terça-feira, 13 de novembro de 2007

A idade da reforma

Um dos sonhos mais difundidos é o de poder cada um retirar-se da vida activa tão cedo quanto possível, com uma pensão folgada e saúde para gozá-la, e aventurar-se nessa liberdade nómada de fazer o que lhe apetece, sem mais âncoras nem obrigações, à medida do dinheiro fácil que mensalmente aflua ao saldo da conta bancária. Tal sonho tornou-se um padrão de vida colectivo, um paradigma de progresso, e passou a chamar-se-lhe, acrescentado de mais algumas nuances, "modelo social europeu".
Há várias décadas atrás, havia uma base demográfica que permitia alimentar esse sonho. Por cada reformado que se tornava beneficiário deste nirvana do ócio previamente prometido e assegurado, havia vários contribuintes no activo a prescindir obrigatoriamente de uma parte substancial dos seus rendimentos para que tal beatitude fosse possível.
Depois, as coisas complicaram-se: os europeus começaram a ter menos filhos, a viver cada vez mais e a gerar mais despesas de saúde; paralelamente, os jovens passaram a estudar durante mais tempo e a entrar mais tarde no mercado laboral. O sonho converteu-se em pesadelo para os políticos e gestores que deveriam assegurá-lo e mantê-lo. Porque o número de beneficiários reais e de candidatos iminentes ao ócio passou a aproximar-se perigosamente da razão de um para um, ou seja, por cada pessoa idosa retirada de qualquer actividade remunerada haveria outra mais jovem a sustentá-la, o que logo permitiu adivinhar ser uma tal situação, a breve prazo, política e financeiramente insustentável.
Quando o ócio de alguns é encargo repartido por muitos, a coisa passa, se houver esperança de iguais mordomias no futuro para os que desembolsam. Mas quando a relação entre beneficiários e sacrificados caminha a passos largos para tornar-se paritária, o caso muda de figura.
Aumentar a muito custo a idade da reforma foi um dos expedientes possíveis e indispensáveis, outro foi diminuir o montante das pensões. Mas como se morre em média cada vez mais tarde e o emprego não cresce ao mesmo ritmo galopante que as intermináveis legiões de idosos, estas soluções de emergência não constituirão a solução final.
Para quem se dedique a pensar dois minutos sobre o assunto, partindo do pressuposto discutível de que um tal "modelo social europeu" é para manter, parece óbvio que será necessário indexar rapidamente a idade mínima das reformas à esperança média de vida das pessoas, e que talvez venha a ser sensato no futuro indexar o próprio montante das pensões ao volume flutuante das contribuições para a segurança social efectivamente recebidas, a menos que se encontrem outros mecanismos indolores de compensação financeira para as oscilações negativas das receitas. O que não é possível, numa economia mundializada e deslealmente competitiva como a de hoje, é onerar de forma tão corrosiva os rendimentos do trabalho e os custos das empresas, para manter no limbo do possível um sonho fugidio tecido por gerações anteriores.
Talvez um dia se questione mesmo, mais por necessidade que por angústia ética, se o "direito à reforma" não deverá ficar afinal mais circunscrito a condições e requisitos que o próprio declínio da saúde individual justifique, em vez de continuar a ser o mero resultado imediato de uma transição etária.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

A traição dos compromissos

Demasiadas vezes tiveram já os eleitores a sensação de lhes quererem impor, após as eleições, políticas que eles não escolheram nas suas linhas gerais.

Não há que culpar disso apenas a falta de clareza, de sinceridade e de coragem com que os dirigentes partidários se apresentam nas campanhas e nos comícios. Em política, mentir faz parte das regras do jogo, se as instituições e as leis o permitem.

A questão, portanto, é fazer com que cada vez menos o permitam. A par da indispensável autorização parlamentar, expressa por maioria qualificada de dois terços dos votos, como já antes defendi, para que um partido político catapultado ao Governo possa violar o seu próprio programa eleitoral, necessário se torna também atribuir explicitamente ao Presidente da República o poder e o dever de não promulgar, com idêntico fundamento, os decretos-leis do Governo que sejam contrários ao teor desse programa. Um tal alargamento de competências presidenciais significaria refinar ainda mais o seu papel de árbitro da democracia representativa.

Mas há mais. A não promulgação de um decreto-lei, nestas circunstâncias, deveria implicar uma dupla consequência: a devolução da sua apreciação para o âmbito do Parlamento, ainda que se tratasse de matérias da competência exclusiva do Governo; e que um tal diploma, para poder ser promulgado, carecesse de o ser sob a forma de lei parlamentar, com o apoio da tal maioria qualificada, ou com prévia autorização do próprio Parlamento, devidamente especificada no seu âmbito e com idêntica maioria.

Introduzir-se-ia assim um sistema de dupla fiscalização da conformidade das políticas governativas com os programas eleitorais apresentados pelos partidos donde brotaram os governantes eleitos: uma, de iniciativa parlamentar, desde que suscitada por uma percentagem significativa dos deputados (digamos, por exemplo, um quarto ou um terço destes, a fim de inviabilizar a guerrilha institucional dos pequenos partidos sem vocação de poder); a outra, presidencial, como parte dos poderes arbitrais concedidos ao supremo magistrado do país.

Contrariamente ao que muitos pensam, a democracia não é um sistema acabado e perfeito. Antes pelo contrário: a experiência vai mostrando que é possível e necessário introduzir pequenas melhorias nas suas regras de funcionamento, destinadas a colmatar imperfeições e omissões que só a própria experiência do regime democrático vai pondo à mostra. Tal como as sociedades onde funciona, a democracia é um sistema em evolução.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A regra da vinculação eleitoral

Numa época tão obsessivamente preocupada com o pragmatismo e os objectivos de curto prazo, deve parecer no mínimo fora de moda que alguém se preocupe e se pronuncie sobre o essencial, isto é, sobre os princípios e valores em nome dos quais um país deve ser governado e sobre o tipo de sociedade para onde se pretende caminhar.

Um desses princípios fundamentais em política é a honestidade. Relegada para o baú das ingenuidades ideológicas, sobrepôs-se-lhe facilmente o gosto pelas promessas fáceis, pelas manobras de bastidores pouco escrupulosas, pelas tácticas dúbias que parecem propiciar melhor as vitórias eleitorais. Os eleitores sabem que é assim e parecem conformados, mas isso resulta sobretudo de se sentirem impotentes.

Haverá porém algo que se possa fazer para reduzir a margem de actuação da mentira, da corrupção, da falta de escrúpulo? Haverá alguma regra que permita inviabilizar a trapaça e o descaramento impúdico? Pelo menos em certos domínios, há.

Uma regra possível consiste em interditar constitucionalmente aos partidos que a sua actuação governativa vá em sentido contrário ao do programa eleitoral com que se apresentaram a sufrágio, excepto com uma prévia autorização parlamentar.

O objectivo óbvio de uma tal regra é evitar que se minta tanto aos eleitores durante as campanhas eleitorais. Ainda que não inviabilize a demagogia e as promessas populistas, nem desencoraje as opções arrevesadas que mais facilmente rendem votos, impede pelo menos que se faça no governo exactamente o contrário do que se prometeu fazer antes de nele entrar. E ao dizer isto, salta-me imediatamente à memória o exemplo recente de um certo líder partidário que prometeu uma redução drástica de impostos (até lhe chamou enfaticamente "choque fiscal") e uma das primeiras medidas que tomou, depois de eleito, foi precisamente o agravamento deles. Houve "choque fiscal", sem dúvida, mas ao contrário do que se esperava.

Não é de excluir que circunstâncias conjunturais prementes e indisfarçáveis obriguem um governo a mudar de rumo, em relação ao previsto e prometido. Pode acontecer. Mas o princípio básico da honestidade postula que as promessas eleitorais são para cumprir, o que é o mesmo que dizer que não é legítimo mentir aos eleitores. E isso significa que só com carácter excepcional deve um governo ser autorizado a desviar-se do seu próprio programa eleitoral.

Se alguém o deve autorizar, avaliando a excepcionalidade das circunstâncias e outorgando a legitimidade das medidas desviantes, a instituição própria para o fazer é o Parlamento. Mas para que um partido ou coligação dominantes não possam consegui-lo levianamente, deve a Constituição exigir uma maioria qualificada para o efeito (na minha opinião, não inferior a dois terços dos votos parlamentares).

Uma regra destas, não resolvendo tudo, sempre resolveria alguma coisa.