo que tal travão não funcionasse e toda a gente gastasse o mesmo, o valor total dos bens efectivamente adquiridos, subtraído o IVA, seria reduzido em 2% (exactamente a quantidade ou percentagem adicional do rendimento que vai ser engolida pelos impostos acrescidos). Como portanto a procura decai em quantidade, os efeitos desse decréscimo repercutem-se sucessivamente a montante, arrefecendo e contraindo a economia. Os efeitos não se sentem de imediato, mas rapidamente aparecem. Havendo menor quantidade de transacções, devido a esta contracção, e uma fuga de certa quantidade delas para a economia paralela, temos nada menos que dois fenómenos a actuar conjuntamente para reduzir a tributação prevista.

segunda-feira, 5 de setembro de 2005

A relação transatlântica, a democracia e a política mundial

Não deixa de ser curioso – e simultaneamente um dos maiores equívocos do nosso tempo – que a frágil união política europeia, sempre com óbvias dificuldades em acertar agulhas quanto a estratégias e objectivos próprios, e por conseguinte construindo-se mais sobre a pressão das forças económicas e das conveniências de segurança do que sobre uma verdadeira convergência ideológica ou civilizacional, procure desesperadamente afirmar-se no panorama mundial pelo contraste ou pelo conflito com o seu maior aliado e protector: os Estados Unidos da América.
Hoje em dia, a tendência é para nada se perdoar aos americanos: nem a sua abastança material, aparentemente roçando o perdulário, nem o seu culto da liberdade, fácil de confundir com o individualismo, nem a sua febre de inovação, parente próxima da excentricidade, nem a sua hegemonia no mundo, logo apodada de arrogância imperial, nem o seu fascínio por fortuna e ostentação, como se fosse nela sinal distintivo ou imagem de marca. Quando se está predisposto a isso, é fácil descobrir na América tudo o que abominamos: a grosseria, o artificialismo, a corrupção, a bizarria e o mais que nos ocorra. O país que uma larga parte da humanidade vê como a terra das grandes oportunidades é para nós, europeus, o símbolo do grotesco e do hediondo. Se não para todos, pelo menos para certos pontos de vista muito difundidos.
O fenómeno choca ainda mais quando comparado com a atitude que se tornou tradicional em relação aos países africanos ou asiáticos que foram anteriormente colónias ou protectorados das antigas potências europeias, aos quais se tolera continuamente quase tudo. Quer se trate de países islâmicos ou da África negra, a Europa, como que paralisada por uma consciência pesada e incómoda, tem fechado os olhos a dívidas incobradas, a hostilidades racistas, a desaforos políticos, a conluios diplomáticos, a condenações absurdas dos seus valores ou interesses, a perseguições aos seus nacionais e ao aviltamento do próprio rasto de civilização que deixou.
Justifica se isto? Quaisquer que tenham sido os abusos ou os erros cometidos pelas antigas potências coloniais nestes territórios, muitos deles fáceis de entender e justificar em função das mentalidades e dos costumes da época respectiva, de um modo geral o saldo não foi negativo nem esteve perto disso. A falta de consciência histórica tem levado muita gente a fazer juízos puramente morais que não têm qualquer clarividência ou fundamento, ou porque simplesmente faltam à verdade ou porque pretendem avaliar com critérios e noções de hoje comportamentos de antanho. O certo é que uma parte da Europa deixou noutros continentes vestígios de uma civilização que era e continua a ser, em variados aspectos, ainda que não em todos, claramente superior às autóctones. Se os europeus podem agora descobrir nisso algum motivo de vergonha ou arrependimento, pelo modo arbitrário ou cruel como alguns dos seus antepassados actuaram, podem também descobrir muitos mais motivos de orgulho pelos resultados que conseguiram ou pelas influências que semearam. O passado colonial da Europa não justifica que os europeus assumam ares culpados quando se fala dele nos fóruns internacionais. Longe disso. Essa foi uma das grandes epopeias modernas e é já altura de substituir o falso remorso em moda pela vaidade nacional claramente assumida. É também altura de exorcizar os despropositados complexos de culpa, reduzir ao seu verdadeiro e escasso valor toda a propaganda em contrário e banir das escolas as visões defeituosas sobre a história das antigas políticas ultramarinas.
A actual falta de orgulho histórico dos europeus, a que se alia uma perspectiva distorcida sobre a repercussão civilizacional da sua expansão passada, produz dois fenómenos perversos. Após décadas de propaganda e de intelectualidade viciada os terem convencido de que apenas andaram a molestar outras culturas e que quase nada de bom lhes levaram, os europeus coíbem-se hoje de se atribuir qualquer superioridade cultural sobre os povos mais atrasados. E não podendo afirmar-se intelectualmente através dessa vantagem repudiada, procuram antes fazê-lo através de uma rivalidade artificial com aquela que é actualmente a potência hegemónica da civilização ocidental.
Vários motivos diferentes conduziram a este completo desnorte.
Comecemos por dizer que os interesses económicos que alguns países europeus deixaram espalhados pelas suas antigas possessões, e que conseguiram sobreviver aos abalos da descolonização e às destruições das guerras civis, continuam a fomentar hoje uma atitude de subserviência medrosa, como se não fossem substancialmente maiores as dependências dos territórios abandonados em relação às antigas metrópoles. Mas, num evidente paradoxo, são os Estados europeus que se sentem na obrigação de preservar a todo o custo as relações diplomáticas e comerciais com as antigas colónias e protectorados, como se estivesse em jogo algo vital.
A verdade é que este procedimento humilhante e despropositado tem tido mais justificação ideológica do que económica. Na melhor das hipóteses, talvez corresponda a uma actuação prudente destinada a evitar que outros países interessados aproveitem os diferendos para se imiscuírem nas regiões problemáticas e aí cimentarem laços e cumplicidades, se não mesmo para aproveitarem oportunidades ou recursos cobiçados. Mesmo assim, o comedimento atinge por vezes os limites do paradoxo. De resto, já passou tempo suficiente desde as independências para que os traumas e convulsões a elas associados perdessem a sua intensidade inicial e para que os novos países tenham podido entretanto perceber melhor quais as suas conveniências em manter bom relacionamento com os ex colonizadores europeus. Não é por acaso que muitas ex-colónias têm feito um esforço sério de reaproximação com as ex-metrópoles, ainda que ao abrigo da muito conveniente e bem preservada ficção da paridade dos Estados.
Mas a América, pelo seu poderio militar e económico, a que se junta uma diplomacia extremamente eficaz, é uma eterna candidata a substituir os velhos mentores e as velhas influências, onde quer que estas percam terreno. Aproveitando sistematicamente as oportunidades que os outros descuram, seja na concorrência para a exploração de recursos naturais e oportunidades de comércio, seja na conquista de fidelidades políticas e diplomáticas, como aliás convém a quem joga no tabuleiro da estratégia mundial, a América é encarada como uma rival da Europa que vem sempre intrometer-se onde não era chamada e que, por via de regra, dada a sua envergadura e influência, pode jogar cartadas bastante mais decisivas.
Para além do pesadelo de serem ultrapassados nas suas vantagens tradicionais, outra obsessão subterrânea atormenta os europeus: a sua situação subalterna, a sua menor importância hoje. Não é segredo para ninguém que, durante os últimos cem anos, a Europa sofreu um claro downgrade, uma inevitável secundarização. E passadas décadas sobre a perda dos seus principais territórios ultramarinos, devida em boa parte às guerras intestinas em que se devastaram mutuamente e aniquilaram as respectivas forças, as grandes potências europeias de outrora ainda não digeriram completamente a perda da sua anterior grandeza e preponderância, claramente desproporcional às suas possibilidades presentes. A um nível subconsciente, uma certa nostalgia persiste.
Não é pois de admirar que a actualidade e a memória histórica entrem em colisão e que isso dê azo a ilusões e iniciativas. Durante muito tempo dependentes da América para se reconstruírem e defenderem, inferiorizados de um ponto de vista financeiro e militar, incapazes de acompanharem a pujança tecnológica e cultural daquela, mas cansados de um desconfortável estatuto de menoridade, os principais países europeus tentam agora fazer soar as trombetas da emancipação e procuram com afinco competir com a América na penetração tentacular da sua economia e da sua influência diplomática e financeira. Em vez de conjugarem esforços com ela, desafiam na, tentando deixar escapar para o mundo a mensagem subtil de que só os grandes podem desafiar os grandes.
Como complemento de tais delírios, surge ainda a força residual das sucessivas campanhas ideológicas que durante todo o período da Guerra Fria diabolizaram a América e as suas instituições, o seu poder e os seus objectivos estratégicos. Empreendidas em grande percentagem pelas tendências marxistas ou afins do espectro político, que nalguns casos se empenharam mais nisso do que em quaisquer objectivos práticos para o bem estar das populações, essas campanhas tiveram a força e a subtileza suficientes para se infiltrarem nas concepções mais liberais da sociedade e da economia, na estética e no direito, nos manuais educativos e nas interpretações correntes da história factual. Os seus efeitos são deveras impressionantes.
Como consequência de vastos e inquietantes contornos, a Europa escamoteia à América aquilo que com toda a evidência lhe pertence: a liderança do mundo ocidental. E no entanto, ao arrepio de legiões de obstinados que a não querem ver, ela manifesta-se em quase todos os domínios e é até responsável por uma boa parte do que as ambições europeias têm conseguido realizar.
Foi a América que impediu, com o seu poderio militar, que a Europa fosse hoje um lugar muito desagradável para se viver. Parece fácil esquecer que são de matriz europeia as duas ideologias totalitárias mais arrepiantes e sanguinárias que a história contemporânea foi capaz de conceber e implantar na consciência das multidões e no governo dos países: o comunismo e o nazismo. Através de uma “guerra quente” e de uma “guerra fria” que se sucederam sem tempo para tomar fôlego, os americanos salvaram muitos europeus de duas formas terríveis de servidão e das mais atrozes arbitrariedades. Se a Europa não é hoje o lugar da barbárie mais avassaladora e sofisticada do planeta, devia lembrar-se a quem o deve. E se conseguiu reerguer-se depressa de duas guerras devastadoras que quase a deixaram atolada em escombros, deve-o essencialmente à ajuda financeira e à contribuição tecnológica do mesmo benfeitor. Se foi necessário evitar que uma nova e perigosa guerra alastrasse para além dos Balcãs, com consequências largamente imprevisíveis, já quase no final do milénio, contou-se de novo com a intervenção americana, impotentes que se mostraram mais uma vez os europeus para se ocuparem dos seus assuntos domésticos, por desunião e por desleixo, se não por desumanidade também. E quando finalmente é preciso proteger todo o Ocidente da ameaça difusa de um terrorismo de perigosidade nunca vista, é de novo a América que tem de ocupar-se do assunto como se de uma responsabilidade quase inteiramente sua se tratasse, enquanto parte significativa da “velha Europa” sacode a água do capote e tenta até obter vantagens comerciais e diplomáticas à custa das iniciativas e dos riscos do seu maior aliado transatlântico – traindo-o abertamente, se necessário, e não hesitando sequer em promover uma frente antiamericana para atrair prestígios, recuperar influências, negociar benesses e penetrar mercados. Resumindo: tem havido circunstâncias em que é difícil sentir orgulho de ser europeu.
Sem o querer reconhecer, a Europa continua a dever grande parte do seu bem estar à protecção americana, que zela pela sua segurança mais do que os próprios europeus estão dispostos a fazê-lo; à difusão da tecnologia, dos métodos e dos produtos oriundos do lado de lá do Atlântico; à capacidade de absorção económica do grande e ávido mercado americano, que paga uma fatia considerável da prosperidade de que se usufrui do lado de cá; e à influência dominante dos americanos no alastramento da democracia, na salvaguarda dos direitos fundamentais, na liberalização do comércio e na abertura dos mercados, na flexibilidade dos costumes e na tolerância das diferenças. Os europeus têm mesmo dificuldade em perceber até que ponto as suas culturas autóctones se americanizaram em muitos aspectos desejáveis e nalguns indesejáveis também, obcecados que estão em preservar ciosamente algumas diferenças que lhes possam dar a sensação reconfortante da resistência ou da emancipação.
Quem quer que mantenha um pouco de visão não toldada pela ideologia pode facilmente perceber quanto a influência diplomática e o poderio militar americano contribuem para tornar o mundo mais permeável, menos caótico, menos inseguro e menos propenso a aventuras bélicas. Muitas tiranias têm sido contidas e algumas até apeadas do poder; alguns genocídios têm sido evitados, outros interrompidos; o comércio tem sido gradualmente liberalizado, com mais benefícios que danos para quase todos; os conhecimentos técnicos, os novos métodos de organização e gestão, valores mais flexíveis e costumes mais tolerantes têm sido promovidos pelo investimento, pelo ensino universitário, pelo turismo, pelos meios audiovisuais e pela influência difusa das instituições, tudo com uma considerável dose de inspiração ou participação americanas. Embora a América também tenha cometido erros e abusos, nem todos justificados pelas circunstâncias ou pelo xadrez geostratégico, a sua influência no mundo tem sido superior à de qualquer outro país ou região, no sentido de o tornar seguro, evolutivo e próspero. A Europa devia orgulhar-se disso, visto que exportou para a América do norte um pouco do seu melhor, e colaborar com todas as suas forças nessa influência civilizadora, preservando ciosamente a indispensável aliança atlântica em vez de cultivar a pretensão de confrontar se ou medir-se com uma nação poderosa a quem deve muito do que hoje alcançou. Costuma dizer-se que em política não há gratidão, e os factos sempre mostraram isso, mas que não falte ao menos o bom senso...
A Europa que não conte com o comedimento ou a cumplicidade de uma cintura islâmica potencialmente hostil nem com o fácil apaziguamento de uma enorme federação russa ainda com obsessões hegemónicas e imperiais (eis precisamente duas questões melindrosas em que todas as expectativas surgem juncadas de incógnitas). A sua segurança continua a depender da solidariedade americana, longe que está de poder bastar se a si mesma. E a confrontação comercial ou diplomática com a América só poderá redundar numa maior fraqueza europeia, não no apregoado engrandecimento da Europa. Esta aumenta o seu peso estratégico com a aliança atlântica, mas diminui-o quando a atraiçoa ou se coloca contra ela. De facto, a Europa continua demasiado heterogénea e dividida para poder ser tomada tão a sério como pretende – e o mundo sabe que nem sequer está apta a defender-se eficazmente pelos seus próprios meios, se algum dia as coisas derem para o torto.


É desconcertante como os factos mudam, mas as convicções ficam! Uma das que resiste é a da alegada supremacia cultural europeia. Contudo, quase não há hoje domínio ou matéria em que os norte-americanos não tenham tomado a dianteira. E não só em termos estatísticos, mas de criatividade! Comparativamente, eles são mais assíduos leitores de livros, revistas e jornais; frequentam em maior número as bibliotecas, os museus e as exposições; acorrem mais generalizadamente aos espectáculos de cariz não popular; têm uma movimentação cívica e uma capacidade de iniciativa incomparavelmente maiores; revelam um espírito associativo e uma vocação solidária quase sem paralelo; a qualidade do seu empresariado é bem evidente no ubíquo alastramento multinacional e na facilidade com que tende a conquistar a hegemonia nos negócios; a pesquisa científica e a inovação tecnológica dos americanos representam uma percentagem enorme de tudo o que se descobre e inventa no mundo; a sua liderança na área da teoria económica e da gestão é incontestável; muitas das suas universidades estão entre as melhores do mundo; no domínio do audiovisual, o planeta inteiro verga-se à sua influência; a maioria das novas ideias e estilos de vida é incubada além Atlântico; todas as ciências naturais e humanas conhecem lá os seus maiores progressos recentes; e todas as artes, sem excepção, sobrepuseram-se ao velho fascínio europeu e conquistaram aí supremacia: na arquitectura, nas artes plásticas ou musicais, no design dos produtos fabris, a América está na primeiríssima linha da inovação. Só na literatura de ficção a Europa pode pretender rivalizar com ela, mas não no campo da investigação ou do ensaio, na filosofia ou na teoria política. Por muito que isso custe ao orgulho dos europeus, a América do norte lidera culturalmente o Ocidente e não só: de facto, lidera o mundo inteiro, mesmo onde encontra contestação.
Tal como o faz na economia, na política, na diplomacia, na aplicação do conhecimento e no florescimento das utopias realizáveis. Contra os muitos que, com lamento ou entusiasmo, previram um rápido declínio americano, arrisco-me a vaticinar que este século que se inicia será, pelo menos na sua primeira metade, ainda mais “americano” do que o foi o anterior. E a Europa terá muito mais a ganhar em vantagens e importância própria se aproveitar o impulso formidável dessa liderança do que se optar por colocar-se em bicos de pés a confrontá-la ou desafiá la.
De momento e por bastante tempo ainda, a única coisa que os líderes europeus podem comparar à envergadura do colosso americano é o enorme ridículo de certas pretensões emulatórias. É o que acontece, por exemplo, quando a França de hoje, carecida de proteccionismo económico e de efervescência cultural, mas saudosista das megalomanias e das glórias de outros tempos, se permite não reparar que é menor em extensão que o Texas (apenas um dos mais de cinquenta Estados federados americanos) e que não tem real capacidade de hegemonia senão sobre países atrasados e empobrecidos, mas se empolga na sua estouvada ambição de disputar à América a liderança dos assuntos internacionais em matéria de segurança. O ridículo só não se torna grotesco porque é deplorável e perigoso. Os europeus ainda têm de aprender, sem dúvida, que é preciso algo mais do que aparato e oratória para pesar no cenário mundial. Esperemos que o aprendam depressa.


Revela vistas curtas não perceber que a civilização americana é hoje muito mais do que uma mera herdeira da europeia. E não só porque atingiu o mais elevado grau de aperfeiçoamento jamais conseguido nas três formas institucionais mais relevantes dos tempos recentes: república, democracia e federalismo. Mas também porque a América é o mais avançado laboratório da globalização liberal e o mais desenvolvido exemplo de sociedade baseada no conhecimento.
Se a América merece hoje o título de hiperpotência mundial, nunca antes atribuído a qualquer outro país, é porque conquistou a supremacia nos quatro domínios fulcrais (económico, tecnológico, militar e cultural) à escala planetária. É a primeira vez na História que isto acontece. E podem alguns pensar que, tendo já atingido o apogeu, se lhe seguirá necessariamente uma fase de declínio ou, pelo menos, de uma certa perda de vantagem relativa. Mesmo para o médio prazo, esses cálculos estão errados e é felizmente o contrário que vai acontecer. Por algum tempo ainda, a vantagem global da América irá continuar a crescer. Se examinarmos a fundo os dados disponíveis, todos os indicadores importantes o mostram à saciedade. A América não atingiu ainda o apogeu deste seu movimento ascensional como país dominante e vai continuar a alargar a distância que a separa de outras potências em ascensão. As excepções serão poucas, se algumas houver.
Não se trata de teoria ou de vaticínios. O crescimento da produtividade americana é de cerca do triplo da europeia; o investimento total em investigação científica pura ou aplicada é incomparavelmente maior do que em qualquer outra região do mundo; é à América que cabe uma percentagem esmagadora das patentes registadas em cada ano para as novas descobertas e invenções, deixando todos os competidores a uma distância humilhante; as suas empresas privadas continuam a revelar uma muito maior capacidade de aproveitamento técnico e comercial das inovações, quer em quantidade quer em rapidez; quase todas as grandes conquistas no aperfeiçoamento da gestão organizacional continuam a vir de lá, agora que a Europa e o Japão atravessam um período de marasmo persistente; são as universidades americanas que continuam a marcar os padrões da excelência e os seus diplomas constituem ainda referência incontestada em todo o mundo; é a indústria audiovisual americana que continua a ter o maior poder de contágio cultural em quase todo o planeta, sem qualquer concorrência à altura, e são os valores e hábitos de vida americanos que continuam a penetrar muito mais no exterior do que este consegue timidamente retribuir; e mercê de investimentos continuados e colossais em tecnologia, pesquisa, logística e meios humanos, a dimensão do poderio militar americano não tem parado de aumentar a sua vantagem já abissal sobre todos os países ou alianças com vagas pretensões a aguentar a corrida. Quanto mais o tempo passa, mais se vê actualmente crescer essa vantagem.
Enquanto os europeus discutem, os americanos decidem e agem. Enquanto os europeus regateiam uns com os outros as suas contribuições financeiras para os projectos mais incipientes, os americanos planeiam e executam realizações arrojadas e grandiosas; enquanto os europeus levam anos a negociar o que e como se deve fazer e quem deverá liderar as operações, bem como os complexos e intermináveis mecanismos de informação e consulta recíprocas, os americanos encaminham-se logo pragmaticamente para o que interessa e põem em prática o que querem fazer. Em suma: enquanto uns perdem tempo, os outros avançam; enquanto uns se empenham em conquistar arduamente pequenas e egoísticas vantagens nacionais, a outros basta coligar esforços e capacidades de múltiplas organizações públicas e privadas capazes de muito mais facilmente se porem em sintonia, sob o impulso ou a tutela de um único governo. Não é possível competir assim.
Mas infelizmente há pior: porque enquanto os europeus se entretêm a inventar múltiplas barreiras à entrada nos seus mercados de muitos produtos americanos mais baratos ou tecnologicamente superiores, se necessário interditando tecnologias inovadoras sob os mais disparatados pretextos, do lado de lá do Atlântico deixam simplesmente funcionar o mercado concorrencial e mantêm desperto o estímulo económico para a inovação tecnológica e para o investimento intensivo nela. Enquanto na América se incentiva a novidade vantajosa, na Europa tenta-se até ao último fôlego proteger o que já existe.
Provavelmente, os políticos e economistas do Velho Continente só acordarão contra vontade quando forem despertados pelo ruído ensurdecedor das estatísticas futuras que vão desabar sobre eles. Indicadores tais como os do crescimento económico, capacidade de criação de novos empregos, nível tecnológico, inovação empresarial, aumento percentual da produtividade, evolução do rendimento per capita, desempenho das cotações bolsistas e outros, quando a médio prazo vierem a ser alvo de comparações desanimadoras, farão dar o grito de alarme com uma enorme ressonância. Mais uma vez, espera-nos na Europa um cenário de divergências, quezílias, soluções retóricas e frenesim desorientado – por outras palavras, muita grandiloquência e estrepitosas declarações de intenção, mas um ritmo lento e desesperante nos resultados.
Enquanto a Europa não se unir de facto politicamente, seja sob que modalidade for, estamos quase por inteiro nas mãos da iniciativa privada; e esta, sem o impulso eficaz do governo comum e sem a tradição do risco empresarial que caracteriza a América, não tem grandes hipóteses de nos conduzir a um progresso tão rápido como o que nesta se verá. Quer se queira quer não, a desarmonia interna paga-se caro.
Neste e em todos os outros aspectos, não se pode agir eficazmente a partir de análises erradas. O predomínio americano não resulta exclusivamente de nenhuma das causas que se lhe atribuem: mérito, prepotência, extensão, criatividade ou melting pot de raças e influências. A verdade é que todos os continentes têm contribuído largamente para um tal distanciamento na riqueza, no poder e no ritmo de progresso. Se a América é hoje uma potência com tal grandeza, deve-o em parte ao dinamismo e à criatividade dos americanos; mas vistas as coisas por outra perspectiva, não o deve menos “aos erros acumulados do resto do mundo: o fracasso do comunismo, o naufrágio da África, as divisões entre os europeus, os atrasos em matéria de democracia da América Latina e da Ásia.
No caso específico da Europa, as suas divisões internas não a impedem apenas de ter uma política comum de defesa, segurança e relações exteriores; impedem-na também de adoptar uma política cultural mais consistente e uma verdadeira língua franca, de coligar maiores esforços e contributos para a investigação científica e o desenvolvimento tecnológico, de proteger eficazmente as suas fronteiras das hordas migratórias indesejáveis, de falar a uma só voz nas questões da guerra e da paz, de tirar pleno proveito das suas velhas ligações coloniais, de conglomerar as suas empresas e dar-lhes dimensão competitiva, de liberalizar plenamente os seus mercados, de proteger eficazmente os consumidores e de levar a cabo projectos ambiciosos cuja grandeza e custo estão para além das possibilidades de países isolados sem dimensão colossal. Tudo isto se paga caro, de uma maneira ou de outra. Sem as suas quezílias internas, a Europa estaria dois passos adiante de onde está – e todos sabem isso.


Pode dizer-se abertamente que a Europa não existe, nem em termos geostratégicos nem em termos de segurança , mas só é de bom tom reconhecê-lo nos bastidores. À vista desarmada, a incipiente união dos países do Velho Continente representa o papel de potência emergente, mas também só nos bastidores é de bom tom reconhecer que ninguém a leva muito a sério, por enquanto.
Quando se abeiram as crises mundiais, o desempenho europeu resume-se a um corropio diplomático geralmente infrutífero e inglório, um espectáculo triste de divergências internas insanáveis e uma dose generosa de grandiloquência com pouca substância, ainda assim capaz de arrebatar jornalistas e intelectuais até ao êxtase. Mas quando estão em jogo questões civilizacionais que opõem democracia e barbárie, segurança colectiva e terror globalizado, acção internacional eficaz e intenções piedosas, o facto de a América ter um imenso poderio militar e de as capacidades de intervenção da Europa serem comparativamente minúsculas faz toda a diferença na tónica das atitudes: de um lado valoriza-se mais a segurança, do outro o direito. E é compreensível que seja assim: os que têm capacidade de persuasão bélica dissuadem os desvarios perigosos de terceiros ou combatem-nos directamente; os que estão reduzidos a elaborar normas jurídicas pretensamente racionais apelam aos restantes para que as acatem de boa fé. Temos de concordar que é uma tarefa desigual, por força das próprias premissas.
No que respeita às grandes questões internacionais, os americanos são mais pragmáticos porque podem sê lo, os europeus são mais normativos porque não podem ser outra coisa (nem mais do que isso). Portanto, uns viram-se preferencialmente para a acção, os outros para as regras. Mas nem mesmo neste seu terreno de eleição os europeus conseguem ser tão persuasivos e eficazes como gostariam. Ainda e sempre por causa das suas divergências internas, a Europa é vista como “um mosaico de complicação normativa” , quer nas suas propostas, quer nos compromissos dúbios a que chega, quer ainda na floresta de interpretações em que se perde. E isso não a leva a lado nenhum, a não ser em passo titubeante. Eis a realidade das coisas.
Há ainda outras razões para não hostilizar a hegemonia da América, para além do facto de ela ser, quer se goste quer não, a principal garantia da relativa segurança em que vivemos.
É forçoso reconhecer que o desafogo europeu continua um pouco dependente da riqueza americana e por ela condicionado. Quando a cotação do dólar cai demasiado, quando a sua economia enfrenta dificuldades ou enfraquece, quando a sua estabilidade orçamental é afectada por excessivos gastos com a defesa e a segurança interna, quando os seus consumidores e empresas vêem enfraquecer a sua capacidade financeira, as primeiras vítimas são todas as nações que exportam para lá uma parte considerável da sua produção e que se confrontam com a diminuição da capacidade de absorção do mercado americano. Por efeito de dominó, todas as outras acabam por ser afectadas, dada a interdependência global no mundo moderno.
Mas mais importante ainda é reconhecer que nenhum país ou união de países, por mais pujante que seja economicamente, tem possibilidade de sair hoje vitorioso da confrontação política ou comercial com a América, dada a sua inquestionável superioridade económica. As razões dessa superioridade dependem largamente da excepcional produtividade do trabalho americano e de um dinamismo empresarial quase mítico, que nenhum outro país está sequer perto de igualar (e se algum vier proximamente a consegui-lo, isso acontecerá com mais probabilidade na parte oriental da Ásia, em alguns sectores específicos, do que na zona europeia).
Acresce que o mercado americano é muito mais capaz de suprir pela produção interna muitas das suas actuais importações do que os europeus são capazes de produzir ou substituir, a idênticos níveis de custos, muito do que actualmente importam daquele, sobretudo nas áreas de alta tecnologia, que são as mais críticas em matéria de pesquisa, desenvolvimento e produtividade. É pois desejável que a Europa não sobrestime as suas forças.
Muita gente ainda não percebeu que o que se passou realmente do outro lado do Atlântico foi o advento de uma nova civilização material e política, que tem sido o resultado progressivo de factores que agiram mais cedo e mais intensamente lá do que cá. Provavelmente, toda a zona europeia está fadada para repetir largamente esse percurso, mais do que para inventar outro substancialmente diferente. Existem de um lado e de outro algumas especificidades culturais que poderão subsistir, mas o grosso da cultura artística e académica será a resultante natural, nos seus traços mais duradouros, das subtis consequências desta nova civilização material – não no sentido de ser determinada por ela, como pretende a velha sociologia marxista, mas porque cultura e hábitos de vida tendem a andar entrelaçados.
Uma boa porção dessa hostilidade interior dos europeus aos sinais do predomínio americano é artificial. Pode em parte ser explicada por meio século de feroz propaganda soviética, declarada ou subtil, que deixou sulcos profundos na mentalidade continental, mesmo entre aqueles que não alinhavam pelas seduções do marxismo e suas variantes; noutra parte, porém, é forçoso reconhecer o despeito da velha Europa por ter deixado escapar a sua hegemonia mundial para uma nação relativamente recente que decidiu tão sem cerimónias emancipar-se dela e que, tendo evoluído muito para além das actuais capacidades do subcontinente, o trata com a condescendência merecida pelos países ainda imaturos. É a isso que os europeus chamam a “arrogância americana”, onde por vezes se vislumbra também alguma impaciência em relação às hesitações, às discórdias e aos pruridos das muitas pequenas nações do Velho Continente, que não raramente desafiam não apenas a lógica como a própria razoabilidade geoestratégica das decisões e das preferências.
Há do lado de lá quem veja as coisas com mais clareza. É o caso de certo autor brasileiro que, não morrendo de amores pelas antigas potências coloniais, afirmou sem rebuço algo como isto: “Não se deve, no entanto, interpretar o sentimento americano como uma espécie de patriotismo hemisférico, exclusivista e cheio de jactância. (…) Nas suas expressões actuais ou potenciais, nas suas realizações e nas suas aspirações, a vida americana mantém e desenvolve um legado comum. Isto significa, por outras palavras, que pertencer à América é o mesmo que pertencer à Europa”. Esta visão está correcta no essencial e peca só por exagero. Menospreza um pouco a importância e a influência das raízes indígenas, sobretudo nas zonas de colonização ibérica; relega para plano secundário a grande diversidade dos fluxos migratórios que vieram engrossar a população, onde a percentagem dos que não têm ascendência europeia é muito maior do que na Europa; e omite as particularidades relevantes que são atribuíveis aos contrastes geográficos e climáticos, entre outros. Acima de tudo, não refere o papel que um superior progresso técnico, organizativo e político desempenhou na diferenciação das culturas norte-americanas. Mas é verdade que Europa e América partilham as mesmas fontes de civilização, se não omitirmos o facto de que também exibem algumas fontes diversas. Têm muito em comum, mas não têm tudo em comum. E as diferenças de diversidade e de progresso são suficientes para não podermos considerar que a América seja uma mera extensão do mundo europeu, nem aquela o pretende ser; por outro lado, é também forçado falar de civilizações contrastantes.
São por vezes as pequenas diferenças entre termos de comparação quase idênticos que conseguem criar mais afectação e melindre do que as grandes dissemelhanças entre o que nem sequer é comparável. Distinções que toda a gente aceita pacífica e resignadamente como óbvias não exaltam muito os ânimos nem são motivo de prolongadas controvérsias. Dizendo o mesmo noutras palavras: as pequenas diferenças são por vezes susceptíveis de causar mais atritos e resistências do que os grandes contrastes, do mesmo modo que a simples heresia sempre escandalizou muito mais do que o convívio de religiões notoriamente diferentes. A pequena diferença passa por defeito, enquanto a grande já é feitio.
Remando em contracorrente, atrevo-me a defender que a Europa teria bastante mais a ganhar em assimilar rapidamente tudo o que a América tem para proporcionar-lhe, em termos de cultura e tecnologia ou em termos de experiências sociais já feitas, do que em hostilizá-la para escamotear o atraso acumulado e tentar preservar peculiaridades que não irão resistir muito à erosão do tempo e das finanças públicas. Onde muitos vêem desejo de poder e de comando na “tecnocracia americana”, talvez pudesse ver-se com mais clareza uma superioridade científica e organizacional que representa um vasto lote de vantagens competitivas. Perceber isso ou não decidirá em larga medida se o atraso europeu irá diminuir ou crescer ainda mais.
Estas considerações veladas justificam uma advertência clara: a Europa deve ser construída em aliança com a América e não contra ela. A aliança trará sinergias e vantagens recíprocas, mas a hostilidade só trará desgaste mútuo. E as grandes ameaças que se perfilam para o mundo ocidental não vêm do próprio Ocidente.


Não é menos necessário exorcizar a ideia completamente errónea de que a enorme prosperidade material dos americanos deveu ser paga com sacrifícios culturais consideráveis. Embora nos manuais de economia política continue a ensinar-se a curiosa noção de que é preciso “optar entre canhões e manteiga” quando uma sociedade decide afectar os seus recursos, nada autoriza a concluir que seja necessário optar tão dramaticamente entre progresso material e cultural. O que se tem passado revela em todo o lado o contrário: o interesse pela cultura acompanha de perto o ritmo de progressão da prosperidade económica. Uma coisa não exclui a outra, parece mesmo implicá-la. Com surpresa de muita gente, constata-se assim que a América conseguiu alcançar uma supremacia bastante avantajada no desafogo material e na própria inovação cultural, sem que estes dois ingredientes de civilização se atrapalhassem um ao outro – e a sua experiência peculiar permitiu reconfirmar empiricamente a ideia de que ambos se reforçam e entrelaçam.
Culturalmente, o que temos a aprender com a América? Para começar, o seu culto da eficiência, que sempre almeja conseguir o máximo de rendimento com o mínimo de esforço e de custos; a sua propensão para o pragmatismo, que leva a procurar incessantemente os modos de aplicação prática das novas ideias; o apego ao concreto, que impulsiona a contornar a verborreia e a retórica e a tornar palpável o que se discute, o que se projecta, o que se traça como objectivos; o dinamismo realizador, que rapidamente conduz às fábricas ou aos laboratórios as visões inovadoras que entre nós, quando surgem, demoram em geral tanto a passar da fase de especulação em gabinetes de estudos, em conversas de café ou em discussões de bastidores; a grandiosidade desinibida dos próprios objectivos, dado tratar-se de uma cultura peculiar que não se atemoriza com a escala ou com os custos; o espírito de iniciativa e de risco como uma forma de estar na vida e não como uma sofisticação académica aprendida nos bancos da universidade em extensos cursos de pós graduação; o apreço por uma civilização tecnocrática florescente, orgulhosa das suas próprias realizações e projectos, contrariamente ao desprezo atávico que os europeus nutrem pela técnica, ainda que tenham de se render a ela; a feliz aliança entre a arte e a indústria, vista como um sinal e um motivo de êxito, sem qualquer esgar de horror afectado pelo utilitarismo das ideias criativas; um espírito cívico generoso e entusiasta, que torna fácil encontrar guerreiros, artífices e patrocinadores para todas as causas; um voluntariado fácil e espontâneo para as questões sociais, que não espera pela intervenção providencial do Estado para tentar resolver os problemas comunitários; uma grande união patriótica e a consciência de um dever geral de solidariedade que, nas ocasiões críticas, ultrapassa num ápice as diferenças e as rivalidades entre condados, regiões ou Estados federados; e o mais elevado grau de responsabilidade pessoal que é possível descobrir na parte ocidental do mundo.
Se virmos as coisas pela perspectiva da “cultura estratégica” que floresce em cada um dos lados do Atlântico, são os europeus que parecem provincianos na sua maneira de lidar com o resto do mundo. Estão de tal modo embrenhados nas suas questões domésticas, incluindo as da própria construção europeia e as da salvaguarda de interesses económicos nos antigos territórios coloniais, que frequentemente se esquecem de que têm um papel a desempenhar no cenário mais alargado da geostratégia, do qual os americanos são muito mais conscientes e onde se vêem frequentemente condenados a actuar sozinhos, por falta de solidariedade transatlântica. Enquanto estes jogam constantemente no xadrez mundial, e sabem disso, para os europeus a grande questão continua a ser a Europa – a “nova”, a “velha” e os respectivos apêndices.
Reanalisando todos estes factos no seu conjunto, será de facto à América que devemos apontar um dedo acusador?

domingo, 4 de setembro de 2005

A questão da nacionalidade

Afirmar que quem nasce em território português tem direito automático à nacionalidade portuguesa significa – nada mais, nada menos – confundir os conceitos de naturalidade e de nacionalidade.

A questão é esta: o facto de nascer em determinado território é quanto basta para pertencer a uma determinada nação? Não é necessário desenvolver um sentimento pessoal de pertença? Não é necessário partilhar os valores e os símbolos básicos dessa nação? Não é necessário tornar-se ou sentir-se membro de uma determinada cultura que, de forma intuitiva ou explícita, é identificada nos seus traços essenciais como "nacional"?

Se disséssemos que nada disto é necessário, chegaríamos à absurda conclusão de que uma nação apenas se define pelo território. O sentimento de coesão de um povo, a partilha de símbolos e valores básicos, a ligação a uma certa memória histórica teriam perdido todo o significado.

Será a nacionalidade apenas isso, a consequência a aleatória de se ter nascido em determinado local? Se chegámos a esse ponto, a nacionalidade portuguesa acabou e andamos todos equivocados. Venham daí os espanhóis e fiquem com isto de vez.

Pela minha parte, vejo as coisas de outro modo: nascemos no seio de determinada familia e são as ligações afectivas que nela desenvolvemos, a língua e os valores que nela aprendemos, as regras de conduta que nos são ensinadas, os valores fundamentais que nos são transmitidos e a memória histórica que nos é desvendada que formam gradualmente o nosso sentimento de pertença (ou seja, a nossa nacionalidade). A escola reforça e complementa esta impregnação cultural, mas não a substitui e é raro que se lhe sobreponha. Em caso de conflito, a influência familiar e étnica predomina sobre a influência escolar e comunitária.

Quem nasce no seio de uma família portuguesa, mesmo no estrangeiro, irá ser impregnado de traços culturais portugueses – e não indianos, chineses ou quimbundos. As influências locais, quando divergentes das familiares, ajudarão quando muito a constituir uma identidade mista. Ser-se-á então luso-qualquer-coisa. O que se passa numa família estrangeira em Portugal, ou ex-estrangeira porque naturalizada, será um caso diferente? Se as ligações familiares e étnicas tendem a ser mais fortes, o mais que se poderá esperar é produzir mestiços culturais.

Vem daí algum mal ao mundo? Depende da percentagem e do impacto. Ter quatro ou cinco por cento de mestiçagem cultural não é o mesmo que ter dez ou vinte por cento. E o impacto sociológico de uma certa percentagem de hibridismo não é idêntico para todas as origens e proveniências. Toda a gente de bom senso sabe isso.

Pior ainda é que o conceito de mestiçagem não evidencia qual a influência cultural predominante. Mas basta assistir a certos jogos internacionais de futebol e ver o nosso hino assobiado, a nossa bandeira nacional cuspida e reparar por quem torcem os vários sectores da assistência para se perceber quem é português e quem é estrangeiro, mesmo que naturalizado.

A concessão da nacionalidade não altera automaticamente o sentimento nacional originário e as fidelidades étnicas de quem a recebe, mesmo que atribuída à nascença. Cuidado com tais equívocos.

domingo, 1 de maio de 2005

Uma má proposta

De há meses para cá, pela boca de alguns dirigentes partidários, tem vindo a ser defendida a alteração do regime de eleição do Presidente da República, substituindo os actuais dois mandatos consecutivos possíveis de quatro anos por um único mandato de sete anos. A ideia foi até motivo de campanha entre candidatos à liderança de dois partidos e a imprensa deu-lhe natural ressonância, tal como a televisão. O alarido que se gerou não foi muito, mas ainda assim foi demais.

Parece-me que este é o género de ideias insensatas e inconsequentes que tende a surgir quando uma democracia atravessa uma crise de valores e de projectos. E pertence ao tipo de coisas que se propõe quando não ocorre nada de mais importante e consistente para defender.

Não é difícil, de resto, mostrar que se trata de uma má proposta. O seu único fundamento palpável consistiu no argumento de que a reeleição estaria sempre assegurada, devido ao prestígio mediático acumulado durante o primeiro mandato, o que tornaria a própria reeleição um mero plebiscito. A experiência democrática portuguesa é demasiado jovem e curta para nos proporcionar factos em contrário; mas analisando a história política norte-americana, por exemplo, que tem uma trajectória bem mais longa em matéria de eleições democráticas, já encontramos suficientes exemplos de que as coisas não são bem assim. Na sociedade mais mediatizada do mundo, vários presidentes não conseguiram conquistar o seu segundo mandato. E até a história turbulenta da nossa Iª República, pesem embora as enormes diferenças de época e de ambiente, nos fornece alguns exemplos adicionais.

As vantagens dos dois mandatos consecutivos são óbvias para qualquer pessoa de bom senso: se a maioria do eleitorado está convencida de que elegeu um bom Presidente, ou pelo menos um que lhe parece ser melhor opção que os candidatos rivais, pode reelegê-lo e mantê-lo no seu posto; se estiver decepcionada com a sua actuação, pode descartar-se dele. Na melhor das hipóteses, pode-se conservar durante oito anos um Presidente que seja apreciado; na pior, não teremos de aturá-lo por mais de quatro. Por acréscimo, um Presidente que queira assegurar a sua reeleição deverá abster-se de decisões arbitrárias e parcialidades que lhe minem o prestígio, já que a sua actuação durante o primeiro mandato irá ser julgada pelos votos.

No novo sistema que se defende, as desvantagens são também óbvias: ainda que o Presidente seja considerado pela maioria um bom titular do cargo, só poderá mantê-lo por sete anos, em vez de oito; e se for maioritariamente considerado um mau Presidente, o eleitorado terá de suportá-lo durante sete anos, em vez de quatro. Neste último caso, em vez de ser julgado pelos votos a meio do seu desempenho, será julgado apenas por sondagens imprecisas e inconsequentes.

Onde estão afinal as vantagens da mudança?

quinta-feira, 20 de janeiro de 2005

Contra os círculos uninominais

O nosso país parece ser pródigo em diagnósticos inteligentes e remédios tolos, em análises lúcidas e soluções ingénuas.

Veio de novo gente a terreiro defender a reforma do sistema político, verdadeira necessidade nacional, mas quem o fez não encontrou maior prioridade do que a criação de círculos eleitorais uninominais. O que, diga-se de passagem, não só não constitui uma prioridade, como promete os resultados mais aberrantes.

Quem nunca estudou ciência política fica desculpado por ignorar que, já há mais de duzentos anos, havia entre os primeiros constitucionalistas norte-americanos (os autores dos Federalist Papers que forneceram a seiva intelectual da Constituição americana) quem fizesse notar que, para dificultar a corrupção política, deveria haver uma prudente distância entre o eleitorado e os seus representantes, de modo que as relações e os vínculos pessoais interferissem o menos possível na actuação daqueles.

Por cá pretende-se seguir o caminho inverso. Defende-se uma relação cara a cara entre os eleitos e os seus votantes, pretende-se até que haja horários de contacto e atendimento pessoal. O deputado ficaria assim transformado numa espécie de mandatário, obrigado a servir os interesses de quem o elegesse.

Quem pensa que tudo iria correr bem à velha maneira inglesa deve estar equivocado, porque nós não somos ingleses nem temos a mentalidade ou as tradições deles. Somos portugueses, com hábitos arreigados de nepotismos, clientelas, caciquismos, conluios, negociatas, favores e compadrios, demagogias e venalidades; acaso queremos transportar tudo isso para uma relação mais próxima entre eleitores e eleitos? Pelo contrário, uma tal relação deve ser o mais distanciada possível – no sentido, obviamente, de distanciada das pessoas e não dos seus problemas.

A regra para os círculos eleitorais deve ser a de eles corresponderam ao âmbito dos mandatos: para órgãos de freguesia, a própria freguesia; para órgãos municipais, o concelho; para órgãos regionais, a região; para órgãos nacionais, o país. É incongruente pugnar por um arranjo diferente. Que sentido faz que um deputado vá defender interesses locais para o Parlamento, a quem cabe zelar pelo interesse geral de todo o país? Não faltariam, como já se viu, deputados a chantagear governos, a condicionar leis e orçamentos, a institucionalizar a troca de favores para satisfazer interesses municipais ou petições particulares de pessoas e empresas da sua zona eleitoral. É esse o caminho a seguir? Eis a questão nua e crua: a assembleia nacional deve representar toda a nação e zelar pelo interesse geral ou a sua função é servir de megafone para clientelas meramente locais? É isso que temos de decidir.

A solução correcta, ainda por poucos defendida, é a criação de um círculo nacional único para a eleição dos deputados à Assembleia da República. Isso contribuirá também para clarificar hierarquias dentro dos partidos. De caminho, evita-se um pouco do ridículo a que se tem assistido com a dança arbitrária dos lugares, as movimentações de nomes entre distritos, os folhetins da escolha dos cabeças-de-lista e outros episódios inenarráveis da política à portuguesa, que só não contribuem para desprestigiar ainda mais as nossas instituições porque o baixo nível a que estas chegaram já não o permite.