domingo, 19 de abril de 2009
Os ingredientes do insucesso
No tocante às falhas institucionais, vai-se tornando evidente com o tempo a insustentável ausência de um sistema adequado de normas, freios e controles, capaz de pôr cobro ou limites mais encurtados a toda a espécie de incoerências políticas ou desmandos financeiros, nomeadamente quando se trata de respeitar compromissos eleitorais ou restrições orçamentais. Até para o desrespeito do texto das leis, inclusive as constitucionais, se tem encontrado sempre alguma justificação no espírito das medidas postas em prática, e ainda continua a achar-se amiúde que uma boa justificação elimina a própria infracção ou desculpa a camuflagem dela.
Se passarmos aos hábitos instalados, depressa concluímos que o Estado teima em não renunciar às obsessões perdulárias, que os contribuintes parecem não fazer mais do que a sua obrigação quando desembolsam para todos os gastos e desperdícios públicos, que a lei é para cumprir só quando não pode deixar de ser e que, com boa vontade e os necessários conluios, sempre os vários poderes arranjam forma de poderem fazer aquilo que é sabido que não devem.
Mas é no declínio intelectual e moral que menos se põe a tónica e onde reside a maior gravidade do problema nacional, o qual, referido assim em abstracto, mais não é que o vago e vasto somatório de muitos problemas evitáveis com que colectivamente arcamos. Poderíamos referir o espírito de corrupção mais ou menos generalizado, cujo nível e gabarito dependem apenas da capacidade e inspiração de cada um (para já não falarmos das oportunidades, que sempre são muitas), da debilidade dos idealismos e dos empenhos cívicos, da facílima traição das promessas e dos programas políticos, da supremacia das conivências sobre as competências, do intuito de carreirismo privado com que se perseguem e aceitam cargos públicos, da ausência de uma educação selectiva para o ingresso nas carreiras superiores do funcionalismo público e na descarada partidarização destas, nas feudalidades administrativas que subsistem, na incompreensão absoluta de que a mais importante e prioritária das opções é a de uma certa política de civilização, transcendendo em muito as preocupações pragmáticas das tecnocracias, e enfim, todo um rol de pequenos e grandes sintomas de que o Estado é afinal algo que serve para pilhar ou ser pilhado, de que os cargos públicos não são o corolário de um percurso de competências adquiridas e provas dadas, mas antes pelo contrário, um utilíssimo trampolim para saques, privilégios e mordomias.
A respeito dos nossos políticos, em particular, se falássemos da falta de "espírito de missão" diríamos quase tudo, se falássemos da falta de estadistas diríamos o resto.
segunda-feira, 13 de abril de 2009
Moda ou falta de imaginação?
O que se constata importar agora é que o Estado consiga arrecadar tantas receitas fiscais quanto o balúrdio que indistintamente gasta com todas as suas obrigações e extravagâncias, com todas as suas prioridades e irrelevâncias. Poderia também pôr-se a questão de outro modo, e há quem o faça, que seria a de o Estado cortar criteriosamente nas despesas e desembolsar apenas na medida do que recebe ou espera receber; mas parece que, para quem está no poder, esse método não dá tanto jeito ou exige competências mais transcendentes do que aquelas que se adquirem nas universidades. A prova disso, convenhamos, é quase quotidiana e está à vista até dos leigos.
Afigura-se pois a muitos razoável que o Governo faça aquilo que sabe fazer melhor, ou seja, aumentar a colecta por decreto e dar instruções implacáveis, embora nem sempre eficazes ou equitativas, para perseguir os caloteiros. Alguém tem alguma coisa a objectar? Então objecte, mas de pouco lhe servirá. Pois quem faz só o que sabe a mais não é obrigado, e não se vislumbra sequer porque haveriam os governantes de ser excepção.
Haverá outros remédios? Talvez. Um crítico perspicaz logo se atreveria a dizer que o primeiro grande passo para o equilíbrio orçamental seria a consciência plena de que ninguém tem o direito de desperdiçar o dinheiro subtraído pelo fisco ao trabalho ou aos lucros de quem labuta ou investe. Mas francamente, quem se iria apiedar dessa ética balofa, se desde tempos imemoriais o saque dos impostos serve prioritariamente para ser desperdiçado, ou seja, precisamente para aquilo que os moralistas dizem que não se deve fazer com ele? O Estado já não é o príncipe, nem sequer a família real inteira, mas alberga agora novos príncipes e novas realezas.
Retirar ao Estado o privilégio de sempre gastar acima das suas posses, acrescentando-as um pouco desmesuradamente com as alheias, não só lhe retiraria a sua dignidade própria, que é a de poder fazer o que se apresenta interdito ao cidadão comum, como poderia implicar uma autêntica revolução psicológica e administrativa que às vezes, mas só de passagem e com natural acanhamento, alguém se atreve a referir como "reforma do Estado". E com a agravante de que a moda das febres revolucionárias já passou, o que se aprecia agora são aquelas tendências reformistas muito mais moderadas que consistem, na maior parte dos casos, em dar um passo à frente e dois atrás. Portanto, ó Deus, se acaso existes, livra-nos de tais exageros!
Que não venha pois ninguém falar-nos da "avaliação da eficácia das políticas públicas", que não nos macem com essa conversa de "suprimir as despesas inúteis e reencontrar margens de manobra", de "substituir a lógica dos meios pela lógica dos resultados". Tudo isso, estamos fartos de o saber, é perfeitamente correcto, mas é precisamente por sê-lo que só dificilmente aparecerá alguém com ciência e consciência e aptidão e ética para fazê-lo. Relaxemos, pois, tanto o espírito como os cordões à bolsa. Talvez morramos mais velhos.
O Estado predador
O Estado, tal como o conhecemos hoje, já não é o que era. Não emite moeda, não determina juros, não fixa câmbios, não levanta barreiras alfandegárias, não controla a circulação de capitais e, espartilhado orçamentalmente, não tem sequer capacidade para promover políticas anticíclicas, isto é, que contrariem os maus ventos que sopram sobre a economia, quando os há (e, infelizmente, há-os com demasiada frequência). Estas palavras, na sua maior parte e sem as devidas aspas, são roubadas a um reputado economista, mas quase todos os outros concordam com ele. Nisso, pelo menos, há consenso.
Em perpétua crise financeira, o Estado já não dispõe de instrumentos para influenciar directamente a economia, o investimento e o emprego. É um Estado desfigurado, reduzido nas suas competências, bastante esvaziado nas suas funções, limitado nas suas capacidades. É uma sombra do que foi.
No entanto, o Estado cresce. E cresce desmesuradamente. Como um sol em declínio, projecta agora a sua sombra com muito maior extensão. Como? Cobrando mais impostos, contribuições, taxas e coimas. Proliferando em organismos, legislação, regulamentos e circulares. Impondo mais obrigações aos cidadãos, mais procedimentos complicados, mais burocracia. Aumentando o seu tamanho, as suas despesas e o seu peso no produto interno bruto. E distribuindo dinheiro ou outras benesses a um número cada vez maior de políticos, funcionários, pensionistas e subsidiados, que o parasitam ou que dele dependem, desde as variegadas elites à humilde e anónima plebe.
Que temos hoje? O "Estado-tesoureiro" ao serviço do "Estado-asilo", acumulando ambas as funções para poder justificar uma com a outra. E sempre pretendendo ampliar ambas, porque se tornou essa a sua principal razão de existir ou porque almeja deliberadamente compensar com dimensões o que vai perdendo em funções, a fim de poder manter devidamente instalado e satisfeito todo o pessoal político e seus respectivos séquitos, não só os que já o são como os que ainda aspiram a sê-lo.
Quem sustenta tais veleidades? Obviamente, as vítimas e os mecenas do costume: os contribuintes que trabalham e que pagam os seus impostos e contribuições; os investidores que produzem ou arriscam e vêem pesadamente tributados os seus lucros e mais-valias; os consumidores que adquirem bens e serviços e desembolsam sumariamente os exagerados impostos sobre o consumo; e os fundos providenciais que nos vão chegando da Europa abastada, aos quais simulamos dar melhor destino e aproveitamento, para que continuem a vir enquanto for possível.
Em suma: já não temos um "Estado intervencionista" que actua sobre a economia para a proteger e incentivar, mas um Estado astuto e predador que a debilita e a suga, em boa parte porque não dispomos de normas constitucionais e órgãos reguladores capazes de lhe impor limites adequados. Até quando?
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008
Os desmandos do Banco Central Europeu
Uma moeda que se tornou demasiado "forte" está a ter consequências muito pesadas. Na verdade, o que uma valorização tão excessiva significa é que as nossas exportações para o mercado americano duplicaram de preço para os respectivos consumidores, enquanto as nossas importações vindas de lá baixaram para cerca de metade do seu custo. Não creio que seja uma boa notícia para os exportadores e os produtores europeus, nem para os nossos mercados de emprego. Tornou-se tão barato ir fazer compras à América que o fenómeno se tornou moda. Pode haver quem lucre com esta distorção, mas a maioria perde. A comprová-lo, estão os agravamentos inéditos dos nossos défices comerciais.
Será que o Banco Central Europeu cumpriu plenamente a sua missão, ao permitir que tal acontecesse? Pode dizer-se que sim, porque lhe atribuíram como uma das suas missões prioritárias tornar o euro uma moeda consistente e credível. Não há dúvida que isso foi conseguido, com inegáveis laivos de exagero. Não era necessário tanto, nem sequer conveniente. Muitas empresas europeias vão pagar dramaticamente esta falta de senso, com uma perda abrupta da sua competitividade.
Outra vocação estatutária do Banco Central Europeu é a de combater a inflação. Muitos analistas lhe têm reconhecido nisso alguma eficácia, mas à custa de asfixiar o consumo, o investimento e, por conseguinte, o emprego, através da subida das taxas de juro e das restrições monetárias. Será essa a política adequada para os tempos que correm?
A inflação talvez tenha sido outrora o problema maior das economias europeias. Actualmente não é, e nada justifica as preocupações empoladas e as considerações alarmistas que geralmente vêm fazer cortejo a qualquer subida de uma ou duas décimas percentuais nos preços. O problema maior de hoje é o desemprego, que cresce a um ritmo alarmante, e que deriva desse outro que lhe subjaz, a incapacidade de um crescimento económico mais enérgico. Mas em relação ao desemprego tem-se constatado uma assinalável tolerância e condescendência, mesmo em relação a variações percentuais significativamente maiores. Enfrentamos pois duas maleitas: um certo dogmatismo monetário e alguma insensibilidade social. O Banco Central Europeu é o novo expoente de ambas.
Muita gente, entre a qual me incluo, não consegue perceber bem por que há-de uma inflação moderada ser tão mais assustadora que um desemprego galopante. Mas não se trata apenas de uma visão distorcida dos nossos reguladores monetários: o que eles fazem é cumprir com excesso de zelo as missões insensatas que lhes foram confiadas.
Ora a economia não pode ser analisada apenas sou um ou dois prismas. É uma óptica de conjunto que lhe dá coerência e estabilidade. Razão pela qual os ministros da economia e das finanças da zona euro deveriam reunir regularmente com o presidente do Banco Central Europeu para construírem juntos uma política monetária adequada à evolução dos acontecimentos. Um procedimento muito simples e escandalosamente sensato, análogo ao que fazem os nossos amigos americanos. Nem que para isso seja necessário redefinir as missões do Banco e alterar os seus estatutos. Aliás, já é mais que tempo.
sábado, 2 de fevereiro de 2008
Brincar às taxas de juro (2)
Antes de mais, é preciso atacá-la pelo seu exagero. Regra geral, os bancos centrais não se têm contentado com pequenos agravamentos das taxas de referência. Constatando que estes não produzem todo o efeito desejado, ou não percebendo que este pode demorar bastante tempo a manifestar-se, acumulam precipitadamente agravamentos sucessivos até eventualmente se aproximarem do dobro ou do triplo da taxa inicial a que começaram a aplicá los.
Para quem apenas raciocine em termos de taxas, um aumento de 25 pontos-base (ou seja, 0,25% em linguagem que toda a gente entenda) até pode não parecer nada do outro mundo. Mas se a taxa inicial, antes de quaisquer agravamentos, era de, digamos, 2,5% ao ano, esse pequeno acréscimo representa de facto um aumento de 10% dos encargos com juros que serão suportados por particulares e empresas. E cada pequeno aumento de mais 0,25% das taxas representará outro aumento de 10% nos encargos totais com juros. Se a taxa sobe gradualmente de 2,5% para 5%, por exemplo, o agravamento dos encargos com juros é de 100%, e assim sucessivamente. É simplesmente demolidor.
Vistos a esta luz, os desmandos dos bancos centrais chegam perfeitamente para explicar as falências provocadas em muitas empresas tecnológicas e outras fortemente dependentes do crédito, especialmente na sua fase de arranque, bem como os incumprimentos em massa no pagamento das amortizações de empréstimos bancários contraídos por particulares.
O caso é particularmente grave no segmento do crédito à habitação. Por um lado, as suas taxas de juro costumam ser substancialmente mais baixas do que as do crédito ao consumo e, portanto, qualquer pequena variação nelas tem logo um impacto percentual muito maior nos encargos suportados. Por outro lado, a amortização dos empréstimos habitacionais consome geralmente uma fatia importante dos rendimentos individuais ou familiares, permitindo a nossa lei reguladora que os respectivos encargos atinjam metade do rendimento bruto dos proponentes de tais empréstimos. Feitas as contas, e conjugando os dois efeitos, logo se percebe que os agravamentos sucessivos das taxas de juro têm um efeito devastador no nível de vida das famílias, na sua folga económica e na sua capacidade para suportar as obrigações assumidas.
Para além de inibir potenciais novas despesas, os agravamentos reiterados das taxas asfixiam gradualmente quem já antes as contraiu a médio ou longo prazo. São sucessivos golpes de machado em qualquer planeamento económico que antes se tenha feito. Não admira pois que advenham crises de grandes proporções no segmento do crédito imobiliário de alto risco. Prevê-las teria sido de elementar bom senso.
Quando os efeitos se tornam dramáticos, será tarde para muitos que os bancos centrais venham apressadamente emendar a mão e inverter a tendência. Uma parte do tecido económico terá sido irremediavelmente destruída por decisões impacientes e mal ponderadas.
Embora haja a intenção de estas manipulações das taxas de juro ajudarem a controlar os ciclos económicos, talvez se possa dizer, e é a própria experiência que o sugere, que são cada vez mais elas que os provocam ou, no mínimo, os agravam.
quinta-feira, 31 de janeiro de 2008
Brincar às taxas de juro
A intenção, como facilmente se compreende, é condicionar o consumo e o investimento. Fazendo subir o preço do dinheiro (que é como quem diz: o juro dos empréstimos bancários), os potenciais gastadores são em parte refreados pelo maior peso dos encargos financeiros que terão de suportar. Uns farão menos despesa, outros desistirão de a fazer. Isto aliviará um pouco a procura de bens e serviços e, em consequência, a sua pressão sobre os preços. Neste raciocínio, parte-se do velho pressuposto básico de que é o crescimento da procura que mais inflaciona os preços e que, ao invés, se pode desinflacionar os preços pela compressão da procura.
Noutros tempos, as coisas poderão ter-se passado como neste modelo tão simples. Hoje, entra pelos olhos de toda a gente que, em muitas áreas, o acréscimo da procura permite economias de escala na produção e na distribuição, o que tende a fazer baixar os preços, e não o contrário. Isso é sobretudo evidente com os novos produtos tecnológicos que são sucessivamente lançados no mercado e que rapidamente baixam de preço à medida que se generaliza a sua utilização.
De facto, na maior parte dos casos, a inflação moderna é causada não tanto pelo acréscimo da procura como pelo aumento incontrolado dos custos de produção. Umas vezes são os preços das matérias-primas e da energia, outras vezes são os agravamentos fiscais, outras vezes ainda é a perda de economias de escala provocada pela diminuição na procura, fazendo subir os custos unitários de produção. Partindo desse pressuposto, tentar travar uma "inflação pelos custos" através de um remédio talvez apropriado para debelar uma "inflação pela procura" deveria parecer, no mínimo, bizarro. Tanto mais que o juro dos empréstimos é, ele próprio, um custo logo incorporado no preço dos bens e serviços.
Como poderão pois os bancos centrais acertar na terapêutica, se começam por errar no diagnóstico? Ao subirem as taxas de juro, não estão apenas a inibir uma parte do consumo e do investimento que dependessem do crédito. Estão também a desbaratar recursos de todos quantos, particulares ou empresas, já contraíram crédito antes da subida das taxas e que assim, de um momento para o outro, se vêem onerados com maiores encargos e despojados de uma parte dos seus rendimentos. Isso pode até moderar a subida dos preços, mas empobrecendo quase toda a gente e asfixiando a economia. Não é o remédio certo.
quarta-feira, 12 de dezembro de 2007
A importância da indústria
Será mesmo assim? Bem, depende do ponto de vista. Quando um país desenvolve o seu sector de serviços sem prejudicar ou desprezar os restantes, isto é, sem descurar a produção de uma parte substancial do que consome ou do que pode exportar, não vem daí nenhum mal ao mundo, antes pelo contrário. É algo que acresce ao que já se fazia antes e, portanto, uma conquista, um ganho, um crescimento.
Mas a óptica inversa já não é necessariamente verdadeira: quando se encara como um fenómeno normal e inelutável o encerramento ou a deslocação de indústrias para o estrangeiro, onde a mão-de-obra é mais barata e menos protegida, sem porfiar em combater a todo o preço tal tendência, algo pode estar bastante errado na visão dos dirigentes e dos analistas.
A razão é esta: a indústria é, de longe, o sector mais permeável à incorporação de tecnologia em grandes doses, o mais veloz na inovação, o mais concorrencial na conquista de mercado. É, de longe, aquele que se transforma e actualiza a um ritmo mais acelerado, onde a própria escala de produção torna bastante mais sensível o impacto de qualquer inovação. É, por tudo isso, aquele onde continuadamente se registam os maiores ganhos de produtividade, até porque a recompensa de qualquer avanço tecnológico ou organizacional tende a ser aí substancialmente maior.
Sabendo nós que, historicamente falando, o aumento dos salários tende a andar atrás dos ganhos de produtividade, não parece muito boa ideia deixar ir escapando aos poucos para outros países as actividades produtivas de um sector que é o que detém o maior potencial para a elevação dos rendimentos individuais. Parece até, falando grosso e depressa, uma asneira crassa.
Olhe-se em volta para esse vasto mundo e depressa se conclui que os países que hoje mais progridem economicamente, aqueles onde mais depressa aumenta o nível médio de vida, onde os salários crescem a um ritmo mais veloz e os produtos internos embaratecem mais ou encarecem menos, em termos relativos, são precisamente aqueles que mantêm ou incentivam uma indústria florescente, modernizando-a e expandindo-a em várias direcções.
Não é por acaso. A indústria pode parecer a muitos uma coisa do passado, a ponto de se deixarem seduzir pelos presumíveis encantos de uma sociedade pós-industrial, mas a produção de bens não foi tornada obsoleta pela produção de serviços, sob ponto de vista nenhum. Nos últimos dois séculos, sempre foi a indústria que mais elevou o nível do bem-estar colectivo e do desafogo económico. Quem procura a "modernidade" em economia, bem como o crescimento sustentado dos salários, talvez precise de analisar melhor onde as modernas tecnologias produzem o maior grau de impacto, inclusive nos aspectos sociais. Aliás, sob muitos ângulos, a interdependência entre indústria e serviços não pára de crescer. Quem tem uma sem a outra arrisca-se a ficar para trás.
terça-feira, 13 de novembro de 2007
A idade da reforma
Há várias décadas atrás, havia uma base demográfica que permitia alimentar esse sonho. Por cada reformado que se tornava beneficiário deste nirvana do ócio previamente prometido e assegurado, havia vários contribuintes no activo a prescindir obrigatoriamente de uma parte substancial dos seus rendimentos para que tal beatitude fosse possível.
Depois, as coisas complicaram-se: os europeus começaram a ter menos filhos, a viver cada vez mais e a gerar mais despesas de saúde; paralelamente, os jovens passaram a estudar durante mais tempo e a entrar mais tarde no mercado laboral. O sonho converteu-se em pesadelo para os políticos e gestores que deveriam assegurá-lo e mantê-lo. Porque o número de beneficiários reais e de candidatos iminentes ao ócio passou a aproximar-se perigosamente da razão de um para um, ou seja, por cada pessoa idosa retirada de qualquer actividade remunerada haveria outra mais jovem a sustentá-la, o que logo permitiu adivinhar ser uma tal situação, a breve prazo, política e financeiramente insustentável.
Quando o ócio de alguns é encargo repartido por muitos, a coisa passa, se houver esperança de iguais mordomias no futuro para os que desembolsam. Mas quando a relação entre beneficiários e sacrificados caminha a passos largos para tornar-se paritária, o caso muda de figura.
Aumentar a muito custo a idade da reforma foi um dos expedientes possíveis e indispensáveis, outro foi diminuir o montante das pensões. Mas como se morre em média cada vez mais tarde e o emprego não cresce ao mesmo ritmo galopante que as intermináveis legiões de idosos, estas soluções de emergência não constituirão a solução final.
Para quem se dedique a pensar dois minutos sobre o assunto, partindo do pressuposto discutível de que um tal "modelo social europeu" é para manter, parece óbvio que será necessário indexar rapidamente a idade mínima das reformas à esperança média de vida das pessoas, e que talvez venha a ser sensato no futuro indexar o próprio montante das pensões ao volume flutuante das contribuições para a segurança social efectivamente recebidas, a menos que se encontrem outros mecanismos indolores de compensação financeira para as oscilações negativas das receitas. O que não é possível, numa economia mundializada e deslealmente competitiva como a de hoje, é onerar de forma tão corrosiva os rendimentos do trabalho e os custos das empresas, para manter no limbo do possível um sonho fugidio tecido por gerações anteriores.
Talvez um dia se questione mesmo, mais por necessidade que por angústia ética, se o "direito à reforma" não deverá ficar afinal mais circunscrito a condições e requisitos que o próprio declínio da saúde individual justifique, em vez de continuar a ser o mero resultado imediato de uma transição etária.
quarta-feira, 17 de outubro de 2007
O IVA social
O sistema parece funcionar tão bem que até o novo presidente francês fez dele um dos temas fortes da sua campanha eleitoral e do seu programa governativo, prometendo tentar aliciar os restantes parceiros europeus a aderir a ele.
As vantagens parecem evidentes. A abrangência do IVA é muito superior à das contribuições sociais, pois incide sobre todos os factores produtivos incorporados no preço de venda dos bens e serviços (e não apenas sobre trabalho prestado no próprio país) e sobre todas as transacções (independentemente do grau de incorporação do trabalho nacional nos bens e serviços transaccionados). Além disso, permite taxar as importações e exonerar as exportações, fazendo aquelas contribuir também para o sistema de segurança social e contrabalançando em parte os efeitos do dumping monetário, fiscal, ecológico e social praticado por muitos países emergentes (os quais conseguem manter preços mais baixos porque as respectivas empresas beneficiam de uma moeda artificialmente desvalorizada, pagam impostos ridículos, quase não têm de respeitar normas anti-poluição e não fazem descontos para um sistema de protecção social).
Na prática, diminuindo o custo do trabalho interno, o "IVA social" permite atenuar o impacto negativo da actual sobrevalorização do euro nas exportações e tem o mesmo efeito prático que uma desvalorização da moeda europeia. Claro que, ao taxar as importações, produz um aumento dos preços dos produtos importados, mas esse é também um dos efeitos pretendidos para proteger o emprego local. Se os produtos estrangeiros se tornam menos competitivos, os produtores e os trabalhadores nacionais beneficiam. Quanto aos produtos locais, é de esperar que o acréscimo da taxa do imposto seja compensado, no seu efeito sobre os preços finais, pelo decréscimo ou eliminação das contribuições directas para a segurança social que pesam sobre os salários e as entidades patronais. Espera-se até que seja mais do que compensado, visto que as importações passam a contribuir também para o mesmo fim e permitem um alívio adicional a empresas e assalariados.
O "IVA social" actua portanto como um doping sobre a competitividade nacional, de carácter não directamente proteccionista, e ao aligeirar a carga fixa que pesa sobre a remuneração do trabalho, permite também amortecer as flutuações do emprego quando a conjuntura se degrada. Em circunstâncias normais, constitui ainda um factor de maior competitividade para as empresas baseadas em trabalho intensivo.
À primeira vista, são só vantagens. Para nós, portugueses, que temos uma aptidão especial para criar más imitações de tudo o que se inova lá fora, o que se pode razoavelmente esperar é que algum governo habilidoso se aproveite da nova tendência para, a coberto dela, agravar ainda mais o peso global das contribuições e impostos.
Incentivos fiscais ao crescimento familiar
Algumas são óbvias: a evolução do papel social da mulher, que resvalou demasiado para estilos e padrões de vida masculinizados ou egocêntricos; a actual dificuldade de compatibilizar maternidade e carreira profissional, devido à inadequação das regras laborais e aos apoios insuficientes; a maior precariedade dos vínculos afectivos e matrimoniais, agravada por uma legislação civil e por uma jurisprudência que favorecem a irresponsabilidade nas separações e nos divórcios; a menor motivação para as dificuldades e para as compensações emocionais geradas pelos filhos, agora em confronto directo com múltiplas outras possibilidades de vida que exigem disponibilidade pessoal e liberdade de movimentos; o estilhaçamento da tradicional família alargada, que reduziu ou inviabilizou a contribuição prática das gerações mais idosas para os cuidados aos netos; a proliferação da sexualidade livre, em si mesma avessa a vínculos, compromissos e responsabilidades; e enfim, uma concepção hedonística e voraz da vida para a qual as satisfações supremas são as do gozo imediato e as realizações de curto prazo.
Outras causas são frequentemente invocadas, mas quando analisadas à lupa parecem apenas desculpas piedosas. Uma delas é a carestia de vida e os excessivos encargos económicos com os filhos. Se pensarmos, porém, que as gerações actuais têm o mais elevado nível de rendimentos de sempre, bastante superior ao de gerações precedentes, e que a taxa de fertilidade caiu drasticamente apesar disso, a conversa rui pela base. A precariedade do emprego também não é justificação suficiente. Outras gerações a tiveram maior, quando em regra apenas um dos cônjuges gerava rendimentos e não havia o actual nível de protecção ao desemprego. Diz-se também que as exigências com as crianças são hoje muito maiores. É verdade, mas nem isso impede que se atinjam níveis recordes de gastos supérfluos ou perdulários com elas. Sejamos, no entanto, condescendentes e juntemos também estas ao rol das causas comuns alegadas para o afunilamento reprodutivo.
Mas acrescentemos de imediato que o Estado se dispensa de fazer a sua parte, no que respeita aos incentivos fiscais. Quando existem, são tão insignificantes que não chegam para inflectir tendências. Pequenos abonos de família, pequenas deduções à colecta significam pouco mais que nada. São úteis para quem tem filhos, mas não convencem ninguém a tê-los.
A única política fiscal digna desse nome, no plano dos incentivos ao crescimento familiar, seria introduzir um regime de capitação extensivo aos descendentes. Quando um casal declara rendimentos, estes são divididos pelo coeficiente dois para determinação da taxa de imposto aplicável. Mas os filhos e outros dependentes não são considerados como pessoas adicionais, resumem-se a simples apêndices que proporcionam pequenos benefícios. Não há justiça nisso. O rendimento dos agregados familiares deveria ser dividido por um coeficiente igual ao número total dos seus membros, apurando-se algo equivalente a um rendimento tributável per capita. Assim sim, valeria a pena ter filhos, pelo menos de um ponto de vista fiscal, mesmo sem abonos ou deduções. E tornaria supérfluo penalizar as famílias sem eles, como já por aí se fala em desespero de causa.
quarta-feira, 10 de outubro de 2007
Um serviço cívico obrigatório
Muitas das nossas praias e costas carecem de limpeza adequada. Muitas matas e florestas precisam de ser desatulhadas de folhas secas e outros materiais combustíveis que alimentam os grandes incêndios estivais. Muitos parques e jardins, nas nossas cidades e vilas, carecem de manutenção e embelezamento. Muitos dos nossos serviços públicos, com carácter permanente ou em crises sazonais, revelam atrasos e deficiências causados pela escassez de pessoal, umas vezes crónica, outras vezes derivando de férias ou licenças. Em muitas escolas, há pequenas crises esporádicas originadas pela falta de pessoal auxiliar. Em muitas corporações de bombeiros, o número de voluntários tornou-se manifestamente insuficiente. Muitos idosos vivem entregues a si mesmos, sem qualquer apoio domiciliário. E muitas associações de apoio humanitário vêem cerceado o alcance dos seus esforços pela falta de colaboradores.
No entanto, e ao mesmo tempo, inúmeros desempregados aguardam sem qualquer ocupação que se extinga o seu direito ao subsídio de desemprego, e permite-se-lhes mesmo recusar ofertas de emprego sem quaisquer penalizações. Nas escolas, muitos estudantes ficam desocupados durante as longuíssimas férias de Verão, desresponsabilizados de quaisquer obrigações.
Fará isto algum sentido?
Todas aquelas falhas da nossa sociedade de escassos recursos podem, no entanto, ser colmatadas através de um serviço cívico obrigatório. Todos aqueles que recebem ou podem receber algum grau de protecção social contraem uma dívida moral para com a sociedade que os protege. Uns pagam-na através dos seus impostos e das suas contribuições obrigatórias para a segurança social. Outros, que transitoriamente não estão a ser contribuintes líquidos para essa rede de protecção, mas beneficiários directos e desaproveitados de um tal sistema, devem contribuir com algo mais do que a inércia e o parasitismo.
O novo serviço cívico obrigatório deveria recair, antes de mais, sobre todos os desempregados que estão a ser subvencionados, o que também contribuiria para impedir ou dificultar as fraudes. E logo a seguir, sobre todas as crianças e jovens em idade escolar, durante um período relativamente curto das suas férias.
A ética republicana é feita de direitos e deveres, de compromissos e solidariedades. E um serviço cívico obrigatório seria para muitos intervenientes, mas sobretudo para os jovens, a oportunidade altamente pedagógica de participar em actividades de interesse geral, de colaborar com o mundo associativo e com a gestão autárquica, de dar um conteúdo prático a uma noção colectiva de solidariedade que amiúde não passa de um conceito hipócrita e descartável.
segunda-feira, 8 de outubro de 2007
Um mito desfeito
Agora, após vários anos de feroz e enraivecida perseguição às fraudes e à evasão fiscal, a nossa perspectiva teve de mudar.
A azáfama das inspecções, a parafernália de meios informáticos utilizados, os refinamentos legislativos, a quantidade de processos em trâmites, o número de penhoras efectuadas, o volume das cobranças em atraso que foi sendo recuperado, o crescimento avantajado das receitas, tudo isso tem somado êxitos e recordes, segundo nos informam as muito apregoadas estatísticas da propaganda governamental.
Mas, surpresa das surpresas, os impostos não baixaram, nem as promessas do Governo para lá se encaminham. Pelo contrário, têm continuado a subir, de uma forma ou de outra. Nuns casos, por agravamento das taxas; noutros, por alargamento da sua base de incidência ou por actualização insuficiente dos respectivos escalões de tributação; noutros ainda, por eliminação de deduções e benefícios. E à margem deles, muitas taxas cobradas pelos serviços públicos registaram aumentos bem acima das percentagens oficiais da inflação.
Conclusão: a carga fiscal está agora mais distribuída, o grau de evasão diminuiu bastante, o Estado viu aumentar significativamente as suas receitas mesmo em período de fraco crescimento económico. Mas, em vez de descer, a carga global das contribuições e impostos cresceu também e passou a onerar ainda mais os rendimentos.
Isto só mostra o grau de voracidade fiscal que está entranhado até à medula nos hábitos perdulários do Estado que temos. Quanto mais houver, mais se gasta. E para que se possa gastar mais, a obsessão é sempre a de cobrar mais ainda. Parece pois distante e remoto o ano abençoado em que alguém nos anuncie, sem faltar à verdade, que o Estado gastou menos, em termos absolutos, do que no ano anterior e que se prepara para ainda maior austeridade. De qualquer modo, se tal ouvirmos, nem vamos acreditar.
E outra coisa se demonstra: que esta voracidade por impostos já não faz grandes distinções entre "direita" e "esquerda", entre socialismo e social-democracia, entre lideranças firmes e frouxas. Em termos fiscais, a palavra de ordem é arrecadar. Parece fora de questão fazer cortes drásticos nas despesas públicas, para além de operações meramente cosméticas, ou eliminar as funções supérfluas do Estado.
Assistiremos ainda a novas investidas, no sentido de o fisco se aproximar um pouco mais do confisco? É bem provável.
quarta-feira, 21 de junho de 2006
A teoria do lençol curto
A economia pode crescer devido a factores como mais tecnologia, maior produtividade, melhor gestão, sem que o emprego como um todo disso beneficie. Pelo contrário: esses factores que hoje contribuem para o crescimento económico têm a traiçoeira virtude de dispensar também algum emprego, por eles tornado desnecessário em consequência da modernização que acarretam.
Segundo as estatísticas, criam-se novos empregos, mas o desemprego sobe. A população nativa diminui, mas o desemprego aumenta. Pura e simplesmente, o efeito conjugado da criação de novos empregos e da diminuição da população nativa não chega para compensar a crescente procura de trabalho pelos desempregados remanescentes. Isso quer dizer qualquer coisa.
Por um lado, talvez esteja na altura de rever ou testar a simpática teoria de que os afluxos de imigrantes apenas vêm ocupar postos de trabalho desdenhados pelas populações do país anfitrião, seja ele Portugal ou outro qualquer do rol habitual. E é saudável que se note que a taxa de desemprego cresce também de modo significativo entre os próprios imigrantes, o que revela à saciedade que eles já são bastante excedentários para as reais ou supostas necessidades do país.
Por outro lado, a elevação drástica e inevitável da idade da aposentação, que daqui em diante não terá outro remédio senão andar indexada à esperança média de vida, não poderá ser encarada como uma panaceia para todos os problemas orçamentais da segurança social.
Porquê? Porque numa sociedade em que o desemprego cresce, o prolongamento da permanência dos mais idosos no mercado de trabalho cria a este problemas adicionais na absorção dos mais jovens, já que restringe a abertura de novas vagas destinadas à substituição dos trabalhadores que se aposentam. Como diria o senhor La Palisse, os que não saem não precisam de ser substituídos.
O que resulta daí, tal como um ex-ministro já fez lucidamente notar numa recente entrevista televisiva, é que a poupança que o Estado possa fazer em pensões de reforma arrisca-se a ser completamente absorvida pela vaga crescente de subsídios de desemprego, talvez em geral mais dispendiosos, sem benefício para ninguém. O fenómeno funciona como um lençol curto: tapa dum lado, destapa do outro. Mas impede a injecção de sangue novo na economia.
Talvez, por isso mesmo, seja um erro crasso dificultar tanto a reforma antecipada àqueles que a pretendam, aceitando o ónus de algumas penalizações razoáveis e justas, adequadas ao historial da sua carreira contributiva. Fazendo bem as contas, é perfeitamente possível proporcionar isso sem que o Estado perca. E ganhariam todos aqueles que, por esse facto, conseguissem arranjar emprego, tornando-se ipso facto novos contribuintes para a segurança social.
Vale a pena estudar bem a melhor posição para o lençol.
* A propósito das declarações de Bagão Félix no jornal da RTP-2 em 20/06/2006
sábado, 5 de novembro de 2005
A apologia do óbvio
A culpa não pode ser dos indivíduos, só pode ser das doutrinas em voga. Talvez vá sendo altura de concluir que elas preconizam métodos que não resultam.
Ano após ano, e sem solução real à vista, apesar das promessas repetidas, o espectáculo do descalabro das nossas contas públicas continua. O problema não se resolve, atenua-se apenas à custa de expedientes e medidas de emergência. Os impostos sobem, mas as receitas fiscais não tanto. A aceleração da despesa é contida, mas o desperdício financeiro não tanto. E assim por diante.
A generalidade das ciências pratica hoje em dia um certo espírito experimental, do qual resulta que sejam afastadas as hipóteses que não dão resultados satisfatórios. Parece que só em economia se não faz isso, apesar de a disciplina tanto reclamar o estatuto de ciência. Tendo posto em prática medidas que não deram os resultados desejáveis, pretende ainda obtê-los pelo reforço das mesmas medidas. Que maravilha de persistência, de empenho, de credulidade!
Pela minha parte, não sendo académico nem especialista reputado, não tenho que estar vinculado a nenhuma doutrina em voga. E como não tenho que defender nem ensinar nada, posso simplesmente observar os factos, relacionar causas com efeitos, comparar as intenções e os resultados. E o que vejo é que, de cada vez que os impostos sobem, a economia contrai ou abranda; os rendimentos caem, as transacções diminuem, os lucros ressentem-se; e sempre que isso acontece, as receitas fiscais declinam e as previsões financeiras derrapam. Em suma: a solução do défice orçamental elevado fica adiada para a próxima tentativa, sempre mais drástica, do mesmo método infrutífero. Já antes lhe chamei "um círculo vicioso", título de um artigo que passou despercebido, como também este certamente irá passar.
O que o país precisa, pelo contrário, é algo diferente: baixar os impostos. Diria mesmo mais: baixar drasticamente os impostos e outras contribuições obrigatórias. São elas que estrangulam a economia, mais do que qualquer outra coisa. E uma economia estrangulada inviabiliza qualquer crescimento indolor das receitas fiscais.
É o crescimento económico que, através do incremento das transacções comerciais e dos rendimentos, traz consigo a subida dos impostos efectivamente cobrados, directos e indirectos. A simples subida das taxas, em clima de estagnação ou recessão, não produz esse efeito. Taxas mais elevadas sobre transacções e rendimentos em queda só podem agravar o défice.
Não esqueçamos o famoso efeito multiplicador que, como uma onda de choque, se propaga a montante e a jusante das actividades empresariais, quando uma economia se expande; pelo contrário, quando os negócios e os rendimentos se contraem, o que temos é um efeito desmultiplicador, simétrico nos seus efeitos, contra o qual não há subidas de taxas que aguentem.
Aqui fica, mais uma vez, o aviso. Vem mais défice a caminho.
terça-feira, 20 de setembro de 2005
Um círculo vicioso
Se há défice, isso significa que o Estado precisa de mais receitas, de menos despesas ou de ambas as coisas. Se o défice é grande, não há que hesitar: precisa dessas duas terapias. Mas como diminuir despesas a curto prazo parece difícil, nem que seja pela razão simples de só ser possível com medidas drásticas e muito impopulares, a alternativa inteligente parece ser a de fazer os cortes possíveis nas despesas (entenda-se: os cortes politicamente menos inconvenientes) e agravar impostos directos ou indirectos para fazer aumentar as receitas. Há neste raciocínio dois pressupostos básicos que ninguém põe em discussão: aumentam-se os impostos e as receitas fiscais sobem; teoricamente, deverão até subir na mesma proporção. Como circunstância agravante, confunde-se ainda o aumento das receitas fiscais com o aumento das taxas de imposto, apesar de serem coisas diferentes (e de uma não conduzir necessariamente à outra).
Há aí um duplo erro. Primeiro, os aumentos de impostos constituem sempre um estímulo adicional para a evasão fiscal e têm como efeito indesejável um incremento da economia paralela; em consequência, a receita efectivamente gerada é sempre inferior à prevista pelos cálculos que não tenham em conta tal efeito. Segundo, é completamente menosprezado o impacto das sucessivas ondas de choque causadas pelo agravamento. Vejamos porquê.
Se um imposto, tal como o que recai sobre o valor acrescentado (IVA), é aumentado em 2%, parece à primeira vista que os cidadãos continuarão a pretender gastar o mesmo, mas o Estado arrecada mais 2% do que antes. Esquece-se, porém, que a subida dos impostos indirectos sobre os bens e serviços constitui um pequeno travão psicológico para certos tipos de consumo, que poderá levar muitos indivíduos e empresas a adiar algumas despesas não essenciais nem urgentes, esperando que uma posterior descida da carga fiscal reduza o desembolso necessário. Este freio actua sobretudo sobre a gama dos artigos caros ou de luxo, no caso dos indivíduos, ou sobre os investimentos arriscados ou adiáveis, no caso das empresas. As áreas mais atingidas representam normalmente transacções de valor elevado.
Mesmo que tal travão não funcionasse e toda a gente gastasse o mesmo, o valor total dos bens efectivamente adquiridos, subtraído o IVA, seria reduzido em 2% (exactamente a quantidade ou percentagem adicional do rendimento que vai ser engolida pelos impostos acrescidos). Como portanto a procura decai em quantidade, os efeitos desse decréscimo repercutem-se sucessivamente a montante, arrefecendo e contraindo a economia. Os efeitos não se sentem de imediato, mas rapidamente aparecem. Havendo menor quantidade de transacções, devido a esta contracção, e uma fuga de certa quantidade delas para a economia paralela, temos nada menos que dois fenómenos a actuar conjuntamente para reduzir a tributação prevista.
quinta-feira, 23 de dezembro de 2004
A obsessão do défice
São espantosos os resultados a que o fervor ideológico pode conduzir. Na América, a nova ortodoxia religiosa pretende fazer tábua rasa de quase dois séculos de avanço científico e regressar aos dogmas do criacionismo, suprimindo dos manuais escolares quaisquer referências a Darwin e à teoria evolucionista. Na Europa, um vento de ortodoxia sopra também nas teorias financeiras em voga, vituperando qualquer défice orçamental como um pecado em si mesmo e fazendo de conta que Keynes nunca existiu.
O que não deixa de ser curioso. Durante décadas, ensinou-se nas universidades, e de um modo geral em qualquer curso roçando ao de leve a economia política, que o recurso ao défice orçamental era um instrumento possível e útil no combate à recessão ou à estagnação económicas. Contra-indicado em períodos de forte e espontâneo crescimento económico ou no cenário de significativas tensões inflacionistas, era uma terapêutica recomendada para sair de depressões ou para enfrentar ameaças delas. É certo que entretanto o remédio ganhou má fama pelos exageros do seu uso e pelo modo indiscriminado como foi administrado; mas o seu princípio activo não deixou de ser eficaz. Seja como for, conjugam-se agora inúmeras forças para bani-lo do receituário.
Hoje em dia, em certos quadrantes do pensamento económico, Keynes passou a ser tão proscrito como Darwin na biologia. De um momento para o outro, segundo parece, alguém se lembrou de estatuir que qualquer destes génios só disse asneira e que as suas teorias estão desajustadas aos factos, embora não desmentidas por eles. E a partir daí, com zelo escolástico e ecoando fortemente na imprensa, não mais deixaram de se entoar loas ao equilíbrio orçamental nas contas públicas, como se essa fosse a verdadeira e única panaceia universal.
Mesmo perante as evidências, muitos economistas encartados se recusam a reconhecer que retracções bruscas na despesa pública em clima de depressão económica só podem contribuir para agravá-la. Não adianta argumentar. O célebre Pacto de Estabilidade e Crescimento que os líderes europeus inventaram ainda em período de vacas gordas, sem preverem que ele podia ser absolutamente inadequado e contraproducente no período de vacas magras que lhe iria suceder, continua a ser a cartilha de todas as virtudes. E olham-se como consequências do défice orçamental todos os efeitos perversos que resultam do próprio combate ao défice. Este atingiu tal paranóia obsessiva e um grau tal de dogmatismo que a ele se sacrificam o emprego, o crescimento, a saúde das empresas e o progresso dos particulares.
Resta aguardar por outra vaga de ortodoxia que um dia nos explique, preto no branco e com o mesmo tom de convicção, que tudo isto não passou de um enorme disparate. Esse dia virá, não sei é quando. Mas seria bom que fosse depressa.