quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Brincar às taxas de juro

Muitos economistas continuam convencidos de que a melhor maneira de combater a inflação é subir paulatinamente as taxas de juro. Impregnados desta convicção, e desprovidos de melhores oportunidades para mostrar que ainda são tão relevantes como o foram no passado para regular a economia, os bancos centrais aplicam com esmero esta clássica receita. Mas a racionalidade dela é tanta como tentar tratar um inchaço no corpo com a aplicação de um colete-de-forças.
A intenção, como facilmente se compreende, é condicionar o consumo e o investimento. Fazendo subir o preço do dinheiro (que é como quem diz: o juro dos empréstimos bancários), os potenciais gastadores são em parte refreados pelo maior peso dos encargos financeiros que terão de suportar. Uns farão menos despesa, outros desistirão de a fazer. Isto aliviará um pouco a procura de bens e serviços e, em consequência, a sua pressão sobre os preços. Neste raciocínio, parte-se do velho pressuposto básico de que é o crescimento da procura que mais inflaciona os preços e que, ao invés, se pode desinflacionar os preços pela compressão da procura.
Noutros tempos, as coisas poderão ter-se passado como neste modelo tão simples. Hoje, entra pelos olhos de toda a gente que, em muitas áreas, o acréscimo da procura permite economias de escala na produção e na distribuição, o que tende a fazer baixar os preços, e não o contrário. Isso é sobretudo evidente com os novos produtos tecnológicos que são sucessivamente lançados no mercado e que rapidamente baixam de preço à medida que se generaliza a sua utilização.
De facto, na maior parte dos casos, a inflação moderna é causada não tanto pelo acréscimo da procura como pelo aumento incontrolado dos custos de produção. Umas vezes são os preços das matérias-primas e da energia, outras vezes são os agravamentos fiscais, outras vezes ainda é a perda de economias de escala provocada pela diminuição na procura, fazendo subir os custos unitários de produção. Partindo desse pressuposto, tentar travar uma "inflação pelos custos" através de um remédio talvez apropriado para debelar uma "inflação pela procura" deveria parecer, no mínimo, bizarro. Tanto mais que o juro dos empréstimos é, ele próprio, um custo logo incorporado no preço dos bens e serviços.
Como poderão pois os bancos centrais acertar na terapêutica, se começam por errar no diagnóstico? Ao subirem as taxas de juro, não estão apenas a inibir uma parte do consumo e do investimento que dependessem do crédito. Estão também a desbaratar recursos de todos quantos, particulares ou empresas, já contraíram crédito antes da subida das taxas e que assim, de um momento para o outro, se vêem onerados com maiores encargos e despojados de uma parte dos seus rendimentos. Isso pode até moderar a subida dos preços, mas empobrecendo quase toda a gente e asfixiando a economia. Não é o remédio certo.

sábado, 19 de janeiro de 2008

DESAFIO-O! (Carta aberta ao Dr. Luís Filipe Menezes)

Começo por dizer que votei em si no último congresso. Dei-lhe o benefício da dúvida, esperançado que trouxesse consigo algumas mudanças de fundo no PSD e não apenas as inevitáveis mudanças de rostos. Faço agora um paciente compasso de espera, até ver se me enganei ou não. Adiarei, pois, o meu juízo final.
No entanto, o tempo passa e quase tudo parece demasiado na mesma, excepto as equipas. Fase de preparação ou falta de élan inicial? Também o tempo o dirá. Mas já passou tempo suficiente para que algo mais fosse feito, ou anunciado, ou debatido internamente. Por enquanto, permanece o marasmo no pântano.
Muitos começam já a dizer à boca cheia que houve demagogia na sua campanha para presidente do partido, que muitas das promessas feitas não eram para cumprir. E nos tempos que correm, não há muitas coisas capazes de exasperar mais os eleitores ou os militantes partidários do que prometerem-nos lebre e darem-nos gato. Para já não falar da desfaçatez impune com que tal hábito se instalou.
Comecemos então pelas promessas ainda não cumpridas.
Na sua moção de candidatura à presidência do PSD, prometeu uma revitalização do trabalho partidário. Ainda nada se viu.
Prometeu promover um ciclo de debates, entre Outubro de 2007 e o verão de 2008, denominado "Ouvir o PSD/Ouvir Portugal". Mas já vamos em meados de Janeiro e ainda nada se debateu, nada se anunciou e ainda ninguém foi ouvido: nem o PSD, pelo menos no plano dos militantes de base, nem o país, pelo menos no que toca às forças vivas da sociedade civil. Que se saiba, só começaram a ser convocados os presidentes das comissões políticas de secção, há poucos dias, para reuniões à porta fechada.
Prometeu a participação dos militantes na escolha dos representantes do PSD em cargos de representação partidária (autarcas, deputados, eurodeputados). Mas todos sabem que isso, para ser verdade, implicará alterações estatutárias, e nem de tal se ouve falar. Ao que consta, o que se pretenderá é contornar a questão com um mero regulamento avulso a aprovar em conselho nacional, que decerto manterá a última palavra para as estruturas dirigentes, permitindo a estas continuar a escolher apenas os que lhe são afectos.
Prometeu um grande movimento nacional de angariação de novos militantes, mas também ainda nada disso se vislumbra.
Prometeu negociar a criação dos círculos uninominais para a eleição dos deputados, mas já rapidamente deixou cair a ideia. Neste aspecto, pelo menos, fez bem, livrando o país de uma tremenda asneira.
Defendeu um partido "aberto, plural, saudavelmente conflitual", mas agora insurge-se publicamente contra as declarações e movimentações dos críticos e aconselha-os a ter juízo.
Prometeu a revisão do regulamento financeiro do partido, mas pelos vistos ainda nem para isso houve tempo, passados mais de quatro meses sobre a sua eleição. Fez apenas constar que seria para breve. Parece pois que, daquilo que foi prometido, só ainda a descentralização do pagamento de quotas vem a caminho. Mas será isso que vai revitalizar o PSD?
A maioria das sedes concelhias permanece fechada ou inactiva durante períodos consideráveis, entrecortados apenas pelas esparsas movimentações eleitorais. Há pouca afluência, pouca actividade, poucos ideais.
Nada está em debate, porque no PSD já quase não se faz política séria a não ser no topo: o PSD tornou-se um partido de aparelho, deixou de ser um partido de militantes. Estes apenas são solicitados para almoços e jantares de apoio, sessões avulsas de campanha eleitoral, votações internas ou externas. Aliás, no PSD já pouco (e cada vez menos) se discute política, excepto quezílias e cargos. Em vez de debates, organizam-se comezainas. De há anos a esta parte, as ideias e os projectos têm sido substituídos por febras e sardinhadas.
No último congresso, não menos de doze moções reclamaram reformas internas no partido. Se elas vêm a caminho, ainda nem se divisam na linha do horizonte. E o mais provável é que não venham, pois logicamente seria agora a altura de arrumar a casa, e não após a "rentrée" do próximo Outubro, em que se inicia um novo ciclo eleitoral com agenda carregada.
Por isso, Dr. Luís Filipe Menezes, se realmente quer fazer reformas internas, como prometeu ou indiciou, faça-as quanto antes. Se quer dar um sinal de mudança à sociedade portuguesa, comece por demonstrar que é capaz de fazer mudanças relevantes dentro do seu próprio partido. Ou arrisca-se a não ter crédito suficiente quando precisar dele. Nem crédito, nem votos.
Desafio-o, portanto: mostre que está à altura do lugar para que foi eleito. E dê a conhecer melhor o que pensa fazer, já que muita gente votou em si sem o saber ao certo, apenas ávida de mudança.
Desafio-o, antes de mais, a explicitar as suas ideias e intenções em matéria de reforma estatutária e revisão programática, já que grandes alterações de fundo no interior do partido dificilmente podem dispensá-las. E convoque um congresso extraordinário para as levar a cabo antes do final do ano.
Desafio-o a dar voz aos militantes de base na escolha dos candidatos a autarcas, deputados e eurodeputados, instituindo o método das "primárias" e deixando cair o hábito perverso da designação.
Desafio-o a fomentar a concorrência política interna, deixando cair as barreiras normativas e burocráticas a ela, que as há, inclusive no livre acesso aos contactos dos filiados.
Desafio-o a promover um referendo interno sobre revisão constitucional, alteração das leis eleitorais e disciplina de voto, para se saber qual o sentimento dominante no partido a tal respeito.
Em suma: prove que não é apenas mais um dirigente de transição, demasiado entretido a olhar para o seu umbigo. Ausculte o partido, democratize-o por dentro, torne-o de novo aberto e actuante. Demonstre que não fez promessas à toa. Não vá dar-se o caso de os militantes tomarem mesmo juízo, conforme o seu conselho... e optarem por eleger um novo líder.
Recém-eleito que foi, a sua cabeça não está a prémio. Mas poderá vir a estar, mais cedo do que julga.
Mostre que é capaz de fazer as necessárias reformas internas e terá em mim um acérrimo defensor. Não as faça e terá em mim um encarniçado adversário. Precisamente daqueles que falam e escrevem para os jornais, já que até agora não ficou provado que adiante mais falar para si e para o seu séquito de colaboradores, nem para o resto do aparelho já bem instalado.
Os militantes do PSD não são súbditos. São (ou querem ser) cidadãos com voz activa. Trate-os como tal. O tempo dos caudilhismos já lá vai.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Para uma política de civilização

O conceito não é recente. Foi criado pelo sociólogo Edgar Morin há uma boa porção de anos, mas fora dos meios académicos pouca gente o conhecia. Foi agora trazido para a ribalta, com uma pujança absolutamente inesperada, pelo novo presidente francês. E com um impacto mediático tal que, sejam quais forem as realizações práticas que venham a ser conseguidas sob a sua inspiração, a cultura política do nosso século não voltará provavelmente a ser a mesma.
Não se trata de uma fórmula de circunstância, de uma fuga poética ao pragmatismo, de um simples floreado filosófico. É uma noção com substância, embora de contornos mal definidos ou com vários teores possíveis. Ela exprime a ideia de que não basta fazer uma boa gestão prática dos assuntos públicos e que é necessário orientar a sociedade em direcção a determinados valores, instituições, práticas, regras de convivência, enfim, um modus vivendi colectivo que está para além das simples metas quantitativas de qualquer governo.
Por outras palavras, é o tipo de civilização pretendido que mais deve condicionar a orientação das políticas. Sob esse ponto de vista, cada opção de fundo acarreta algumas consequências práticas.
A nossa civilização baseia-se na defesa da laicidade do Estado e da igualdade jurídica dos sexos, o que implica cercear os fluxos migratórios vindos de regiões que não aceitam nem uma coisa nem outra.
Baseia-se na democracia representativa, o que implica que os parlamentos devem controlar e fiscalizar os governos, e não contrário, e que devem haver limites e freios eficazes ao exercício arbitrário e arrogante do poder.
Baseia-se num ideal de solidariedade e na manutenção de um sistema de segurança social, o que implica neutralizar os enormes danos económicos resultantes da concorrência desleal de países onde as empresas não têm de contribuir para esquemas de protecção aos doentes, aos desempregados ou aos idosos e, em certos casos, quase nem impostos pagam.
Baseia-se em elevados padrões de educação e civismo, o que se traduz na obrigatoriedade de preservar a real observância das leis, o cumprimento escrupuloso dos contratos, o respeito dos direitos alheios, a urbanidade e o acatamento das regras de coabitação ou de trânsito.
Baseia-se na ética empresarial e dos negócios, o que implica moralizar o capitalismo financeiro, regular de forma justa e sensata as relações laborais, proteger os consumidores contra abusos e publicidade enganosa.
Baseia-se na segurança das pessoas e dos bens, o que implica reformar um sistema de justiça que actualmente protege mais os delinquentes do que as vítimas e os deixa proliferar.
Baseia-se na possibilidade generalizada de acesso a um apurado nível de formação profissional, de molde a proporcionar algo próximo da igualdade teórica de oportunidades, o que implica a aquisição real de conhecimentos e competências úteis nos estabelecimentos de ensino e não apenas a exibição de estatísticas enganadoras ou elevados níveis de investimento educacional para inglês ver e sem resultados à altura.
Baseia-se no empreendedorismo e na livre iniciativa, o que implica moderar os ímpetos à sua maior inimiga, a voracidade fiscal.
Baseia-se em tudo isto e muito mais. Podem parecer apenas noções muito gerais, mas são susceptíveis de se traduzir em implicações muito concretas.

domingo, 6 de janeiro de 2008

A representatividade dos partidos

Uma notícia recente deu-nos conta de que o Tribunal Constitucional, em cumprimento da lei sobre os partidos políticos, notificou alguns deles para fazerem prova de que têm um mínimo de cinco mil militantes, sob pena de extinção. Os visados foram quase uma dezena de pequenos partidos que sobrevivem a custo no limbo do espectro político, muitos deles surgidos nos tempos conturbados do início da 2.ª República e que conheceram logo depois um acentuado declínio.
O que deve pôr-se em causa nesta questão não é a iniciativa do Tribunal Constitucional, se ela apenas resulta da aplicação da lei vigente. O que deve pôr-se em causa é a própria lei e a legitimidade de uma tal norma.
Todos sabemos que o comum dos cidadãos anda hoje bastante arredado das lides partidárias. Muitos dos filiados nos grandes e pequenos partidos políticos têm neles uma existência apenas fictícia ou meramente residual. Uns não pagam quotas há muito tempo nem participam nas actividades internas, a outros há quem lhes pague as quotas apenas para preservar a representatividade das secções, engrossar as claques eleitorais dos caciques ou manter o número de delegados aos congressos partidários.
É até sobejamente conhecido o fenómeno das inscrições fictícias de muitos dos que se apresentam a votar em eleições internas, pagos para o efeito em dinheiro vivo ou obsequiados com jantares e outros favores. Nem os cadernos eleitorais nem os votantes de cada partido constituem pois um critério fidedigno do número de militantes reais, sendo certo que o número dos militantes activos é sempre muito menor, tal como o demonstra a escassa frequência das sedes e das secções. Na realidade, nem os próprios partidos sabem quantos militantes têm verdadeiramente.
Mas este não é o principal argumento que se pode esgrimir contra as pretensões da lei, quaisquer que elas sejam. O pior é que elas se baseiam no pressuposto implícito de que a representatividade ou relevância dos partidos se aferem pelo seu número de militantes, sejam eles activos ou não, em vez do número de votos que são capazes de obter em sufrágio nacional. Eis a perversão.
Aliás, é bem possível que dois dos partidos actualmente com assento na Assembleia da República não atinjam de facto o número mínimo de militantes que a lei prevê. Deveriam eles perder com isso o direito à existência, se a militância fosse quantificada com absoluta seriedade? É evidente que não. A representatividade dos partidos é aferida pelo voto e não pela militância, algo que aprendemos logo desde os alvores do actual regime. E a inegável falta de representatividade de alguns é publicamente atestada pela ausência de representação parlamentar. É o que basta, não sendo necessário condená-los à extinção por isso. Aliás, é sempre preferível que as correntes minoritárias ou ultraminoritárias se exprimam pelos mecanismos normais da democracia do que à margem deles.
Para rematar, o que mais importa não é o número de militantes em cada partido, mas a qualidade deles. Em teoria, porque há-de um pequeno partido de quadros, por exemplo, ser menos útil à democracia do que um grande partido de massas?