quinta-feira, 10 de agosto de 2006

Dois pesos, duas medidas

Que uma certa tradição europeia de anti-semitismo continua viva e bem enraizada, isso tem-se notado a olhos vistos no decurso desta guerra que envolve Israel e o Hezbollah, perto da fronteira sul do Líbano.
Tem sido confrangedor notar as diferenças de tom e de linguagem, as subtis nuances e avaliações com que se descrevem as investidas e as perdas dos dois lados da contenda. Os repórteres, supostamente, deviam ser isentos na informação que difundem, mas muitos deles não resistem a infiltrar nas descrições e nos comentários o discreto partidarismo com que analisam os factos – e ele é, por via de regra, anti-israelita, o que é o mesmo que dizer, anti-judaico.
Eis aliás o que parece conferir às suas análises uma certa aura politicamente correcta, que neste conflito específico parece transcender em muito os tradicionais preconceitos de "esquerda", visto que ela alastrou também a outras tendências da comunicação social. Hoje, dir se ia que ser anti árabe não fica bem, seja em que circunstância for, e somos levados a pensar que ser neutral também não. Embora neste caso seja difícil ser neutral.
Dois pesos e duas medidas são utilizados a cada passo dos acontecimentos. Do lado israelita, registam-se mortos e feridos; do lado libanês, há vítimas inocentes. Os israelitas fazem pesados bombardeamentos, que provocam cenários de destruição dantesca; os seus inimigos apenas lançam mísseis, e não fazem mais do que ripostar. Os israelitas causam devastação, os guerrilheiros causam estragos.
Adianta mudar a perspectiva? Pois mudemos. Do lado libanês, as crianças são as principais vítimas; do lado israelita, não se faz muita questão de esmiuçar quem são, e parece que nunca são crianças. No sul do Líbano, há já cidades-fantasmas; no norte de Israel, a principal cidade industrial do país, Haifa, está quase paralisada e com duas mil fábricas encerradas, e várias outras localidades foram quase evacuadas, mas isso não parece causar tanta indignação. Israel está a ocupar de novo a parte meridional do Líbano, e isso é uma monstruosidade; os árabes querem de novo destruir Israel e eliminá-lo do mapa, mas paciência, já sabemos que assim é, não vale a pena fazer drama nem mencionar o assunto. O que se está a passar no Médio Oriente é uma vergonha, dizem-nos, porque o mais forte – Israel – faz o que quer; o mais fraco – o Hezbollah – não está a fazer o que quer, coitado, apenas está a resistir com bravura, e quase se conclui que o que faz é por consenso entre as partes...
Não há paciência. Quando a cegueira toma conta das análises e dos comentários, as pessoas comuns de vez em quando apercebem-se e viram as costas. Mas quando ela apenas fecha um olho e mantém o outro furtivamente aberto, parece que está só a proferir sentidas considerações morais e presta-se-lhes alguma atenção por isso, pois os efeitos da guerra sempre nos chocam e nos indignam. É uma propaganda insidiosa, esta.
Ora o rigor da informação consiste, entre outras coisas, em não fazer jogo sujo com os subtis cambiantes da linguagem, fazendo o odioso dos factos cair apenas sobre um dos lados. E quando o lado visado é precisamente aquele a quem se pretende negar o simples direito à existência, convenhamos que as considerações morais perdem logo a moralidade toda.
Às vezes, sinceramente, chega a parecer que muitos europeus ainda sonham com um Holocausto por procuração.