quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Os dois andares da democracia

Entre nós, publicitam-se e defendem-se ideias e programas partidários sem entraves de maior, fazem-se livremente campanhas e sondagens, todos os cidadãos maiores podem exprimir através do voto a orientação geral das suas escolhas, os parlamentares e o líder do Governo são eleitos, os governos ascendem e caem, os maiores partidos alternam no exercício do poder e este é balizado por normas constitucionais que dão corpo de letra a um vasto consenso sobre quais devem ser as regras do jogo político.
Somados todos estes aspectos, parece haver poucas razões para duvidar que vivemos no seio de uma democracia representativa plena. Mas examinemos melhor.
A democracia é um edifício de dois andares. No andar superior, as coisas passam-se como atrás foi descrito. Há um clima de livre concorrência entre pessoas e doutrinas, entre ideias e projectos, entre idealismos e ambições pragmáticas, e os vencedores são sempre apurados através do voto. Tanto o poder legislativo como o poder executivo emanam dele. Os que o exercem são, sob um ponto de vista formal, os nossos representantes na estrutura cimeira do Estado ou das autarquias.
Mas no rés-do-chão deste edifício as coisas passam-se de outro modo. O debate interno encontra-se esclerosado ou foi suprimido, as iniciativas e as inovações são barradas por estrangulamentos burocráticos ou entraves estatutários, os contactos interpessoais são restringidos, o acesso à informação vital é vedado, a participação de certas candidaturas em contendas eleitorais pode ser impunemente boicotada, os regulamentos podem ser descaradamente infringidos, a admissão à militância política é reservada ou condicionada e tende a funcionar quase em regime de clube privado, as equipas no poder barricam-se metodicamente para evitar a substituição ou a alternância. O andar térreo do edifício são os partidos políticos.
Ora acontece que o acesso ao primeiro andar se faz através do rés-do-chão. E muitos daqueles que no andar de cima aspiram a serem eleitos, e que dependem de uma eleição para poderem assumir os cargos a que se candidatam, provêm de um piso inferior onde o estatuto de candidato se adquire, não por eleição também, mas por indigitação, ou seja, por nomeação de uma burocracia já bem instalada no poder partidário.
Por outras palavras: no patamar superior, os nossos representantes são eleitos; no patamar inferior são, em larga medida, designados. Pois aí os candidatos a deputados, eurodeputados e autarcas não são apurados por sufrágio, nem constam de listas construídas segundo o método da representação proporcional, nem adquirem a sua legitimidade pelo apoio das bases, ou seja, dos meros eleitores. É a cúpula dos partidos que decide, que escolhe, que segrega, que peneira, enquanto mesmo os seus órgãos intermédios apenas propõem, opinam, dão aprovações e pareceres em nada vinculativos. São pois aqueles que se assenhorearam do piso térreo do edifício democrático, à margem de qualquer legislação ou fiscalização eficaz, que controlam o acesso aos órgãos públicos que funcionam no andar de cima.
Isto significa que a nossa democracia não é plena, mas semiplena. Existe ampla democraticidade na competição entre partidos, mas não existe em idêntica medida dentro deles.
Ora de pouco nos serve podermos eleger livremente os nossos representantes em alguns dos escalões cimeiros do poder político, nos casos em que não podemos eleger livremente os candidatos a sê-lo. Se alguém pôde fazer por nós uma escolha prévia, subordinando-a aos seus interesses e critérios, é previsível que os nossos, os dos meros eleitores, tendam a sair sempre derrotados ou preteridos. E nesta parte, pelo menos, o jogo já não deve chamar-se democracia.

A importância da indústria

Em muitos quadrantes de opinião, a terciarização da economia é vista como uma coisa boa. Consiste ela em o sector dos serviços ganhar um peso percentual crescente nas actividades económicas de um país, em detrimento da produção de bens agrícolas e industriais. É vista como um sinal de progresso, de avanço, de maturidade no desenvolvimento.
Será mesmo assim? Bem, depende do ponto de vista. Quando um país desenvolve o seu sector de serviços sem prejudicar ou desprezar os restantes, isto é, sem descurar a produção de uma parte substancial do que consome ou do que pode exportar, não vem daí nenhum mal ao mundo, antes pelo contrário. É algo que acresce ao que já se fazia antes e, portanto, uma conquista, um ganho, um crescimento.
Mas a óptica inversa já não é necessariamente verdadeira: quando se encara como um fenómeno normal e inelutável o encerramento ou a deslocação de indústrias para o estrangeiro, onde a mão-de-obra é mais barata e menos protegida, sem porfiar em combater a todo o preço tal tendência, algo pode estar bastante errado na visão dos dirigentes e dos analistas.
A razão é esta: a indústria é, de longe, o sector mais permeável à incorporação de tecnologia em grandes doses, o mais veloz na inovação, o mais concorrencial na conquista de mercado. É, de longe, aquele que se transforma e actualiza a um ritmo mais acelerado, onde a própria escala de produção torna bastante mais sensível o impacto de qualquer inovação. É, por tudo isso, aquele onde continuadamente se registam os maiores ganhos de produtividade, até porque a recompensa de qualquer avanço tecnológico ou organizacional tende a ser aí substancialmente maior.
Sabendo nós que, historicamente falando, o aumento dos salários tende a andar atrás dos ganhos de produtividade, não parece muito boa ideia deixar ir escapando aos poucos para outros países as actividades produtivas de um sector que é o que detém o maior potencial para a elevação dos rendimentos individuais. Parece até, falando grosso e depressa, uma asneira crassa.
Olhe-se em volta para esse vasto mundo e depressa se conclui que os países que hoje mais progridem economicamente, aqueles onde mais depressa aumenta o nível médio de vida, onde os salários crescem a um ritmo mais veloz e os produtos internos embaratecem mais ou encarecem menos, em termos relativos, são precisamente aqueles que mantêm ou incentivam uma indústria florescente, modernizando-a e expandindo-a em várias direcções.
Não é por acaso. A indústria pode parecer a muitos uma coisa do passado, a ponto de se deixarem seduzir pelos presumíveis encantos de uma sociedade pós-industrial, mas a produção de bens não foi tornada obsoleta pela produção de serviços, sob ponto de vista nenhum. Nos últimos dois séculos, sempre foi a indústria que mais elevou o nível do bem-estar colectivo e do desafogo económico. Quem procura a "modernidade" em economia, bem como o crescimento sustentado dos salários, talvez precise de analisar melhor onde as modernas tecnologias produzem o maior grau de impacto, inclusive nos aspectos sociais. Aliás, sob muitos ângulos, a interdependência entre indústria e serviços não pára de crescer. Quem tem uma sem a outra arrisca-se a ficar para trás.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

A idade da reforma

Um dos sonhos mais difundidos é o de poder cada um retirar-se da vida activa tão cedo quanto possível, com uma pensão folgada e saúde para gozá-la, e aventurar-se nessa liberdade nómada de fazer o que lhe apetece, sem mais âncoras nem obrigações, à medida do dinheiro fácil que mensalmente aflua ao saldo da conta bancária. Tal sonho tornou-se um padrão de vida colectivo, um paradigma de progresso, e passou a chamar-se-lhe, acrescentado de mais algumas nuances, "modelo social europeu".
Há várias décadas atrás, havia uma base demográfica que permitia alimentar esse sonho. Por cada reformado que se tornava beneficiário deste nirvana do ócio previamente prometido e assegurado, havia vários contribuintes no activo a prescindir obrigatoriamente de uma parte substancial dos seus rendimentos para que tal beatitude fosse possível.
Depois, as coisas complicaram-se: os europeus começaram a ter menos filhos, a viver cada vez mais e a gerar mais despesas de saúde; paralelamente, os jovens passaram a estudar durante mais tempo e a entrar mais tarde no mercado laboral. O sonho converteu-se em pesadelo para os políticos e gestores que deveriam assegurá-lo e mantê-lo. Porque o número de beneficiários reais e de candidatos iminentes ao ócio passou a aproximar-se perigosamente da razão de um para um, ou seja, por cada pessoa idosa retirada de qualquer actividade remunerada haveria outra mais jovem a sustentá-la, o que logo permitiu adivinhar ser uma tal situação, a breve prazo, política e financeiramente insustentável.
Quando o ócio de alguns é encargo repartido por muitos, a coisa passa, se houver esperança de iguais mordomias no futuro para os que desembolsam. Mas quando a relação entre beneficiários e sacrificados caminha a passos largos para tornar-se paritária, o caso muda de figura.
Aumentar a muito custo a idade da reforma foi um dos expedientes possíveis e indispensáveis, outro foi diminuir o montante das pensões. Mas como se morre em média cada vez mais tarde e o emprego não cresce ao mesmo ritmo galopante que as intermináveis legiões de idosos, estas soluções de emergência não constituirão a solução final.
Para quem se dedique a pensar dois minutos sobre o assunto, partindo do pressuposto discutível de que um tal "modelo social europeu" é para manter, parece óbvio que será necessário indexar rapidamente a idade mínima das reformas à esperança média de vida das pessoas, e que talvez venha a ser sensato no futuro indexar o próprio montante das pensões ao volume flutuante das contribuições para a segurança social efectivamente recebidas, a menos que se encontrem outros mecanismos indolores de compensação financeira para as oscilações negativas das receitas. O que não é possível, numa economia mundializada e deslealmente competitiva como a de hoje, é onerar de forma tão corrosiva os rendimentos do trabalho e os custos das empresas, para manter no limbo do possível um sonho fugidio tecido por gerações anteriores.
Talvez um dia se questione mesmo, mais por necessidade que por angústia ética, se o "direito à reforma" não deverá ficar afinal mais circunscrito a condições e requisitos que o próprio declínio da saúde individual justifique, em vez de continuar a ser o mero resultado imediato de uma transição etária.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

A traição dos compromissos

Demasiadas vezes tiveram já os eleitores a sensação de lhes quererem impor, após as eleições, políticas que eles não escolheram nas suas linhas gerais.

Não há que culpar disso apenas a falta de clareza, de sinceridade e de coragem com que os dirigentes partidários se apresentam nas campanhas e nos comícios. Em política, mentir faz parte das regras do jogo, se as instituições e as leis o permitem.

A questão, portanto, é fazer com que cada vez menos o permitam. A par da indispensável autorização parlamentar, expressa por maioria qualificada de dois terços dos votos, como já antes defendi, para que um partido político catapultado ao Governo possa violar o seu próprio programa eleitoral, necessário se torna também atribuir explicitamente ao Presidente da República o poder e o dever de não promulgar, com idêntico fundamento, os decretos-leis do Governo que sejam contrários ao teor desse programa. Um tal alargamento de competências presidenciais significaria refinar ainda mais o seu papel de árbitro da democracia representativa.

Mas há mais. A não promulgação de um decreto-lei, nestas circunstâncias, deveria implicar uma dupla consequência: a devolução da sua apreciação para o âmbito do Parlamento, ainda que se tratasse de matérias da competência exclusiva do Governo; e que um tal diploma, para poder ser promulgado, carecesse de o ser sob a forma de lei parlamentar, com o apoio da tal maioria qualificada, ou com prévia autorização do próprio Parlamento, devidamente especificada no seu âmbito e com idêntica maioria.

Introduzir-se-ia assim um sistema de dupla fiscalização da conformidade das políticas governativas com os programas eleitorais apresentados pelos partidos donde brotaram os governantes eleitos: uma, de iniciativa parlamentar, desde que suscitada por uma percentagem significativa dos deputados (digamos, por exemplo, um quarto ou um terço destes, a fim de inviabilizar a guerrilha institucional dos pequenos partidos sem vocação de poder); a outra, presidencial, como parte dos poderes arbitrais concedidos ao supremo magistrado do país.

Contrariamente ao que muitos pensam, a democracia não é um sistema acabado e perfeito. Antes pelo contrário: a experiência vai mostrando que é possível e necessário introduzir pequenas melhorias nas suas regras de funcionamento, destinadas a colmatar imperfeições e omissões que só a própria experiência do regime democrático vai pondo à mostra. Tal como as sociedades onde funciona, a democracia é um sistema em evolução.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A regra da vinculação eleitoral

Numa época tão obsessivamente preocupada com o pragmatismo e os objectivos de curto prazo, deve parecer no mínimo fora de moda que alguém se preocupe e se pronuncie sobre o essencial, isto é, sobre os princípios e valores em nome dos quais um país deve ser governado e sobre o tipo de sociedade para onde se pretende caminhar.

Um desses princípios fundamentais em política é a honestidade. Relegada para o baú das ingenuidades ideológicas, sobrepôs-se-lhe facilmente o gosto pelas promessas fáceis, pelas manobras de bastidores pouco escrupulosas, pelas tácticas dúbias que parecem propiciar melhor as vitórias eleitorais. Os eleitores sabem que é assim e parecem conformados, mas isso resulta sobretudo de se sentirem impotentes.

Haverá porém algo que se possa fazer para reduzir a margem de actuação da mentira, da corrupção, da falta de escrúpulo? Haverá alguma regra que permita inviabilizar a trapaça e o descaramento impúdico? Pelo menos em certos domínios, há.

Uma regra possível consiste em interditar constitucionalmente aos partidos que a sua actuação governativa vá em sentido contrário ao do programa eleitoral com que se apresentaram a sufrágio, excepto com uma prévia autorização parlamentar.

O objectivo óbvio de uma tal regra é evitar que se minta tanto aos eleitores durante as campanhas eleitorais. Ainda que não inviabilize a demagogia e as promessas populistas, nem desencoraje as opções arrevesadas que mais facilmente rendem votos, impede pelo menos que se faça no governo exactamente o contrário do que se prometeu fazer antes de nele entrar. E ao dizer isto, salta-me imediatamente à memória o exemplo recente de um certo líder partidário que prometeu uma redução drástica de impostos (até lhe chamou enfaticamente "choque fiscal") e uma das primeiras medidas que tomou, depois de eleito, foi precisamente o agravamento deles. Houve "choque fiscal", sem dúvida, mas ao contrário do que se esperava.

Não é de excluir que circunstâncias conjunturais prementes e indisfarçáveis obriguem um governo a mudar de rumo, em relação ao previsto e prometido. Pode acontecer. Mas o princípio básico da honestidade postula que as promessas eleitorais são para cumprir, o que é o mesmo que dizer que não é legítimo mentir aos eleitores. E isso significa que só com carácter excepcional deve um governo ser autorizado a desviar-se do seu próprio programa eleitoral.

Se alguém o deve autorizar, avaliando a excepcionalidade das circunstâncias e outorgando a legitimidade das medidas desviantes, a instituição própria para o fazer é o Parlamento. Mas para que um partido ou coligação dominantes não possam consegui-lo levianamente, deve a Constituição exigir uma maioria qualificada para o efeito (na minha opinião, não inferior a dois terços dos votos parlamentares).

Uma regra destas, não resolvendo tudo, sempre resolveria alguma coisa.

sábado, 20 de outubro de 2007

Peregrinação Sentimental

Poesia Lírica e Erótica

Novo livro de Rui Valada:

«Uma melopeia nova para um tema velho,
eis o que vos trago,
ó desorientados adoradores de mitos,
idólatras das aparências e das meias-tintas,
uma nova ânsia e um novo fôlego
vos dou de regalo à vista e aos ouvidos,
como uma bússola para o coração.
Quero que nestes versos pulse a ousadia dos
precursores
e acreditá-lo será deveras o primeiro passo
da vossa temerosa e dúbia iniciação,
(...)
Um incitamento à própria liberdade
encontrareis aqui, embora vos não pareça,
e à independência da mente e dos sentidos
será este cântico consagrado.»
(do Prólogo)

Graal Editores, 64 pp., 14 x 21 cm, ISBN: 978-972-8977-04-7, € 9,90

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Política e gestão pública

Um certo político francês, um dos mais massacrados de sempre pelo jornalismo inclinado ao "politicamente correcto", escreveu peremptoriamente que a ausência de escolhas claras é a pior inimiga da democracia. Talvez haja um certo exagero no carácter superlativo desta afirmação, mas não o havia ao acrescentar que a democracia enfraquece quando já não há diferença substancial entre a maioria e a oposição, quando a esquerda e a direita deixam de ser fiéis aos seus valores, quando mais ninguém tem a coragem de fazer a política para a qual foi eleito.
A tal ponto as coisas chegaram, com o progressivo esvaziamento das convicções teóricas e doutrinárias, que a maioria do eleitorado já não espera muito mais da alternância democrática do que a substituição periódica dos governantes, de uma pequena franja dos parlamentares e de uma miríade de assessores, funcionários e gestores que constitui a clientela política das lideranças, acompanhando-as tal como a cauda de um cometa acompanha a sua cabeça. Com a mudança de protagonistas já não se espera uma mudança significativa de políticas, como se a política em si se tivesse actualmente reduzido a uma gestão mais ou menos pragmática dos assuntos correntes do Estado e da economia. Pior do que isso, já quase se não distingue entre política propriamente dita e a mera gestão dos assuntos públicos.
Há três sintomas disso. Um deles está na frequência com que a oposição clama querer fazer algo melhor que o Governo, mas não diferente. Outro reside na tendência obsessiva com que a "direita" e a "esquerda" fingem renunciar a sê-lo e travestir-se num "centro" algo indefinido e indistinto. Outro ainda encontramo-lo no descaramento subtil com que os políticos eleitos fingem assumir uma postura de Estado, alegadamente séria e responsável, para não correrem os riscos de assumir até às últimas consequências os imprevisíveis resultados das reformas que atabalhoadamente preconizaram nos seus programas e nas suas campanhas.
Essas são, sem dúvida, algumas das causas da crise actual da política. Já ninguém parece saber muito bem para que ela serve, excepto para fazer batota em favor dos interesses e ambições pessoais dos próprios protagonistas. Como agravante, as organizações partidárias estão a tornar-se cada vez mais opacas, esotéricas, fechadas e centralizadas, diminuindo as possibilidades de participação dos cidadãos no debate e no combate políticos. Não é um rumo auspicioso.
Poucos compreendem realmente o alcance do facto de se ter entranhado tão facilmente na gíria quotidiana a expressão e a convicção de que "quanto mais as coisas mudam, mais tudo fica na mesma". Porque, no que toca à política, ela existe precisamente para que alguma coisa mude de facto. É a simples gestão das coisas públicas, com a qual ela tende cada vez mais a ser confundida, que se ocupa de que elas fiquem na mesma, limitando-se a tentar optimizar o seu actual desempenho.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Política de imigração

Como deveria ser evidente, a política de imigração não é somente a gestão dos fluxos migratórios. Nela se inclui também a política de integração.

Mas desfaçamos equívocos. Gerir os fluxos migratórios não se reduz ao esforço de controlar, contabilizar e regularizar os imigrantes que vão chegando ou ficando, mesmo acrescentando-lhe o esforço adicional de lutar contra a imigração clandestina. O país tem de escolher qual a imigração que lhe convém, seleccionar as suas origens e qualificações, fixar contingentes, regular a composição diversificada e influenciar a distribuição geográfica das correntes migratórias.

Contra o caos existente, não é solução aceitável optar por uma regularização global de todos os clandestinos. Não só isso constituiria um incitamento velado a uma massa crescente de aventureiros e desesperados predispostos a migrar ilegalmente, como significaria o Estado render-se a uma situação de facto e renunciar ao seu dever de selecção criteriosa. Esse tipo de falsa generosidade humanista, afectando ares de boa consciência, não é mais do que a máscara política da cobardia em enfrentar um problema que se deixou avolumar durante demasiados anos e alimentar-se da própria incúria. As regularizações são mais fáceis que as expulsões, sob todos os pontos de vista, daí que saiam agora da cartola como remédio de emergência.

Abrir as portas quase indiscriminadamente ao chamado "reagrupamento familiar" dos imigrantes é outra parvoíce. Significa acrescentar aos muitos indesejáveis que já cá estão um número ainda maior de indesejados, convidá-los a proliferar pelo afluxo e pela procriação #in loco#. Dificilmente se poderia inventar coisa melhor para agravar ainda mais aceleradamente os crescentes desequilíbrios demográficos. E o raciocínio vale, por maioria de razão, para os imigrantes que provêm de outras zonas linguísticas.

A política dura e selectiva que vai ser seguida em França, tradicional país anfitrião, deveria servir-nos de modelo. O Estado deveria fixar para cada ano o número e a composição étnica dos estrangeiros que o país esteja realmente em condições de acolher dignamente. Deveria condicionar a vinda dos imigrantes a uma garantia prévia de trabalho e alojamento, evitando a proliferação da delinquência e de bairros degradados nos subúrbios. Deveria proibir o regresso por um período muito alargado, ou até definitivamente, a todos os que sejam apanhados em situação ilegal, reconduzidos ao seu país ou condenados em processos criminais. Todos os candidatos a uma autorização de permanência ou residência deveriam vincular-se explicitamente e por escrito a respeitar as leis, os costumes, os símbolos e os valores constitucionais do país anfitrião. E todos os imigrantes já em situação regular e definitiva não deveriam ser autorizados a trazer a sua família mais chegada senão na medida em que demonstrem ter capacidade financeira para a sustentar e alojar decentemente e aquela, antes de penetrar no nosso território, faça prova de ter adquirido já uma capacidade pelo menos rudimentar de falar e escrever o português. Analogamente, a ninguém deveria ser permitido instalar-se duravelmente no país sem se dar ao esforço de dominar a língua, falada e escrita, ou sem se comprometer a isso num prazo definido.

Assim se defende a identidade nacional e se propicia a integração dos que a merecem. O resto é demagogia.

O IVA social

A nova coqueluche dos regimes fiscais na Europa, já experimentada com resultados encorajadores pelos alemães, é o chamado "IVA social". Basicamente, ele consiste no financiamento da protecção social através de um acréscimo do imposto indirecto sobre as transacções, libertando os assalariados e as empresas, no todo ou parte, do pesado encargo contributivo que hoje suportam.

O sistema parece funcionar tão bem que até o novo presidente francês fez dele um dos temas fortes da sua campanha eleitoral e do seu programa governativo, prometendo tentar aliciar os restantes parceiros europeus a aderir a ele.

As vantagens parecem evidentes. A abrangência do IVA é muito superior à das contribuições sociais, pois incide sobre todos os factores produtivos incorporados no preço de venda dos bens e serviços (e não apenas sobre trabalho prestado no próprio país) e sobre todas as transacções (independentemente do grau de incorporação do trabalho nacional nos bens e serviços transaccionados). Além disso, permite taxar as importações e exonerar as exportações, fazendo aquelas contribuir também para o sistema de segurança social e contrabalançando em parte os efeitos do dumping monetário, fiscal, ecológico e social praticado por muitos países emergentes (os quais conseguem manter preços mais baixos porque as respectivas empresas beneficiam de uma moeda artificialmente desvalorizada, pagam impostos ridículos, quase não têm de respeitar normas anti-poluição e não fazem descontos para um sistema de protecção social).

Na prática, diminuindo o custo do trabalho interno, o "IVA social" permite atenuar o impacto negativo da actual sobrevalorização do euro nas exportações e tem o mesmo efeito prático que uma desvalorização da moeda europeia. Claro que, ao taxar as importações, produz um aumento dos preços dos produtos importados, mas esse é também um dos efeitos pretendidos para proteger o emprego local. Se os produtos estrangeiros se tornam menos competitivos, os produtores e os trabalhadores nacionais beneficiam. Quanto aos produtos locais, é de esperar que o acréscimo da taxa do imposto seja compensado, no seu efeito sobre os preços finais, pelo decréscimo ou eliminação das contribuições directas para a segurança social que pesam sobre os salários e as entidades patronais. Espera-se até que seja mais do que compensado, visto que as importações passam a contribuir também para o mesmo fim e permitem um alívio adicional a empresas e assalariados.

O "IVA social" actua portanto como um doping sobre a competitividade nacional, de carácter não directamente proteccionista, e ao aligeirar a carga fixa que pesa sobre a remuneração do trabalho, permite também amortecer as flutuações do emprego quando a conjuntura se degrada. Em circunstâncias normais, constitui ainda um factor de maior competitividade para as empresas baseadas em trabalho intensivo.

À primeira vista, são só vantagens. Para nós, portugueses, que temos uma aptidão especial para criar más imitações de tudo o que se inova lá fora, o que se pode razoavelmente esperar é que algum governo habilidoso se aproveite da nova tendência para, a coberto dela, agravar ainda mais o peso global das contribuições e impostos.

O impacto das migrações

É conhecido o ditado segundo o qual cada um vê apenas o que quer ver. E a sabedoria popular, na sua eterna ânsia de generalizações, logo acrescenta que o que cada um quer ver é apenas o que lhe convém.

Nada me parece mais errado. Seria menosprezar o papel da ignorância, da superficialidade, das convicções grosseiras e apressadas que o senso comum é exímio em urdir. De facto, muitas das coisas que se pensam erradamente nada têm a ver com o interesse pessoal ou a parcialidade deliberada. Derivam, muito simplesmente, de uma óptica deficiente das coisas.

Não há grandes motivos para excluir em absoluto destas considerações o muito que se tem dito e escrito sobre as migrações. As fontes de erro, neste caso, continuam a ser essencialmente as do costume; as suas consequências, essas é que podem vir a ser muito piores em grau do que o habitual.

Muita gente bem-intencionada tem preferido ver nos fenómenos migratórios apenas deslocações massivas de populações fugindo à miséria, providenciais acréscimos de mão-de-obra e de vitalidade demográfica nos países anfitriões, miscigenação cosmopolita de culturas, et cetera. A outra face da mesma moeda consiste em desvalorizar o choque de civilizações, a explosão da criminalidade, o aumento notório da insegurança, a proliferação dos bairros suburbanos degradados, o recrudescer da conflitualidade civil. De um modo geral, recusa-se associar uma coisa à outra ou, em alternativa, condescende-se em aceitar que tais consequências indesejáveis não passam de um pequeno mal necessário e transitório que terá o seu fim com a fatal integração futura dos imigrantes. E como sustentáculo comum destas suposições, qual cereja em cima do bolo, encontramos o pressuposto dogmático de que as várias culturas são apenas diferentes, mas não incompatíveis.

Porque não é politicamente correcto, apesar de óbvio, torna-se hoje difícil sustentar que as migrações não são todas iguais, nem na sua composição nem nos seus efeitos. Porque o que isto quer realmente dizer não é tão-só que elas são diversas e contrastantes, mas que provêm de regiões com níveis de civilização distintos. E conforme estes sejam mais ou menos atrasados, sob múltiplos aspectos, varia enormemente o seu impacto.

Uma das consequências das migrações incontroladas tem sido o de infectar sociedades evoluídas com focos perigosos de retrocesso civilizacional. As sucessivas ondas de imigrantes não assimilam ávida e apressadamente os padrões culturais e cívicos dos países anfitriões; pelo contrário, destilam para eles, de um modo persistente e duradouro, as influências multifacetadas do seu atraso, num grau mais do que proporcional ao crescimento da sua expressão demográfica.

Quando chegam, os imigrantes não trazem apenas mão-de-obra e aumento populacional, trazem também mentalidades, preconceitos, atitudes, costumes, intolerâncias, violências e conflitos que as sociedades evoluídas nem sequer estão bem preparadas para enfrentar, porque lhes são culturalmente estranhos e institucionalmente desajustados. Esse é o perigo.

Incentivos fiscais ao crescimento familiar

Há várias causas culturais para a fraca taxa de natalidade que se constata na maioria dos países economicamente avançados.

Algumas são óbvias: a evolução do papel social da mulher, que resvalou demasiado para estilos e padrões de vida masculinizados ou egocêntricos; a actual dificuldade de compatibilizar maternidade e carreira profissional, devido à inadequação das regras laborais e aos apoios insuficientes; a maior precariedade dos vínculos afectivos e matrimoniais, agravada por uma legislação civil e por uma jurisprudência que favorecem a irresponsabilidade nas separações e nos divórcios; a menor motivação para as dificuldades e para as compensações emocionais geradas pelos filhos, agora em confronto directo com múltiplas outras possibilidades de vida que exigem disponibilidade pessoal e liberdade de movimentos; o estilhaçamento da tradicional família alargada, que reduziu ou inviabilizou a contribuição prática das gerações mais idosas para os cuidados aos netos; a proliferação da sexualidade livre, em si mesma avessa a vínculos, compromissos e responsabilidades; e enfim, uma concepção hedonística e voraz da vida para a qual as satisfações supremas são as do gozo imediato e as realizações de curto prazo.

Outras causas são frequentemente invocadas, mas quando analisadas à lupa parecem apenas desculpas piedosas. Uma delas é a carestia de vida e os excessivos encargos económicos com os filhos. Se pensarmos, porém, que as gerações actuais têm o mais elevado nível de rendimentos de sempre, bastante superior ao de gerações precedentes, e que a taxa de fertilidade caiu drasticamente apesar disso, a conversa rui pela base. A precariedade do emprego também não é justificação suficiente. Outras gerações a tiveram maior, quando em regra apenas um dos cônjuges gerava rendimentos e não havia o actual nível de protecção ao desemprego. Diz-se também que as exigências com as crianças são hoje muito maiores. É verdade, mas nem isso impede que se atinjam níveis recordes de gastos supérfluos ou perdulários com elas. Sejamos, no entanto, condescendentes e juntemos também estas ao rol das causas comuns alegadas para o afunilamento reprodutivo.

Mas acrescentemos de imediato que o Estado se dispensa de fazer a sua parte, no que respeita aos incentivos fiscais. Quando existem, são tão insignificantes que não chegam para inflectir tendências. Pequenos abonos de família, pequenas deduções à colecta significam pouco mais que nada. São úteis para quem tem filhos, mas não convencem ninguém a tê-los.

A única política fiscal digna desse nome, no plano dos incentivos ao crescimento familiar, seria introduzir um regime de capitação extensivo aos descendentes. Quando um casal declara rendimentos, estes são divididos pelo coeficiente dois para determinação da taxa de imposto aplicável. Mas os filhos e outros dependentes não são considerados como pessoas adicionais, resumem-se a simples apêndices que proporcionam pequenos benefícios. Não há justiça nisso. O rendimento dos agregados familiares deveria ser dividido por um coeficiente igual ao número total dos seus membros, apurando-se algo equivalente a um rendimento tributável per capita. Assim sim, valeria a pena ter filhos, pelo menos de um ponto de vista fiscal, mesmo sem abonos ou deduções. E tornaria supérfluo penalizar as famílias sem eles, como já por aí se fala em desespero de causa.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Pensamentos Indiscretos

Sátiras e Aforismos

Novo livro de Rui Valada:

«A seriedade não é por vezes senão uma futilidade mais solene.»
«Cuidado com as grandes frases! Nelas costumam esconder-se as pequenas ideias...»
«O indivíduo que nunca conseguiu afirmar-se pelas suas próprias realizações pode ainda tentá-lo através das alheias: assim nascem, regra geral, o adepto, o divulgador e o crítico.»
«Em política, o caminho mais curto entre dois pontos é a linha sinuosa.»

Graal Editores, 64 pp., 13 x 21 cm, ISBN: 978-972-8977-05-4, € 9,90

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quinta-feira, 11 de outubro de 2007

O problema do PSD

É muito simples: o PSD não é um partido político. Ou para ser mais exacto e explícito: dentro do PSD há vários partidos políticos que usam a mesma designação, os mesmos símbolos, as mesmas sedes, mas que são organizações diferentes.
Que periodicamente se coligam na mesma campanha eleitoral, mas que perseguem objectivos diferentes.
Que se julgam tentáculos de um mesmo corpo, mas que pertencem a famílias políticas diferentes ou que nem sequer sabem a qual pertencem, no arriscado e improvável pressuposto de todos pertencerem a alguma.
Que têm programas tão escandalosamente diferentes que andaram durante quase vinte anos a evitar mexer na melindrosa questão da actualização do programa "comum" que aparenta uni-los.
Que fazem entre si uma oposição muito mais feroz do que ao próprio Governo, com o mesmo grau de diferença que há entre o rosnar de um buldogue e o ladrido de um caniche.
Que têm os mesmos estatutos e regulamentos, mas que cada um deles usa à sua maneira, variando a receita e as dosagens à medida das respectivas conveniências e idiossincrasias.
Que, no plano interno, praticam entre si uma acirrada alternância democrática, apenas porque ainda não se deram ao incómodo de perceber que têm em comum o não gostarem de alternar e o cada vez menos lhes apetecer serem democráticos (e por isso mesmo, sempre que possível, evitando sê-lo).
Que gostam de encerrar sedes uns aos outros, de expulsar ou afastar militantes uns dos outros, de boicotar as iniciativas uns dos outros e, sempre que a oportunidade surja, de se insultarem desabridamente uns aos outros, como possível intróito para ameaças várias ou um par de estalos.
Que fomentam com zelo os seus gangues privativos, com especializações que podem ser diferentes ou tendencialmente comuns, uns actuando preferencialmente nos multibancos, outros nos loteamentos, outros nas extorsões aos construtores e empreiteiros, outros ainda na apropriação das mordomias partidárias, mas que são amiúde incapazes de improvisar uma estratégia comum para uma malfeitoria convenientemente organizada e mutuamente proveitosa.
No interior desta espantosa organização multifunções, tipo dez-em-um pelo menos, cada facção (ou seja, cada partido) tenta bloquear as inscrições dos novos militantes trazidos pelas outras, ao mesmo tempo que arrebata para as suas listas tudo quanto é bicho ou gente, desde o tio e o cunhado e o primo até ao gato e ao canário e àquele vagamente lembrado tio-avô que já morreu, mas que deixou o seu voto em testamento.
Este é o retrato do PSD na sua última versão conhecida, o chamado "estado da arte", desconhecendo-se ainda se o seu recente Congresso Nacional irá trazer algumas actualizações e aperfeiçoamentos.
Uma coisa parece certa: serão necessárias profundas reformas estatutárias e aquecer os ânimos suficientemente ao rubro para permitir a fusão destas várias entidades internamente coexistentes num único partido político. Algo que, no mínimo, introduza o fair-play, há muito ausente da maioria das jogadas.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Um serviço cívico obrigatório

Em muitos sectores, o Estado e as autarquias não cumprem adequadamente as suas obrigações por falta de verbas ou de outros meios. Nalguns deles, essas obrigações carecem mais de trabalho que de equipamentos, mas não há com que pagá-lo.
Muitas das nossas praias e costas carecem de limpeza adequada. Muitas matas e florestas precisam de ser desatulhadas de folhas secas e outros materiais combustíveis que alimentam os grandes incêndios estivais. Muitos parques e jardins, nas nossas cidades e vilas, carecem de manutenção e embelezamento. Muitos dos nossos serviços públicos, com carácter permanente ou em crises sazonais, revelam atrasos e deficiências causados pela escassez de pessoal, umas vezes crónica, outras vezes derivando de férias ou licenças. Em muitas escolas, há pequenas crises esporádicas originadas pela falta de pessoal auxiliar. Em muitas corporações de bombeiros, o número de voluntários tornou-se manifestamente insuficiente. Muitos idosos vivem entregues a si mesmos, sem qualquer apoio domiciliário. E muitas associações de apoio humanitário vêem cerceado o alcance dos seus esforços pela falta de colaboradores.
No entanto, e ao mesmo tempo, inúmeros desempregados aguardam sem qualquer ocupação que se extinga o seu direito ao subsídio de desemprego, e permite-se-lhes mesmo recusar ofertas de emprego sem quaisquer penalizações. Nas escolas, muitos estudantes ficam desocupados durante as longuíssimas férias de Verão, desresponsabilizados de quaisquer obrigações.
Fará isto algum sentido?
Todas aquelas falhas da nossa sociedade de escassos recursos podem, no entanto, ser colmatadas através de um serviço cívico obrigatório. Todos aqueles que recebem ou podem receber algum grau de protecção social contraem uma dívida moral para com a sociedade que os protege. Uns pagam-na através dos seus impostos e das suas contribuições obrigatórias para a segurança social. Outros, que transitoriamente não estão a ser contribuintes líquidos para essa rede de protecção, mas beneficiários directos e desaproveitados de um tal sistema, devem contribuir com algo mais do que a inércia e o parasitismo.
O novo serviço cívico obrigatório deveria recair, antes de mais, sobre todos os desempregados que estão a ser subvencionados, o que também contribuiria para impedir ou dificultar as fraudes. E logo a seguir, sobre todas as crianças e jovens em idade escolar, durante um período relativamente curto das suas férias.
A ética republicana é feita de direitos e deveres, de compromissos e solidariedades. E um serviço cívico obrigatório seria para muitos intervenientes, mas sobretudo para os jovens, a oportunidade altamente pedagógica de participar em actividades de interesse geral, de colaborar com o mundo associativo e com a gestão autárquica, de dar um conteúdo prático a uma noção colectiva de solidariedade que amiúde não passa de um conceito hipócrita e descartável.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Um mito desfeito

Os últimos anos têm-nos feito assistir à queda de uma das convicções mais habilmente insinuadas pela artificiosa conveniência de várias e sucessivas legislaturas: a de que tantos portugueses teriam de pagar impostos tão elevados porque havia muitos outros que, pura e simplesmente, não pagavam, e pelo menos outros tantos que pagavam bastante menos do que deviam. Ou seja, uns pagariam pelos outros.
Agora, após vários anos de feroz e enraivecida perseguição às fraudes e à evasão fiscal, a nossa perspectiva teve de mudar.
A azáfama das inspecções, a parafernália de meios informáticos utilizados, os refinamentos legislativos, a quantidade de processos em trâmites, o número de penhoras efectuadas, o volume das cobranças em atraso que foi sendo recuperado, o crescimento avantajado das receitas, tudo isso tem somado êxitos e recordes, segundo nos informam as muito apregoadas estatísticas da propaganda governamental.
Mas, surpresa das surpresas, os impostos não baixaram, nem as promessas do Governo para lá se encaminham. Pelo contrário, têm continuado a subir, de uma forma ou de outra. Nuns casos, por agravamento das taxas; noutros, por alargamento da sua base de incidência ou por actualização insuficiente dos respectivos escalões de tributação; noutros ainda, por eliminação de deduções e benefícios. E à margem deles, muitas taxas cobradas pelos serviços públicos registaram aumentos bem acima das percentagens oficiais da inflação.
Conclusão: a carga fiscal está agora mais distribuída, o grau de evasão diminuiu bastante, o Estado viu aumentar significativamente as suas receitas mesmo em período de fraco crescimento económico. Mas, em vez de descer, a carga global das contribuições e impostos cresceu também e passou a onerar ainda mais os rendimentos.
Isto só mostra o grau de voracidade fiscal que está entranhado até à medula nos hábitos perdulários do Estado que temos. Quanto mais houver, mais se gasta. E para que se possa gastar mais, a obsessão é sempre a de cobrar mais ainda. Parece pois distante e remoto o ano abençoado em que alguém nos anuncie, sem faltar à verdade, que o Estado gastou menos, em termos absolutos, do que no ano anterior e que se prepara para ainda maior austeridade. De qualquer modo, se tal ouvirmos, nem vamos acreditar.
E outra coisa se demonstra: que esta voracidade por impostos já não faz grandes distinções entre "direita" e "esquerda", entre socialismo e social-democracia, entre lideranças firmes e frouxas. Em termos fiscais, a palavra de ordem é arrecadar. Parece fora de questão fazer cortes drásticos nas despesas públicas, para além de operações meramente cosméticas, ou eliminar as funções supérfluas do Estado.
Assistiremos ainda a novas investidas, no sentido de o fisco se aproximar um pouco mais do confisco? É bem provável.

sábado, 29 de setembro de 2007

Em prol da qualidade da democracia

Para evitar os desmandos e as desvergonhas a que se tem assistido nas contendas eleitorais internas dos partidos políticos, é necessário que o Estado intervenha como entidade reguladora e fiscalizadora.
Desde logo, através de uma legislação clara que moralize e discipline a organização e o funcionamento dos partidos, garantindo neles o fair-play e a democraticidade interna. E se necessário, dando poderes alargados de fiscalização às magistraturas locais, à Comissão Nacional de Eleições e ao Tribunal Constitucional, estendendo a respectiva jurisdição bem para o interior da actividade partidária. É muito o que está em causa e que o justifica.
É preciso acabar com as fraudes eleitorais, com os clientelismos, com o açambarcamento abusivo do poder pelos aparelhos partidários já instalados e engenhosamente barricados atrás de obstruções estatutárias, barreiras à entrada de novos membros, acessos exclusivos às informações pessoais e aos contactos dos militantes, regulamentos feitos à medida e uma intrincada teia de privilégios, inerências e exclusivismos.
Não é só entre os partidos que é necessário garantir a livre concorrência de pessoas, ideias e tendências. É também necessário garanti-la no interior deles.
É preciso assegurar que todos os protagonistas e seus projectos possam concorrer em igualdade de condições e oportunidades, sem se confrontarem com barreiras ardilosas e artificiais.
É preciso que a escolha dos candidatos a deputados e autarcas seja feita através de eleições internas nos respectivos círculos e não através do método da simples designação pelos directórios nacionais. Os partidos políticos são a primeira instância da democracia.
É preciso que os deputados deixem de dever subserviência às direcções partidárias de que dependeu a sua candidatura anterior e de que dependerá a seguinte.
E é preciso abolir a disciplina de voto, sem o que nunca haverá verdadeira fiscalização do poder executivo pelo poder legislativo.
Em tudo isto, é a credibilidade dos próprios partidos políticos que está em jogo, num regime cuja lógica assenta na alternância entre eles.
Através dos partidos, é a qualidade (e portanto, a credibilidade) da democracia que está em jogo, bem como o gosto dos cidadãos pela participação política e a possibilidade de aceder a ela.
Através da qualidade da democracia, são as grandes opções colectivas e a nossa qualidade de vida individual que estão em jogo.
O encadeamento pode ser subtil e pode não ser evidente para todos, mas umas coisas conduzem às outras. Portanto, não é sensato afirmar-se que os assuntos internos dos partidos só a eles dizem respeito.
Se a nossa democracia é de tipo representativo, poderá alguma vez ser irrelevante o modo de escolha dos nossos representantes, nos seus vários escalões, ou o seu grau de autonomia em relação a interesses e pressões, a baronatos e caudilhismos, a lideranças prepotentes e suas correias de transmissão?
O poder democrático começa em baixo. A fiscalização dele deve começar aí também.

domingo, 23 de setembro de 2007

Uma escola de excelência

Quando lastimamos o estado do nosso sistema de educação, não nos serve de muito apelar a "uma escola de excelência" se não fizermos algum esforço para pormenorizar em que ela consiste. Para não reduzirmos o conceito a um mero slogan, é preciso dar-lhe algum conteúdo tangível.
Obviamente que não se trata só de ter escolas bem equipadas, bem administradas e dotadas de professores competentes. Talvez essas sejam algumas das condições fundamentais da excelência, mas não a sua expressão prática.
A excelência exprime-se nos resultados obtidos. Ora a noção de resultados não pode restringir-se a estatísticas animadoras nas pautas de classificações, ou nas percentagens relativas a aprovações e reprovações, ou na quantidade de alunos que cada escola consegue fazer transitar ao escalão seguinte. Tão-pouco a qualidade de um estabelecimento de ensino pode ser avaliada apenas em função da sua posição num ranking nacional viciado e artificial, incapaz de controlar e medir todas as variáveis envolvidas no respectivo desempenho. Tudo isso não passa de fogo de artifício para o indígena ver.
Sabendo nós todas as manigâncias criativas que a regulamentação escolar e a própria prática dos estabelecimentos conseguiram introduzir na avaliação da aprendizagem, a fim de evitar reprovações e inflacionar resultados, seria pueril tentar confundir a excelência destes com a média geral das classificações.
A avaliação quantitativa com que os estudantes conseguem desenvencilhar-se de programas cada vez mais aligeirados e de testes cada vez mais facilitados diz-nos muito pouco sobre o nível real dos conhecimentos e competências com que terminam cada ano lectivo, cada ciclo de estudos, cada grau de ensino. Mas a experiência e o bom senso dão-nos a impressão certeira de que as classificações atingem médias cada vez mais elevadas, enquanto os conhecimentos reais dos alunos não param de se empobrecer. Uma tendência que só poderá agravar-se com essa ideia inspirada e peregrina de o desempenho dos professores passar a ser parcialmente avaliado em função das classificações obtidas pelos seus alunos.
Uma escola de excelência começa por recusar-se a embarcar neste logro. Exige de si própria um elevado nível de transmissão real de conhecimentos e não um mero aparato de classificações inflacionadas e de estatísticas enganadoras. Avalia na íntegra os programas que lecciona e não apenas a sua parte mais fácil. E lecciona na íntegra os próprios programas, não poupando os alunos ao que é complexo, mas necessário. Não atribui as boas notas ao desbarato, antes obriga os estudantes ao esforço, à persistência, ao método e à sistemática elucidação das dúvidas. Valoriza o mérito, distingue-o, enfatiza-o. Fornece os meios para vencer as dificuldades, mas não as elimina. Não deixa acumular falhas e deficiências nem faz de conta que as resolveu. Encaminha cada um para aquilo que lhe é acessível, mas não nivela por baixo. E ensina aos seus alunos que vivem num mundo muito competitivo e que têm de esmerar-se para ficarem aptos a enfrentá-lo. Ensina a responsabilidade, a pontualidade, a assiduidade, a disciplina, o respeito formal por quem sabe ou manda, a entreajuda, a disciplina, a metodologia adequada, a vontade de superar dificuldades.
Não tenham pena deles. Os estudantes conseguem sobreviver a tudo isso.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Voltar a exigir

Feitas previamente as críticas à falta de exigência nos programas, nos manuais e nos sistemas de avaliação dos nossos estabelecimentos de ensino, resta agora propor algumas soluções.
É preciso repor nos programas escolares tudo aquilo que é conveniente saber para obter uma formação sólida, seja qual for o seu grau de dificuldade, e não apenas o estritamente indispensável, na óptica claudicante de um piedoso “programa mínimo”. Dentro de um plano sistemático de progressão, os programas devem ser coesos e abrangentes, capazes de proporcionar um domínio suficiente das respectivas matérias e, acima de tudo, devem ser integralmente cumpridos.
E mais: tudo o que é ensinado deve ser avaliado. Fica pois fora de questão poder secundarizar ou isentar de avaliação as matérias mais difíceis, ainda que importantes, apenas para evitar reprovações. Para inviabilizar facilitismos e habilidades, isto requer regulamentação minuciosa e controlo severo pelos órgãos pedagógicos das escolas, quer sobre o cumprimento integral dos programas, quer sobre a sua avaliação exaustiva.
Quanto aos manuais, devem ser objecto de um concurso nacional periódico e seleccionados apenas dois ou três por cada matéria, sendo a selecção feita por um escol intelectual reconhecido nas respectivas especialidades e nas correspondentes áreas de docência, e não por meros burocratas ministeriais. Ao evitar-se assim a inútil proliferação de manuais possíveis para cada disciplina, poderá também impor-se um abaixamento dos respectivos preços, propiciado pelo substancial aumento das tiragens e pela drástica redução dos custos unitários.
Mas é nos sistemas de avaliação que está o factor crítico da exigência. Não sendo deficientes nem mentecaptos, a esmagadora maioria dos estudantes adaptará o seu grau de esforço ao grau de exigência da avaliação. Não é um mero palpite, trata-se de uma resposta adaptativa natural. Exactamente como acontece noutros sistemas educativos que funcionam melhor do que o nosso.
Em primeiro lugar, há que deixar cair todos os expedientes e artifícios em vigor que permitem que uma classificação negativa em determinada disciplina possa ser compensada por subtis mecanismos de médias, arredondamentos, ponderações e critérios mais ou menos flutuantes. Uma classificação negativa é algo que só deve poder ser redimido por uma posterior classificação positiva na mesma disciplina ou, em certas circunstâncias excepcionais, numa disciplina considerada alternativa, se daí não resultar prejuízo irreparável para a área curricular frequentada.
Em segundo lugar, deve ser dada primazia obrigatória ao rigor das avaliações quantitativas, ainda que se não dispensem as outras. E em caso algum se deve permitir que o aproveitamento inferior a cinquenta por cento do exigido, seja em avaliação escrita ou oral, possa ser convertido em aprovação, transição de ano ou conclusão de currículo.
Em terceiro lugar, há que devolver ao ensino básico um sistema de classificação mais rigoroso, idêntico ao do ensino secundário, como dantes era tradição, e que os preconceitos melífluos da "não discriminação" resolveram abolir. Em educação, é preciso discriminar, ou seja, dar a cada um segundo o seu mérito.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

O nivelamento por baixo

De vez em quando, é necessário fugir às análises demasiado gerais e especificar em detalhe o que não vai bem em certos domínios. Porque as análises gerais apenas podem apelar a uma inversão de valores e objectivos, mas só o confronto com o detalhe nos sugere as soluções possíveis.

No caso da educação, algo que está fundamentalmente errado é a falta de exigência nos programas, nos manuais e nos sistemas de avaliação.

Os programas de diversas disciplinas escolares têm sido cada vez mais simplificados e reduzidos, de modo a torná-los compatíveis com as reais ou supostas deficiências acumuladas dos alunos, que vão desde a leitura à interpretação, das bases fundamentais de cada matéria à cultura geral que já deveria estar implícita no respectivo grau de ensino. E a tendência lastimável tem sido a de se irem expurgando, não as matérias menos relevantes para uma formação geral ou específica, mas aquelas que se reputam mais densas e complexas e que, portanto, suscitam maiores dificuldades de aprendizagem.

Os manuais livremente escolhidos pelas escolas, apesar da diversidade que o mercado oferece, são tendencialmente os que se consideram mais fáceis de ler e manusear, independentemente da sua qualidade intrínseca, ou que vêm acompanhados de um certo aparato de planificações e exercícios que facilitam a vida aos professores. Não está pois em causa o nível máximo de preparação a que qualquer alternativa pode alcandorar os estudantes, mas o nível mínimo capaz de ser assimilado por todos sem excepção.

Quanto aos sistemas de avaliação, pelo menos até ao termo dos estudos secundários, estão actualmente concebidos para que não haja reprovações ou para que as poucas realmente inevitáveis surjam como uma anomalia, uma excepção à regra, um clamoroso fracasso da escola ou uma incúria dos professores, a quem unicamente devem ser pedidas todas as responsabilidades. Por presunção dificilmente elidível, a culpa nunca é das deficiências, das incapacidades ou das negligências dos estudantes, da sua falta de empenho ou de mérito, da sua ausência de esforço e de persistência. Neste último caso, e ao contrário do que sucede com o respectivo corpo docente, os réus estão sempre inocentes até prova em contrário; e a prova, se a houver, nem sequer é de bom tom apresentá-la ou, sequer, admiti-la. Acrescente-se ainda que há uma miríade de disposições legais e procedimentos administrativos predestinados a evitar que uma reprovação, caso a haja, produza efeitos relevantes.

Tudo isto conduz, inevitavelmente, a um nivelamento por baixo. E esse nivelamento não significa pôr tudo ao alcance da mediania, porque esta, por definição, situa-se no meio da escala dos desempenhos. Nivelar por baixo significa que, para evitar reprovações, se coloca o nível de exigência abaixo da mediocridade, ao alcance da absoluta falta de jeito ou de aptidão, prejudicando assim a própria mediania, a quem não se concede formação ao nível das suas próprias capacidades.

Há várias maneiras de tornar a educação acessível a todos. Mas esta, decididamente, não serve.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Falhas estruturais

Todos sabemos que o país atravessa, desde há longo tempo, uma enorme crise de confiança em si mesmo. Não é uma crise de identidade, não é ausência de ambições, não é descrédito nas nossas capacidades para competir com o estrangeiro. É um desencanto total e absoluto com o desempenho das sucessivas lideranças políticas, no que respeita a imprimir um rumo às nossas expectativas e aos nossos objectivos enquanto povo: aproximarmo-nos cada vez mais do pelotão da frente das nações desenvolvidas.

Há factores que são exógenos, mas que não pesam demasiado nas nossas avaliações pessimistas porque não nos afectam unicamente a nós: uma moeda europeia sobrevalorizada, que dificulta as exportações e atormenta as empresas para elas vocacionadas; a competição desleal de vários países emergentes, alavancada por uma política deliberada de dumping social, monetário e fiscal; e o fraco crescimento económico da Europa como um todo, sujeita ao espartilho das obsessões anti-inflacionistas.

Há outros, porém, que são endógenos e persistentes e que só podemos censurar a nós próprios, como a estruturação deficiente do sistema político, a resistência arreigada à flexibilização das leis laborais, a deficiente produtividade do trabalho, o clima de corrupção discreta mas quase generalizada, o défice de lealdade e de confiança interpessoal (algo que faz parte daquilo a que os economistas chamam o "capital social"), a escassez de espírito cívico e de iniciativa empresarial, a ausência de uma cultura de empreendedorismo, as deficiências dos transportes e a anarquia do trânsito, a imigração não selectiva, a excessiva carga fiscal e contributiva, a ineficiência e o espírito perdulário do Estado, a incúria do património histórico e ambiental, a falta de responsabilidade social de políticos e empresários, a ausência de uma visão estratégica para o país e, acima de tudo, a nossa crónica incapacidade de reformar o sistema educativo, tornando-o moderno e eficiente. Talvez a lista não esteja completa, mas já vai extensa.

Porém, a falta de confiança do país em si próprio não resulta da existência de todos estes pecadilho sociais, mas da incredulidade em poder pôr-lhes cobro progressivamente através da actuação competente e enérgica da chamada "classe política". Por outras palavras, o país não confia nos políticos que elege. E tem bons motivos para isso.

Há razões históricas e sociais que favorecem entre nós a proliferação da "baixa política". Mas as tradições não explicam tudo. Há que saber olhar para as falhas estruturais das próprias instituições e da arquitectura jurídico-constitucional em que se apoiam. Mais do que tudo o resto, porque o resto em boa parte depende disso, o aperfeiçoamento do nosso sistema político deveria estar constantemente na ordem do dia. E não está.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

A desvalorização dos diplomas

Não resisto a uma citação do novo presidente francês: "Que França vamos nós deixar aos nossos filhos? A que filhos vamos nós deixar a França? O que vem a dar no mesmo, pois que tudo dependerá do que tivermos sido capazes de lhes transmitir, da educação que lhes tivermos dispensado, dos valores que lhes tivermos feito partilhar, do exemplo que lhes tivermos dado."

Creio que estas palavras se aplicam a qualquer outro país. Mas receio que, no nosso caso, o prognóstico possível seja dos piores.

O nosso sistema educativo continua a ser ufanamente, e como tal consensualmente reconhecido, o pior da União Europeia. É mesmo pior, diz-se e demonstra-se, que o de alguns outros países supostamente mais atrasados que ainda são meros candidatos potenciais a juntar-se à União. A torrencial quantidade de pequenas e grandes reformas administrativas e curriculares com que o têm constantemente mimoseado, durante mais de trinta anos, pouco mais tem conseguido fazer do que ampliar-lhe as falhas ou metamorfoseá-las. E como denúncias e diagnósticos correctos não faltam por aí, deduz-se que o pelouro não teve ainda a sorte de cair nas mãos de um ministro que soubesse realmente o que andava a fazer, pelo menos no que toca à eficiência pedagógica do próprio sistema como um todo.

Aqui ao lado, os espanhóis andam a lucrar bastante com isso e devem rir-se discretamente de nós, a julgar pela quantidade de estudantes portugueses que se inscrevem nas universidades deles e pela quantidade de licenciados deles que vem encontrar emprego cá, não o tendo conseguido lá, pelo menos na sua especialidade. Mesmo com tais evidências, os erros e os anacronismos continuam por corrigir.

Na sua generalidade, o nosso sistema educativo padece de um absurdo nivelamento por baixo, de uma crónica falta de exigência e de seriedade que é subtilmente disfarçada apenas para gáudio das estatísticas, de uma incultura galopante que vai alastrando até à própria formação de professores, de esquemas curriculares que são já apenas o fruto da tradição e da inércia, de sistemas de avaliação deficientes e mediocrizantes, de falta de manutenção e de equipamentos modernos nos estabelecimentos de ensino, de uma desmoralização doentia dos próprios corpos docentes. Não há incentivos práticos para a qualidade e para a excelência, para a iniciativa inovadora, para uma cultura de resultados reais e não apenas fictícios. Está em franco declínio o respeito pelos professores, o seu prestígio e até a sua segurança pessoal e profissional.

Do lado dos estudantes, fomenta-se o expediente e a facilidade, a habilidade de progredir sem saber, a desvalorização do próprio saber em relação ao simples cumprimento das formalidades escolares.

Não nos admiremos, portanto, se o resultado final disto é a desvalorização dos diplomas.