domingo, 19 de abril de 2009

Os ingredientes do insucesso

As dificuldades por que passa o país são o resultado natural de uma receita simples cujos principais ingredientes são três: falhas institucionais, hábitos instalados pouco recomendáveis e um certo desfalecimento intelectual e moral. Consoante as suas idiossincrasias pessoais, políticos e jornalistas dos vários quadrantes dão mais destaque a uma maleita ou a outra e alargam-se mais em certo género de comentários e prescrições, mas as coisas não deixam de ser o que são por variar o ângulo da análise.
No tocante às falhas institucionais, vai-se tornando evidente com o tempo a insustentável ausência de um sistema adequado de normas, freios e controles, capaz de pôr cobro ou limites mais encurtados a toda a espécie de incoerências políticas ou desmandos financeiros, nomeadamente quando se trata de respeitar compromissos eleitorais ou restrições orçamentais. Até para o desrespeito do texto das leis, inclusive as constitucionais, se tem encontrado sempre alguma justificação no espírito das medidas postas em prática, e ainda continua a achar-se amiúde que uma boa justificação elimina a própria infracção ou desculpa a camuflagem dela.
Se passarmos aos hábitos instalados, depressa concluímos que o Estado teima em não renunciar às obsessões perdulárias, que os contribuintes parecem não fazer mais do que a sua obrigação quando desembolsam para todos os gastos e desperdícios públicos, que a lei é para cumprir só quando não pode deixar de ser e que, com boa vontade e os necessários conluios, sempre os vários poderes arranjam forma de poderem fazer aquilo que é sabido que não devem.
Mas é no declínio intelectual e moral que menos se põe a tónica e onde reside a maior gravidade do problema nacional, o qual, referido assim em abstracto, mais não é que o vago e vasto somatório de muitos problemas evitáveis com que colectivamente arcamos. Poderíamos referir o espírito de corrupção mais ou menos generalizado, cujo nível e gabarito dependem apenas da capacidade e inspiração de cada um (para já não falarmos das oportunidades, que sempre são muitas), da debilidade dos idealismos e dos empenhos cívicos, da facílima traição das promessas e dos programas políticos, da supremacia das conivências sobre as competências, do intuito de carreirismo privado com que se perseguem e aceitam cargos públicos, da ausência de uma educação selectiva para o ingresso nas carreiras superiores do funcionalismo público e na descarada partidarização destas, nas feudalidades administrativas que subsistem, na incompreensão absoluta de que a mais importante e prioritária das opções é a de uma certa política de civilização, transcendendo em muito as preocupações pragmáticas das tecnocracias, e enfim, todo um rol de pequenos e grandes sintomas de que o Estado é afinal algo que serve para pilhar ou ser pilhado, de que os cargos públicos não são o corolário de um percurso de competências adquiridas e provas dadas, mas antes pelo contrário, um utilíssimo trampolim para saques, privilégios e mordomias.
A respeito dos nossos políticos, em particular, se falássemos da falta de "espírito de missão" diríamos quase tudo, se falássemos da falta de estadistas diríamos o resto.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

O elogio da leitura

Um célebre provérbio chinês diz-nos que uma imagem vale por mil palavras. E sob inúmeros aspectos, isso é verdade.
Uma imagem consegue dar-nos com mais facilidade e precisão os detalhes, os contornos, o impacto de um objecto ou situação; retrata ou transmite de forma mais intuitiva e directa uma emoção, um sentimento, um gesto; permite-nos vivenciar um acontecimento como se estivéssemos diante dele, e não como se nos facultassem apenas um relato; e uma boa sequência de imagens permite-nos visualizar toda a riqueza do movimento que uma sequência de palavras apenas poderia escassamente descrever.
A imagem parece pois ser um recurso privilegiado de comunicação. Mas essas, que parecem ser as suas maiores forças e vantagens, são também as suas debilidades e limitações face à palavra. Quando se trata de interpretar o que se vê, de discutir a sua importância e significado, de filtrar a importância das coisas, a imagem de pouco nos serve. Ela pouco pode ajudar-nos a valorizar ou desvalorizar algo, apenas pode dar-lhe ou tirar-lhe ênfase. E para quem procura captar o geral, o abstracto, as implicações do óbvio, as alternativas ao que nos é dado, ou seja, o lado complexo ou subtil da vida e do mundo, ela não consegue ser mais do que um mero cartão de visita, um convite, um incitamento, nada mais.
Uma imagem pode despertar-nos uma simpatia ou uma antipatia, mas não justificá-la. Pode proporcionar-nos uma impressão estética ou uma reacção moral, mas não os seus fundamentos. Pode confrontar-nos com os nossos gostos, mas não apurá-los. Pode alargar o nosso horizonte, mas não nos faz vislumbrar o que possa existir para além dele. Permite-nos conhecer, mas não descobrir; perceber, mas não inventar; aliciar, mas não persuadir; intuir uma ideia, mas não desenvolvê-la.
Embora não no sentido em que o dizia Platão, existem de facto dois mundos: o das coisas e o das ideias. Querendo ou não, com consciência ou não, cada um de nós vive simultaneamente em ambos. Ora a imagem está para o mundo das coisas assim como a palavra está para o mundo das ideias. Cada uma delas é a ponte de passagem para um território distinto. A imagem dá-nos o superficial, o fugaz, o transitório, o particular, o aparente. A palavra permite-nos o acesso ao profundo, ao duradouro, ao perene, ao geral, ao essencial. São tão distintas como complementares. Uma sem a outra, a imagem e a palavra vivem na mais perturbadora solidão. Uma sem a outra, praticam o angustiante celibato dos significados, ainda que possam não se dar conta disso.
Nem tudo nelas são contrastes. Ambas são capazes de uma certa espécie de retórica, ambas dispõem de truques de eloquência, ambas têm regras de morfologia e de sintaxe que permitem melhorar o seu desempenho. E ambas revelam capacidades simbólicas e narrativas capazes de nos estimular a imaginação. Mas, no limite, a mundividência a que nos conduzem não é do mesmo género.
Fazer o elogio da imagem não é hoje em dia necessário. Fazem-no sem cessar a publicidade, o cinema, os videojogos, o design gráfico e industrial, a parafernália dos museus, as seduções do turismo. Mas a palavra tem apoios mais limitados, pois a favor dela apenas militam a oratória e o texto. E como o uso virtuoso da oralidade parece tender a desaparecer gradualmente num mundo contemporâneo cujo panorama intelectual é minado pelo improviso desleixado e pela tagarelice, ou talvez ainda mais pela proliferação das gírias, impõe-se a defesa obstinada dos últimos bastiões “esclarecidos” ou "eruditos" da palavra escrita: a revista, o jornal, o livro, e seus similares.
Eis-nos assim chegados ao universo da leitura, onde todos os contrastes e todos os contrários se encontram e se revezam inesperadamente: a aventura e a estratégia, a emoção e a reflexão, o plano e o improviso, a poesia e o drama, a intriga e o desfecho, a análise e a síntese, o concreto e o abstracto, o senso comum e a filosofia, a superstição e a ciência.
Bem vistas as coisas, a palavra escrita permite-nos, muito mais do que a imagem ou o movimento, ultrapassar os limites do trivial. Ler é como desvendar o enigma de outras vidas, outras mentes, outras culturas, outros códigos, ser verdadeiramente um cidadão do mundo, algo que nem o turista mais viajado alguma vez conseguirá apenas pelo facto de se deslocar muito de um lado para o outro. E quem não lê, embora o não perceba, nunca deixará de ser um estrangeiro até na sua própria terra.

Um referendo à hipocrisia

Legislatura atrás de legislatura, vão passando os anos, vários, sem que ninguém se preocupe no dia a dia, alto e bom som, se há mulheres que abortam, se algumas morrem ou adoecem por causa disso, se há outras soluções socialmente viáveis para as gravidezes indesejadas ou insustentáveis. Apesar da magnitude do problema e do número imaginável de casos, ninguém toma a questão muito a peito, excepto alguns grupos organizados com expressão marginal e repercussão quase nula.
Sabemos que se fazem abortos clandestinos em quantidade, e porquê, e como. Sabemos os riscos para a saúde de quem lança mão a este expediente de último recurso. Sabemos que há inúmeras crianças que deixam de nascer, sem que ninguém grite "aqui d'el rei". Sabemos que há quem assim se alivie de um pesadelo previsível, de uma consciência culpada ou de um estigma social. E sabemos que a proibição do aborto não diminui a sua ocorrência. Mas faz-se vista grossa.
De repente, alguém se lembra de submeter o assunto a um referendo e logo rebenta o alvoroço. De um instante para o outro, nascem organizações empenhadas, revitalizam-se outras que estavam em coma profundo, montam-se encenações mediáticas, fazem-se reuniões e comícios entusiásticos, prodigaliza se a propaganda, terçam armas as opiniões irredutíveis, os nervos agitam-se à flor da pele. Já não são simples pessoas que se movimentam, mas ideologias rivais e heterogéneas forças sociais, cuidando de não perderem prestígio e influência junto da comunidade.
Bem vistas as coisas por este insólito viés, o que se vai referendar em breve não é propriamente o direito à interrupção voluntária da gravidez, mas a hipocrisia das nossas convicções publicamente assumidas, que às vezes nem sequer o são em privado.
Não tenho a mínima dúvida de que, no que respeita à maioria dos seus protagonistas, por debaixo de todo este reboliço, de todo este linguajar verborreico e incoerente, não medra qualquer preocupação sincera com os dramas humanos que estão subjacentes, e para os quais ninguém oferece reais soluções práticas.
Se o contrário fosse verdade, já há muito que teriam surgido os apoios suficientes às grávidas carenciadas, os mecanismos ágeis de adopção, as instituições de acolhimento, o acesso generalizado e fácil à contracepção gratuita.
Quando se trata de resolver problemas, mas de resolvê-los a sério, seja por iniciativa pública ou privada, onde param então os humanistas e os panfletários de todos os quadrantes?
Não nos venham de novo com a ética humanista. Toda esta recente agitação é essencialmente política, religiosa, ideológica. O que mais tem andado arredado deste assunto é precisamente o humanismo, para não dizer a própria ética, especialmente durante todo o tempo que decorre antes e depois de referendos, em que quase nada se faz para resolver ou minorar o problema real.
Nós, portugueses, sabemos como somos. Mais facilmente nos interessamos por causas do que por pessoas. E ligamos mais a controvérsias do que a quem sofre com o resultado delas.

Moda ou falta de imaginação?

O défice orçamental do Estado passou a ser o novo bicho-de-sete-cabeças da política contemporânea. A inflação foi destronada, o desemprego bem pode esperar melhores dias e a pobreza tornou-se tacitamente um mal necessário ou um tópico residual de retórica parlamentar ou televisiva. A cada época sua perspectiva e sua hierarquia de preocupações.
O que se constata importar agora é que o Estado consiga arrecadar tantas receitas fiscais quanto o balúrdio que indistintamente gasta com todas as suas obrigações e extravagâncias, com todas as suas prioridades e irrelevâncias. Poderia também pôr-se a questão de outro modo, e há quem o faça, que seria a de o Estado cortar criteriosamente nas despesas e desembolsar apenas na medida do que recebe ou espera receber; mas parece que, para quem está no poder, esse método não dá tanto jeito ou exige competências mais transcendentes do que aquelas que se adquirem nas universidades. A prova disso, convenhamos, é quase quotidiana e está à vista até dos leigos.
Afigura-se pois a muitos razoável que o Governo faça aquilo que sabe fazer melhor, ou seja, aumentar a colecta por decreto e dar instruções implacáveis, embora nem sempre eficazes ou equitativas, para perseguir os caloteiros. Alguém tem alguma coisa a objectar? Então objecte, mas de pouco lhe servirá. Pois quem faz só o que sabe a mais não é obrigado, e não se vislumbra sequer porque haveriam os governantes de ser excepção.
Haverá outros remédios? Talvez. Um crítico perspicaz logo se atreveria a dizer que o primeiro grande passo para o equilíbrio orçamental seria a consciência plena de que ninguém tem o direito de desperdiçar o dinheiro subtraído pelo fisco ao trabalho ou aos lucros de quem labuta ou investe. Mas francamente, quem se iria apiedar dessa ética balofa, se desde tempos imemoriais o saque dos impostos serve prioritariamente para ser desperdiçado, ou seja, precisamente para aquilo que os moralistas dizem que não se deve fazer com ele? O Estado já não é o príncipe, nem sequer a família real inteira, mas alberga agora novos príncipes e novas realezas.
Retirar ao Estado o privilégio de sempre gastar acima das suas posses, acrescentando-as um pouco desmesuradamente com as alheias, não só lhe retiraria a sua dignidade própria, que é a de poder fazer o que se apresenta interdito ao cidadão comum, como poderia implicar uma autêntica revolução psicológica e administrativa que às vezes, mas só de passagem e com natural acanhamento, alguém se atreve a referir como "reforma do Estado". E com a agravante de que a moda das febres revolucionárias já passou, o que se aprecia agora são aquelas tendências reformistas muito mais moderadas que consistem, na maior parte dos casos, em dar um passo à frente e dois atrás. Portanto, ó Deus, se acaso existes, livra-nos de tais exageros!
Que não venha pois ninguém falar-nos da "avaliação da eficácia das políticas públicas", que não nos macem com essa conversa de "suprimir as despesas inúteis e reencontrar margens de manobra", de "substituir a lógica dos meios pela lógica dos resultados". Tudo isso, estamos fartos de o saber, é perfeitamente correcto, mas é precisamente por sê-lo que só dificilmente aparecerá alguém com ciência e consciência e aptidão e ética para fazê-lo. Relaxemos, pois, tanto o espírito como os cordões à bolsa. Talvez morramos mais velhos.

O Estado predador

Nem sempre é fácil distinguir entre a análise objectiva e o facciosismo político, mas há domínios onde os factos falam por si com uma contundência que abala convicções e dificulta a réplica, na feliz expressão de alguém.
O Estado, tal como o conhecemos hoje, já não é o que era. Não emite moeda, não determina juros, não fixa câmbios, não levanta barreiras alfandegárias, não controla a circulação de capitais e, espartilhado orçamentalmente, não tem sequer capacidade para promover políticas anticíclicas, isto é, que contrariem os maus ventos que sopram sobre a economia, quando os há (e, infelizmente, há-os com demasiada frequência). Estas palavras, na sua maior parte e sem as devidas aspas, são roubadas a um reputado economista, mas quase todos os outros concordam com ele. Nisso, pelo menos, há consenso.
Em perpétua crise financeira, o Estado já não dispõe de instrumentos para influenciar directamente a economia, o investimento e o emprego. É um Estado desfigurado, reduzido nas suas competências, bastante esvaziado nas suas funções, limitado nas suas capacidades. É uma sombra do que foi.
No entanto, o Estado cresce. E cresce desmesuradamente. Como um sol em declínio, projecta agora a sua sombra com muito maior extensão. Como? Cobrando mais impostos, contribuições, taxas e coimas. Proliferando em organismos, legislação, regulamentos e circulares. Impondo mais obrigações aos cidadãos, mais procedimentos complicados, mais burocracia. Aumentando o seu tamanho, as suas despesas e o seu peso no produto interno bruto. E distribuindo dinheiro ou outras benesses a um número cada vez maior de políticos, funcionários, pensionistas e subsidiados, que o parasitam ou que dele dependem, desde as variegadas elites à humilde e anónima plebe.
Que temos hoje? O "Estado-tesoureiro" ao serviço do "Estado-asilo", acumulando ambas as funções para poder justificar uma com a outra. E sempre pretendendo ampliar ambas, porque se tornou essa a sua principal razão de existir ou porque almeja deliberadamente compensar com dimensões o que vai perdendo em funções, a fim de poder manter devidamente instalado e satisfeito todo o pessoal político e seus respectivos séquitos, não só os que já o são como os que ainda aspiram a sê-lo.
Quem sustenta tais veleidades? Obviamente, as vítimas e os mecenas do costume: os contribuintes que trabalham e que pagam os seus impostos e contribuições; os investidores que produzem ou arriscam e vêem pesadamente tributados os seus lucros e mais-valias; os consumidores que adquirem bens e serviços e desembolsam sumariamente os exagerados impostos sobre o consumo; e os fundos providenciais que nos vão chegando da Europa abastada, aos quais simulamos dar melhor destino e aproveitamento, para que continuem a vir enquanto for possível.
Em suma: já não temos um "Estado intervencionista" que actua sobre a economia para a proteger e incentivar, mas um Estado astuto e predador que a debilita e a suga, em boa parte porque não dispomos de normas constitucionais e órgãos reguladores capazes de lhe impor limites adequados. Até quando?

domingo, 5 de abril de 2009

Duas contribuições teóricas...

Embora a declaração de princípios do Movimento para a Democracia Directa já vá bastante longe nos seus propósitos de reforma do nosso sistema político, considero que há nele duas lacunas, duas referências omissas. Sem necessidade, porém, de alterar uma vírgula no texto já aprovado, que está muito bem, creio que no seu espírito cabem duas ideias que proponho também à vossa consideração e que poderemos facilmente incorporar nos nossos ideais e objectivos: a adopção do voto preferencial e a proibição constitucional da disciplina de voto.
Passo a explicar ambas as ideias.
Quando os partidos políticos portugueses concorrem a eleições, fazem-no através da apresentação de listas de candidatos cuja ordenação é rígida. O eleitor escolhe a lista do partido que prefere, mas nada pode fazer para alterar a ordenação dos candidatos na lista.
Na Europa, o sufrágio de lista é esmagadoramente maioritário, e compreende-se que assim seja, pois esse é um dos componentes necessários dos sistemas eleitorais que tendem a assegurar uma maior proporcionalidade da representação política. Mas, em muitos países, para além de votar na lista de um partido, o eleitor dispõe também de um ou mais votos para atribuir aos seus candidatos preferidos nessa lista, podendo assim interferir na respectiva ordenação. Deste modo, ele não está somente a escolher um partido, mas também os que considera serem os melhores candidatos desse partido. Não escolhe apenas uma força política, mas também pessoas, personalidades.
Em Portugal, onde se usa um sistema de listas fechadas e bloqueadas, um eleitor ao votar num partido aceita inevitavelmente a ordem dos candidatos que lhe é proposta na lista (e os eleitos, não esqueçamos, são apurados pela sua ordem na lista). Noutros países, dá-se maior poder aos eleitores, permitindo-se-lhes fazer uma escolha intra-partidária dos melhores candidatos e alterar a sua ordem na lista em que concorrem. É a isso que se chama voto preferencial e pratica-se, com diversas nuances, na Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Grécia, Holanda, Hungria, Islândia, Itália, Lituânia, Noruega, Polónia, República Checa e Suécia. Obtém-se assim uma maior personalização dos mandatos e uma maior responsabilização dos eleitos perante os eleitores. Não resolve todos os problemas da representação política, mas ajuda a atenuar alguns, e é óbvio que dá mais peso ao eleitorado.
Quanto à chamada disciplina de voto, que obriga deputados e autarcas a votarem de acordo com as instruções recebidas dos directórios partidários ou das chefias de bancada, considero-a um dos maiores males da nossa democracia. Ela viola o artigo 155º da Constituição, que determina que o deputado exerce livremente o seu mandato; e fá-lo violar a sua consciência e até a sua competência técnica, fazendo-o pronunciar-se contrariamente ao que pensa ou sabe. Por isso, na pior das hipóteses, ela deveria constituir uma excepção em prol da governabilidade (admissível talvez em matérias como o Orçamento do Estado, as moções de confiança e de censura ou o Programa de Governo) e não uma regra.
A disciplina de voto tem vários efeitos muito perniciosos: arregimenta os deputados da maioria parlamentar como uma claque subserviente ao Governo e, como tal, impede qualquer controlo e fiscalização eficaz deste pelo Parlamento, ao contrário do que é pressuposto pelos próprios fundamentos da teoria democrática; favorece a corrupção política e os abusos de poder, e dá-lhes cobertura; impede a livre expressão de opiniões por aqueles que foram mandatados para nos representar; torna rígida e monolítica a maioria parlamentar, e por vezes a própria oposição, inviabilizando qualquer debate sério; subverte a separação de poderes, colocando o Parlamento sob o jugo do Governo, através de uma maioria dócil e controlada; afasta do jogo político os mais competentes, em proveito dos meros sequazes dos líderes, e leva a colocar a lealdade incondicional acima da própria competência para o desempenho dos cargos. Et cetera.
Há vozes que se levantam contra ela nos vários partidos, mas que são sufocadas pelas claques instaladas no poder. Compete-nos, fora dos partidos, dar também expressão a mais este combate pela racionalização do sistema político. Não estaremos sozinhos.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A filosofia da representação política

Já me pareceu uma falsa questão discutir se deve ou não haver uma mudança substancial de filosofia da representação política, no sentido de passar a dar-se mais importância e saliência aos candidatos do que aos partidos. Agora não. Parece-me que o assunto tem cada vez mais pertinência.
Dantes, os partidos forneciam-nos uma espécie de enquadramento doutrinário, estavam para a política como os pontos cardeais para a navegação. Podíamos não conhecer em pormenor os seus objectivos ou programas, mas eles representavam para nós pontos de referência ideológicos, tendências mais ou menos demarcadas e confiáveis. Isso acabou. A ideologia perdeu importância e consistência, sofreu erosões diversas, diluiu-se ou descaracterizou-se no vendaval de questões técnicas e pragmáticas que assolam a governação moderna.
A confusão reinante é tal que já ninguém arrisca pôr a cabeça no cepo quando se trata de associar um determinado partido a certas políticas práticas, ou sequer a certas orientações de fundo, pelo menos no leque cada vez mais restrito dos partidos realmente vocacionados para disputar o poder governativo. Já quase ninguém sabe muito bem quem representa o quê e como, e as surpresas e decepções pós eleitorais sucedem-se a um ritmo preocupante. Talvez por isso mesmo, ou também por isso, são cada vez mais os eleitores que não sabem mais em quem votar.
Para bem da democracia, sem dúvida que seria desejável que os partidos voltassem a assumir explicitamente os seus valores, ideais, programas e objectivos de médio prazo. Mas, na verdade, o terreno tem-se mostrado fértil sobretudo para a camuflagem, a hipocrisia, a mentira, o oportunismo e a pilhagem. O país avança e recua aos solavancos, mas raios me partam se a maioria sabe ao certo para onde o levam ou o que dele se quer.
O Partido Socialista ainda dá por esse nome, mas pôs o socialismo na gaveta há tanto tempo que já nem se lembra onde o guardou. O Partido Social-Democrata, se alguma vez o foi realmente, tornou-se entretanto uma psicadélica manta de retalhos, uma espécie de "patchwork" doutrinário. O próprio Partido Popular, que já foi orgulhosamente democrata cristão, mandou a democracia cristã às urtigas e entregou-se ainda mais devotamente aos jogos de poder e de conveniência. O Bloco de Esquerda é apenas um variegado grupo de gente que consegue a proeza louvável de conseguir estar em sintonia só quando se trata de praticar a maledicência e o bota abaixismo contra tudo o que mexe à sua direita e à sua esquerda. E o Partido Comunista mantém se rigidamente fiel a ortodoxias que já não têm lugar nem razão de ser no mundo de hoje, e muito menos no de amanhã, sendo certo que até os próprios militantes, na sua maioria, já realizaram o milagre de perceber isso.
Se os partidos tradicionais já representam tão pouco, e afinal quase nada do que era suposto, mais vale questionar se o sistema eleitoral não deveria viabilizar alternativas, e quais.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Uma solução moderada

Num artigo recente, defendi que uma solução possível para salvaguardar a garantia da governabilidade, em caso de abolição da disciplina de voto partidária, seria a exigência de uma maioria qualificada para que uma moção de censura pudesse derrubar o governo. Não especifiquei percentagens, mas é evidente que a fasquia da estabilidade pode ser constitucionalmente colocada em diversos patamares: sessenta por cento, dois terços, setenta por cento, três quartos dos votos, etc, ao gosto do que forem os ventos dominantes aquando da reforma constitucional que será necessária para instituir uma tal regra.
Assim, ficaria qualquer governo ao abrigo de maiorias parlamentares flutuantes ou instáveis, potencialmente devidas ao facto de o Executivo não conseguir assegurar a coesão e a disciplina partidárias numa votação desse tipo. Embora, sopesando a experiência e a nossa tradição política, seja difícil acreditar que, num momento crítico como esse, estando em risco a sobrevivência do governo em funções, a disciplina partidária deixasse de actuar espontaneamente, apenas pelo simples facto de já não ser obrigatória. Só um poder executivo irredutível e encurralado, indisponível para negociações intra-partidárias, correria assim o risco de perder uma parte substancial da sua própria base de apoio, o que não deixaria de ser uma circunstância de cariz muito excepcional.
Contudo, a abolição total da disciplina de voto não é a única hipótese a considerar. Talvez ela não seja sequer indispensável para uma substancial melhoria da actividade parlamentar, desde que aos deputados seja assegurada a liberdade de opinião e de voto numa larga maioria de questões. Desse modo, também as bancadas dos partidos no poder poderiam exercer a sua função crítica, fiscalizadora, de filtragem técnica e política, sem que as suas discordâncias pontuais com o Governo fizessem pairar o espectro da eventual derrocada deste.
Para assegurar a governabilidade, bastaria que a disciplina de voto ficasse confinada à votação de moções de confiança ou de censura, ou eventualmente pouco mais (embora com relutância, e como solução de compromisso pragmática com os mais receosos de eventuais impasses políticos, aceitaria também que a disciplina de voto se estendesse à votação do orçamento do Estado, sobretudo no caso de vir a vingar essa ideia infeliz de criar círculos uninominais, susceptível de pôr os próprios deputados da maioria a querer dar primazia aos interesses locais que protagonizem ou representem).
Se a abolição total da disciplina de voto parecer a alguns uma solução demasiado radical, por recearem os efeitos da liberdade de voto dos deputados na governabilidade do país, então a solução moderada consiste em limitar a disciplina de voto às poucas questões que põem realmente em causa a governabilidade.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A questão da governabilidade

Sempre que se fala na abolição ou proibição da "disciplina de voto" partidária, ainda que como mera hipótese remota, sempre alguém agita o fantasma da ingovernabilidade do país. Como se um governo desprovido de uma maioria parlamentar estável e permanente, fielmente arregimentada, ficasse incapacitado para gerir ou reformar o que quer que fosse.
Este tipo de receio vem sempre pressurosamente ao de cima, em geral apoiado em fraca argumentação, e não poucas vezes suportado por argumentação nenhuma, como se a coisa fosse evidente por si mesma. Irão perdoar-me, mas não é.
Antes de mais, o receio da ingovernabilidade do país não pode ser justamente invocado pelos partidos da oposição, pois esses, por definição, não governam. O seu problema será outro: manter sob controlo as hostes partidárias e, em particular, os seus deputados e autarcas. Nos partidos nunca há homogeneidade, como se sabe, mas sempre gostam de se comportar como se houvesse, para inglês ver. Brigas só à porta fechada (sem prejuízo de uma guerrilha feia e discreta cá fora), que é para os adversários não se porem a presumir fragilidades.
Quanto aos partidos que realmente governam, não são impedidos de o fazer por "maiorias flutuantes" nas votações parlamentares (há quem prefira chamar-lhes "maiorias instáveis", mas é sobretudo uma questão de semântica). Desde logo, porque há uma vastíssima área da governação que é da competência exclusiva do Governo e não carece, portanto, de aprovação ou apoio parlamentares. E nas áreas que não são da sua competência exclusiva, não é suposto que o Governo tenha de levar sempre a melhor, senão não faria diferença absolutamente nenhuma que o fossem também.
A intenção de criar áreas de decisão que são da competência do Parlamento é precisamente a de limitar os poderes arbitrários do Governo, sujeitando-o à necessidade de autorizações legislativas, apoios políticos explícitos, consensos alargados, fiscalização do poder executivo pelo legislativo. Tudo isto é subvertido quando, por força da submissão partidária, os grupos e as comissões parlamentares se tornam meras correias de transmissão dos estados-maiores dos partidos, deixando de cumprir criteriosamente a sua função de filtro político e técnico dos projectos de lei.
É a pura verdade: quando não há maiorias parlamentares arregimentadas, os governos não conseguem fazer passar tudo o que querem. Chama-se a isso limitação de poderes. E se quiserem obter aprovação para os seus projectos legislativos, terão de caprichar mais na qualidade e justiça deles. Não vejo aí nenhum mal.
O problema que sobra, e esse é o verdadeiro problema, é o das moções de censura que podem fazer cair o Governo. Mas se não se quiser que este fique vulnerável a maiorias flutuantes ou instáveis, nem tão-pouco refém de chantagens conjunturais, basta subir a fasquia da estabilidade e exigir uma certa maioria qualificada para que uma moção de censura possa causar a queda do Executivo. Nada mais simples.
A governabilidade tem pois solução fácil, mesmo sem disciplina de voto.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Imigração sofrida ou imigração escolhida?

Terão razão as várias lengalengas humanitárias que se rebelam contra a recusa de um visto de permanência no país a muitos dos estrangeiros que o solicitam? Será assim tão condenável escolher aqueles a quem damos permissão para ficar?
O objectivo de uma imigração selectiva não é penalizar preconceituosamente certas categorias de imigrantes, seja pelas suas origens étnicas ou convicções religiosas, seja por desfasamentos linguísticos ou falta de qualificações profissionais. Não se trata essencialmente de afastar, denegrir, recusar, embora essas possam aparentemente surgir como consequências incontornáveis, porque quando se escolhe algo, rejeita-se algo, quando se valoriza uma opção, desvaloriza-se outra.
O objectivo de uma imigração selectiva é promover um equilíbrio interno: entre a procura afluente de trabalho e a oferta disponível, entre as competências requeridas pelos empregadores e as qualificações comprovadas pelos potenciais candidatos, entre as carências regionais e os afluxos territoriais de mão-de-obra, entre as necessidades previsíveis e os contingentes admitidos, entre a cultura anfitriã e os costumes sociais dos recém chegados, entre as leis vigentes no país e o grau de predisposição conhecido das várias comunidades estrangeiras para acatá-las, entre as diversas expressões linguísticas divergentes e a defesa intransigente da língua nacional unificadora. Além do mais, porque essa distinção também conta, é indispensável velar por critérios de alguma proporcionalidade razoável entre a imigração com motivação laboral e a de simples reagrupamento familiar.
Há equilíbrios demográficos, religiosos, étnicos, culturais, económicos e linguísticos a preservar. O fluxo indiscriminado de gentes das mais variadas proveniências e civilizações pode fragilizá-los ou até destruí-los. Esses equilíbrios foram penosamente conseguidos após séculos de dolorosas vicissitudes históricas. Não passa pois de pura inconsciência colocá-los levianamente em risco, omitindo de propósito o facto de que nem todas as imigrações são iguais, nem na sua composição nem nos seus efeitos.
Aqueles que ingenuamente defendem que os países abastados deveriam limitar se a abrir escancaradamente as fronteiras a todos os desesperados e ambiciosos que anseiam encontrar acolhimento e trabalho bem pago, seja com que sacrifícios for, esquecem a colossal desproporção entre os recursos escassos de cada economia e os muitos milhões de interessados em procurar nela o seu recanto providencial, ou entre a limitada capacidade de absorção das nossas culturas consolidadas e a extrema incomodidade e virulência de certos costumes invasores, isto para já não falar dos inevitáveis recuos na segurança interna e nos níveis de civismo.
Deveria ser claro para todos que a Europa não pode albergar todo o Terceiro Mundo, nem sequer uma parte significativa dele. A dupla solução consiste em seleccionar dentro e investir fora. Em escolher a imigração que nos convém e promover mais desenvolvimento e oportunidades na sua terra para os que não podem vir e ficar. Que mais de razoável se pode fazer além disto?

sábado, 17 de janeiro de 2009

Ainda sobre os círculos uninominais

Se a reeleição dos deputados depende da sua posição nas listas, é natural que eles se preocupem sobretudo em agradar aos seus partidos. O contrário é que não seria de esperar. Mas quase toda a gente percebe que o desejável seria precisamente o contrário, isto é, que se preocupassem muito mais em agradar aos eleitores, dando expressão e suporte às suas necessidades, expectativas e anseios.
Argumenta-se que a culpa disto é do próprio sistema eleitoral, pois os eleitores têm muita dificuldade em saber quem são os deputados que os representam e, por isso, estão quase impossibilitados de os responsabilizar. Investindo contra moinhos de vento, há logo quem avance que a panaceia para esta maleita são os círculos uninominais, ou que se deveria enveredar por um sistema misto em que aqueles coexistissem com um círculo nacional, este último para compensar as distorções à proporcionalidade. Etc, etc, etc.
Cabe perguntar: enquanto persistir a disciplina de voto nos partidos políticos, adianta alguma coisa que os eleitores saibam quem é o deputado que representa o seu círculo? Terá esse deputado a capacidade de agir e votar pela sua cabeça, independentemente das instruções recebidas da sua direcção parlamentar, ou, no seu papel inconfessado de mero peão, fará basicamente o mesmo que faria qualquer outro no seu lugar, que é o mesmo que dizer, votará de acordo com as orientações que lhe derem, defenderá as posições que forem dominantes no aparelho partidário, mandará às urtigas as opções locais que forem inconvenientes para o seu partido como um todo? Afinal, o deputado conhecido irá pretender recompensa diferente daquela a que aspira o deputado desconhecido, a saber, a sua reeleição ou a ascensão na estrutura partidária, tendo em vista a continuação ou o "upgrade" das mordomias dos cargos políticos?
Segunda questão: se os círculos uninominais provocam distorções evidentes à proporcionalidade do sistema eleitoral, que maior democratização é que poderá resultar da formação de "maiorias artificiais" em que um maior número de eleitos não corresponde necessariamente a um maior número de eleitores apoiantes nem a uma maior representatividade política real?
A terceira questão já não é uma questão, é uma certeza. Um círculo nacional não compensa as distorções na representação proporcional criada pelos círculos uninominais, apenas a atenua. Porque um círculo nacional, apesar das manipulações a que pode ser sujeito, tende a gerar proporcionalidade, pois é também para isso que é concebido. Enquanto os círculos uninominais apenas tendem a gerar distorções a ela, apesar de serem concebidos para outra coisa completamente diferente.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Os equívocos do voto preferencial

A propósito da reforma do sistema eleitoral, tem-se falado muito ultimamente de "personalização do voto". Quaisquer que sejam os seus contornos, a ideia parece boa, pois a despersonalização do voto afigura-se que seja sempre pior.
Mas, para produzir efeitos úteis, a intenção subjacente não pode limitar-se a que, nos actos eleitorais, deixemos de apenas pôr uma cruzinha num dos partidos concorrentes e possamos também expressar preferências por uns candidatos em detrimento de outros, dentro da lista partidária em que votamos. De facto, este tipo de "voto preferencial" não resolve tudo. Aliás, por si só, talvez não resolva nem altere nada de fundamental.
O problema maior é que não basta personalizar o voto dos eleitores, fazendo-o recair em personalidades e não só em partidos. É também necessário personalizar o voto dos deputados, fazendo-o recair sobre as opções que realmente defendem em consciência e não sobre as que lhes são impostas pelas respectivas direcções parlamentares, estas por sua vez controladas pelos directórios partidários sem pejo nem grandes subtilezas.
De que serve afinal escolher entre um deputado e outro, dentro da mesma lista partidária, se o voto de qualquer deles nas sessões parlamentares for depois determinado de fora pela mesma estrutura de poder, no partido a que pertencem? Estaremos afinal a escolher o quê? Que tipo de preferência estaremos a demonstrar? Que preferimos a oratória de um à de outro candidato? Que apreciamos mais a figura e o estilo deste ou daquele? É curto, muito curto.
De pouco ou nada vale personalizar o voto dos eleitores sem personalizar também o dos eleitos, de modo que estes possam expressar e defender livremente as suas convicções nos debates e nas votações parlamentares, sem terem de recear depois represálias estatutárias por parte dos seus dirigentes partidários. E não vejo senão duas maneiras de o conseguir: acabar de vez com a disciplina de voto (ou, numa primeira fase, limitá-la a certas questões ideológicas consideradas essenciais) e fazer depender as nomeações para as listas partidárias de uma franca concorrência interna, através de eleições "primárias", em vez da tradicional escolha ou indigitação dos candidatos pelos órgãos dirigentes nacionais ou regionais.
Voto preferencial, sim, é uma boa ideia, vale a pena repeti-lo. Mas ele deve começar logo no interior das estruturas partidárias, quando se tratar de escolher, por eleição, os candidatos aos actos eleitorais extra-partidários. Sem isso, haverá apenas fumo sem fogo.
Máxima: uma maior democratização do sistema político deve começar, de preferência, dentro dos próprios partidos, que são hoje o sector menos democrático do sistema.