domingo, 14 de junho de 2020
O que há muito precisa ser dito sobre racismo e xenofobia...
segunda-feira, 13 de abril de 2009
O elogio da leitura
Uma imagem consegue dar-nos com mais facilidade e precisão os detalhes, os contornos, o impacto de um objecto ou situação; retrata ou transmite de forma mais intuitiva e directa uma emoção, um sentimento, um gesto; permite-nos vivenciar um acontecimento como se estivéssemos diante dele, e não como se nos facultassem apenas um relato; e uma boa sequência de imagens permite-nos visualizar toda a riqueza do movimento que uma sequência de palavras apenas poderia escassamente descrever.
A imagem parece pois ser um recurso privilegiado de comunicação. Mas essas, que parecem ser as suas maiores forças e vantagens, são também as suas debilidades e limitações face à palavra. Quando se trata de interpretar o que se vê, de discutir a sua importância e significado, de filtrar a importância das coisas, a imagem de pouco nos serve. Ela pouco pode ajudar-nos a valorizar ou desvalorizar algo, apenas pode dar-lhe ou tirar-lhe ênfase. E para quem procura captar o geral, o abstracto, as implicações do óbvio, as alternativas ao que nos é dado, ou seja, o lado complexo ou subtil da vida e do mundo, ela não consegue ser mais do que um mero cartão de visita, um convite, um incitamento, nada mais.
Uma imagem pode despertar-nos uma simpatia ou uma antipatia, mas não justificá-la. Pode proporcionar-nos uma impressão estética ou uma reacção moral, mas não os seus fundamentos. Pode confrontar-nos com os nossos gostos, mas não apurá-los. Pode alargar o nosso horizonte, mas não nos faz vislumbrar o que possa existir para além dele. Permite-nos conhecer, mas não descobrir; perceber, mas não inventar; aliciar, mas não persuadir; intuir uma ideia, mas não desenvolvê-la.
Embora não no sentido em que o dizia Platão, existem de facto dois mundos: o das coisas e o das ideias. Querendo ou não, com consciência ou não, cada um de nós vive simultaneamente em ambos. Ora a imagem está para o mundo das coisas assim como a palavra está para o mundo das ideias. Cada uma delas é a ponte de passagem para um território distinto. A imagem dá-nos o superficial, o fugaz, o transitório, o particular, o aparente. A palavra permite-nos o acesso ao profundo, ao duradouro, ao perene, ao geral, ao essencial. São tão distintas como complementares. Uma sem a outra, a imagem e a palavra vivem na mais perturbadora solidão. Uma sem a outra, praticam o angustiante celibato dos significados, ainda que possam não se dar conta disso.
Nem tudo nelas são contrastes. Ambas são capazes de uma certa espécie de retórica, ambas dispõem de truques de eloquência, ambas têm regras de morfologia e de sintaxe que permitem melhorar o seu desempenho. E ambas revelam capacidades simbólicas e narrativas capazes de nos estimular a imaginação. Mas, no limite, a mundividência a que nos conduzem não é do mesmo género.
Fazer o elogio da imagem não é hoje em dia necessário. Fazem-no sem cessar a publicidade, o cinema, os videojogos, o design gráfico e industrial, a parafernália dos museus, as seduções do turismo. Mas a palavra tem apoios mais limitados, pois a favor dela apenas militam a oratória e o texto. E como o uso virtuoso da oralidade parece tender a desaparecer gradualmente num mundo contemporâneo cujo panorama intelectual é minado pelo improviso desleixado e pela tagarelice, ou talvez ainda mais pela proliferação das gírias, impõe-se a defesa obstinada dos últimos bastiões “esclarecidos” ou "eruditos" da palavra escrita: a revista, o jornal, o livro, e seus similares.
Eis-nos assim chegados ao universo da leitura, onde todos os contrastes e todos os contrários se encontram e se revezam inesperadamente: a aventura e a estratégia, a emoção e a reflexão, o plano e o improviso, a poesia e o drama, a intriga e o desfecho, a análise e a síntese, o concreto e o abstracto, o senso comum e a filosofia, a superstição e a ciência.
Bem vistas as coisas, a palavra escrita permite-nos, muito mais do que a imagem ou o movimento, ultrapassar os limites do trivial. Ler é como desvendar o enigma de outras vidas, outras mentes, outras culturas, outros códigos, ser verdadeiramente um cidadão do mundo, algo que nem o turista mais viajado alguma vez conseguirá apenas pelo facto de se deslocar muito de um lado para o outro. E quem não lê, embora o não perceba, nunca deixará de ser um estrangeiro até na sua própria terra.
terça-feira, 14 de dezembro de 2004
Os políticos e os «média»
A relação entre os políticos e os media pode ser sujeita a duas fortes críticas. Uma delas tem sido frequentemente feita, a outra parece estar ainda à espera de vez.
A crítica conhecida aponta para a submersão da política no mundo do espectáculo.
Diz-se ─ e é verdade ─ que as principais qualidades políticas passaram a ser as qualidades mediáticas, pelo que contam cada vez mais a imagem e o estilo e cada vez menos as ideias, as causas e os projectos.
A reflexão com horizontes passou a ser substituída pela vivência do momento. E as circunstâncias tornaram-se um mero cenário onde a actuação visível dos políticos coloca a lógica do artifício acima da lógica das convicções.
Se o que prevalece é a imagem, isso implica que a distinção crucial passou a ser entre as pessoas mediáticas e as não mediáticas. Ora o mediatismo jornalístico tende a colocar o concreto acima do abstracto, o particular acima do geral, o imediato acima das visões a prazo, a superficialidade acima da estratégia. É o terreno de cultura adequado para os que perseguem objectivos simples e demagógicos, mas não para os que defendem valores e causas consistentes. É o paraíso dos que se movimentam com à‑vontade em trajectórias sinuosas, ao sabor dos ventos e brisas da opinião pública, mas o purgatório dos que propõem rumos firmes.
Estas tendências do gosto mediático influenciam certamente o grau de sucesso ou insucesso dos políticos encartados. Quem tem opiniões sem brilho é facilmente suplantado por quem brilha sem opiniões. Quem consegue juntar ambas as coisas, mesmo que as opiniões sejam alheias e em formato pré-cozinhado por um staff de assessores, candidata-se naturalmente à primazia. São estas as regras do jogo. Mas pouco importa que as opiniões despendidas sejam profundas ou superficiais, conhecedoras ou aventureiras, razoáveis ou delirantes, porque a maioria do público é sempre consideravelmente ignorante do que se discute (refiro-me a fundamentos, não a factos) e a comunicação social não as filtra pela qualidade, mas pelo alarido ou pela pretensa representatividade.
A segunda crítica à mediatização crescente da política não é certamente original, mas não logrou ainda adquirir mais do que um relevo secundário. Refiro-me ao modo como os media condicionam o acesso à ribalta, quer dos políticos e das organizações, quer das opiniões e das doutrinas.
A superabundância de informação dilui a importância das novas ideias, assim como a busca deliberada do sensacionalismo diminui a urgência das coisas essenciais. As questões decisivas onde se joga o nosso futuro colectivo são secundarizadas em relação ao que faz mexer as vendas e as audiências. E a grandiloquência barroca e repetitiva dos vultos conhecidos ofusca as opiniões inovadoras de quem apenas consegue mover-se nos obscuros bastidores da cena política. Não por acaso, as irrelevâncias e os simples deslizes das figuras públicas são mais avidamente perseguidos e granjeiam mais destaque do que as propostas mais substanciais das personalidades de segunda linha. Longe de contrariar esta tendência, os meios de comunicação social fomentam‑na.
Numa época em que os grandes debates já não se travam nas secções ou nos congressos partidários, reduzidos a meros palcos de movimentações de poder e de influências, nem nos hemiciclos parlamentares, convertidos em locais anódinos onde são oficiados os dogmas e as praxes das diversas liturgias ideológicas, restam os meios de comunicação social para confrontar o país com as várias perspectivas do seu destino.
Contudo, a televisão não é o meio mais adequado para o debate público de ideias, dada a tirania da imagem e a tentação dos protagonismos partidários, ambas somadas à habitual falta de disciplina cívica e argumentativa dos participantes. Resta a imprensa. Mas esta, e sobretudo nos jornais de referência, encontra-se em grande parte colonizada pelos jornalistas profissionais e por um escol de analistas e comentadores que adquiriram “direitos de coutada” e, mal ou bem, os exercem obrigando-se a ter opiniões próprias com uma periodicidade previamente estabelecida. Assim, o profissionalismo e o amadorismo por contrato substituem o pulsar espontâneo da sociedade. São eles que condicionam a nossa percepção daquilo que nos rodeia e que decidem o que e quem merece sair do anonimato.
Paradoxalmente, os media fazem não só o que se espera deles, mas também o seu contrário. Não se diga que se limitam a informar, porque tal é falso. Eles lutam subtilmente para impor hegemonias políticas, reescrevem a História, metamorfoseiam o quotidiano, tornam-se a própria memória social, decidem a importância dos factos e dos boatos, seleccionam as opiniões, fazem julgamentos públicos, invadem a privacidade, constroem as “verdades”, criam e manipulam estereótipos e estabelecem a seu bel‑prazer a hierarquia de interesse das coisas, assim como montam e desfazem acontecimentos.
Na arena política, isto significa que quem não consegue forçar a passagem e tornar-se uma figura mediática, independentemente dos seus méritos, não existe politicamente. E ponto final.