domingo, 5 de abril de 2009
Duas contribuições teóricas...
Passo a explicar ambas as ideias.
Quando os partidos políticos portugueses concorrem a eleições, fazem-no através da apresentação de listas de candidatos cuja ordenação é rígida. O eleitor escolhe a lista do partido que prefere, mas nada pode fazer para alterar a ordenação dos candidatos na lista.
Na Europa, o sufrágio de lista é esmagadoramente maioritário, e compreende-se que assim seja, pois esse é um dos componentes necessários dos sistemas eleitorais que tendem a assegurar uma maior proporcionalidade da representação política. Mas, em muitos países, para além de votar na lista de um partido, o eleitor dispõe também de um ou mais votos para atribuir aos seus candidatos preferidos nessa lista, podendo assim interferir na respectiva ordenação. Deste modo, ele não está somente a escolher um partido, mas também os que considera serem os melhores candidatos desse partido. Não escolhe apenas uma força política, mas também pessoas, personalidades.
Em Portugal, onde se usa um sistema de listas fechadas e bloqueadas, um eleitor ao votar num partido aceita inevitavelmente a ordem dos candidatos que lhe é proposta na lista (e os eleitos, não esqueçamos, são apurados pela sua ordem na lista). Noutros países, dá-se maior poder aos eleitores, permitindo-se-lhes fazer uma escolha intra-partidária dos melhores candidatos e alterar a sua ordem na lista em que concorrem. É a isso que se chama voto preferencial e pratica-se, com diversas nuances, na Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Grécia, Holanda, Hungria, Islândia, Itália, Lituânia, Noruega, Polónia, República Checa e Suécia. Obtém-se assim uma maior personalização dos mandatos e uma maior responsabilização dos eleitos perante os eleitores. Não resolve todos os problemas da representação política, mas ajuda a atenuar alguns, e é óbvio que dá mais peso ao eleitorado.
Quanto à chamada disciplina de voto, que obriga deputados e autarcas a votarem de acordo com as instruções recebidas dos directórios partidários ou das chefias de bancada, considero-a um dos maiores males da nossa democracia. Ela viola o artigo 155º da Constituição, que determina que o deputado exerce livremente o seu mandato; e fá-lo violar a sua consciência e até a sua competência técnica, fazendo-o pronunciar-se contrariamente ao que pensa ou sabe. Por isso, na pior das hipóteses, ela deveria constituir uma excepção em prol da governabilidade (admissível talvez em matérias como o Orçamento do Estado, as moções de confiança e de censura ou o Programa de Governo) e não uma regra.
A disciplina de voto tem vários efeitos muito perniciosos: arregimenta os deputados da maioria parlamentar como uma claque subserviente ao Governo e, como tal, impede qualquer controlo e fiscalização eficaz deste pelo Parlamento, ao contrário do que é pressuposto pelos próprios fundamentos da teoria democrática; favorece a corrupção política e os abusos de poder, e dá-lhes cobertura; impede a livre expressão de opiniões por aqueles que foram mandatados para nos representar; torna rígida e monolítica a maioria parlamentar, e por vezes a própria oposição, inviabilizando qualquer debate sério; subverte a separação de poderes, colocando o Parlamento sob o jugo do Governo, através de uma maioria dócil e controlada; afasta do jogo político os mais competentes, em proveito dos meros sequazes dos líderes, e leva a colocar a lealdade incondicional acima da própria competência para o desempenho dos cargos. Et cetera.
Há vozes que se levantam contra ela nos vários partidos, mas que são sufocadas pelas claques instaladas no poder. Compete-nos, fora dos partidos, dar também expressão a mais este combate pela racionalização do sistema político. Não estaremos sozinhos.
terça-feira, 17 de fevereiro de 2009
A filosofia da representação política
Dantes, os partidos forneciam-nos uma espécie de enquadramento doutrinário, estavam para a política como os pontos cardeais para a navegação. Podíamos não conhecer em pormenor os seus objectivos ou programas, mas eles representavam para nós pontos de referência ideológicos, tendências mais ou menos demarcadas e confiáveis. Isso acabou. A ideologia perdeu importância e consistência, sofreu erosões diversas, diluiu-se ou descaracterizou-se no vendaval de questões técnicas e pragmáticas que assolam a governação moderna.
A confusão reinante é tal que já ninguém arrisca pôr a cabeça no cepo quando se trata de associar um determinado partido a certas políticas práticas, ou sequer a certas orientações de fundo, pelo menos no leque cada vez mais restrito dos partidos realmente vocacionados para disputar o poder governativo. Já quase ninguém sabe muito bem quem representa o quê e como, e as surpresas e decepções pós eleitorais sucedem-se a um ritmo preocupante. Talvez por isso mesmo, ou também por isso, são cada vez mais os eleitores que não sabem mais em quem votar.
Para bem da democracia, sem dúvida que seria desejável que os partidos voltassem a assumir explicitamente os seus valores, ideais, programas e objectivos de médio prazo. Mas, na verdade, o terreno tem-se mostrado fértil sobretudo para a camuflagem, a hipocrisia, a mentira, o oportunismo e a pilhagem. O país avança e recua aos solavancos, mas raios me partam se a maioria sabe ao certo para onde o levam ou o que dele se quer.
O Partido Socialista ainda dá por esse nome, mas pôs o socialismo na gaveta há tanto tempo que já nem se lembra onde o guardou. O Partido Social-Democrata, se alguma vez o foi realmente, tornou-se entretanto uma psicadélica manta de retalhos, uma espécie de "patchwork" doutrinário. O próprio Partido Popular, que já foi orgulhosamente democrata cristão, mandou a democracia cristã às urtigas e entregou-se ainda mais devotamente aos jogos de poder e de conveniência. O Bloco de Esquerda é apenas um variegado grupo de gente que consegue a proeza louvável de conseguir estar em sintonia só quando se trata de praticar a maledicência e o bota abaixismo contra tudo o que mexe à sua direita e à sua esquerda. E o Partido Comunista mantém se rigidamente fiel a ortodoxias que já não têm lugar nem razão de ser no mundo de hoje, e muito menos no de amanhã, sendo certo que até os próprios militantes, na sua maioria, já realizaram o milagre de perceber isso.
Se os partidos tradicionais já representam tão pouco, e afinal quase nada do que era suposto, mais vale questionar se o sistema eleitoral não deveria viabilizar alternativas, e quais.
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009
Uma solução moderada
Assim, ficaria qualquer governo ao abrigo de maiorias parlamentares flutuantes ou instáveis, potencialmente devidas ao facto de o Executivo não conseguir assegurar a coesão e a disciplina partidárias numa votação desse tipo. Embora, sopesando a experiência e a nossa tradição política, seja difícil acreditar que, num momento crítico como esse, estando em risco a sobrevivência do governo em funções, a disciplina partidária deixasse de actuar espontaneamente, apenas pelo simples facto de já não ser obrigatória. Só um poder executivo irredutível e encurralado, indisponível para negociações intra-partidárias, correria assim o risco de perder uma parte substancial da sua própria base de apoio, o que não deixaria de ser uma circunstância de cariz muito excepcional.
Contudo, a abolição total da disciplina de voto não é a única hipótese a considerar. Talvez ela não seja sequer indispensável para uma substancial melhoria da actividade parlamentar, desde que aos deputados seja assegurada a liberdade de opinião e de voto numa larga maioria de questões. Desse modo, também as bancadas dos partidos no poder poderiam exercer a sua função crítica, fiscalizadora, de filtragem técnica e política, sem que as suas discordâncias pontuais com o Governo fizessem pairar o espectro da eventual derrocada deste.
Para assegurar a governabilidade, bastaria que a disciplina de voto ficasse confinada à votação de moções de confiança ou de censura, ou eventualmente pouco mais (embora com relutância, e como solução de compromisso pragmática com os mais receosos de eventuais impasses políticos, aceitaria também que a disciplina de voto se estendesse à votação do orçamento do Estado, sobretudo no caso de vir a vingar essa ideia infeliz de criar círculos uninominais, susceptível de pôr os próprios deputados da maioria a querer dar primazia aos interesses locais que protagonizem ou representem).
Se a abolição total da disciplina de voto parecer a alguns uma solução demasiado radical, por recearem os efeitos da liberdade de voto dos deputados na governabilidade do país, então a solução moderada consiste em limitar a disciplina de voto às poucas questões que põem realmente em causa a governabilidade.
terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
A questão da governabilidade
Este tipo de receio vem sempre pressurosamente ao de cima, em geral apoiado em fraca argumentação, e não poucas vezes suportado por argumentação nenhuma, como se a coisa fosse evidente por si mesma. Irão perdoar-me, mas não é.
Antes de mais, o receio da ingovernabilidade do país não pode ser justamente invocado pelos partidos da oposição, pois esses, por definição, não governam. O seu problema será outro: manter sob controlo as hostes partidárias e, em particular, os seus deputados e autarcas. Nos partidos nunca há homogeneidade, como se sabe, mas sempre gostam de se comportar como se houvesse, para inglês ver. Brigas só à porta fechada (sem prejuízo de uma guerrilha feia e discreta cá fora), que é para os adversários não se porem a presumir fragilidades.
Quanto aos partidos que realmente governam, não são impedidos de o fazer por "maiorias flutuantes" nas votações parlamentares (há quem prefira chamar-lhes "maiorias instáveis", mas é sobretudo uma questão de semântica). Desde logo, porque há uma vastíssima área da governação que é da competência exclusiva do Governo e não carece, portanto, de aprovação ou apoio parlamentares. E nas áreas que não são da sua competência exclusiva, não é suposto que o Governo tenha de levar sempre a melhor, senão não faria diferença absolutamente nenhuma que o fossem também.
A intenção de criar áreas de decisão que são da competência do Parlamento é precisamente a de limitar os poderes arbitrários do Governo, sujeitando-o à necessidade de autorizações legislativas, apoios políticos explícitos, consensos alargados, fiscalização do poder executivo pelo legislativo. Tudo isto é subvertido quando, por força da submissão partidária, os grupos e as comissões parlamentares se tornam meras correias de transmissão dos estados-maiores dos partidos, deixando de cumprir criteriosamente a sua função de filtro político e técnico dos projectos de lei.
É a pura verdade: quando não há maiorias parlamentares arregimentadas, os governos não conseguem fazer passar tudo o que querem. Chama-se a isso limitação de poderes. E se quiserem obter aprovação para os seus projectos legislativos, terão de caprichar mais na qualidade e justiça deles. Não vejo aí nenhum mal.
O problema que sobra, e esse é o verdadeiro problema, é o das moções de censura que podem fazer cair o Governo. Mas se não se quiser que este fique vulnerável a maiorias flutuantes ou instáveis, nem tão-pouco refém de chantagens conjunturais, basta subir a fasquia da estabilidade e exigir uma certa maioria qualificada para que uma moção de censura possa causar a queda do Executivo. Nada mais simples.
A governabilidade tem pois solução fácil, mesmo sem disciplina de voto.
sábado, 17 de janeiro de 2009
Ainda sobre os círculos uninominais
Argumenta-se que a culpa disto é do próprio sistema eleitoral, pois os eleitores têm muita dificuldade em saber quem são os deputados que os representam e, por isso, estão quase impossibilitados de os responsabilizar. Investindo contra moinhos de vento, há logo quem avance que a panaceia para esta maleita são os círculos uninominais, ou que se deveria enveredar por um sistema misto em que aqueles coexistissem com um círculo nacional, este último para compensar as distorções à proporcionalidade. Etc, etc, etc.
Cabe perguntar: enquanto persistir a disciplina de voto nos partidos políticos, adianta alguma coisa que os eleitores saibam quem é o deputado que representa o seu círculo? Terá esse deputado a capacidade de agir e votar pela sua cabeça, independentemente das instruções recebidas da sua direcção parlamentar, ou, no seu papel inconfessado de mero peão, fará basicamente o mesmo que faria qualquer outro no seu lugar, que é o mesmo que dizer, votará de acordo com as orientações que lhe derem, defenderá as posições que forem dominantes no aparelho partidário, mandará às urtigas as opções locais que forem inconvenientes para o seu partido como um todo? Afinal, o deputado conhecido irá pretender recompensa diferente daquela a que aspira o deputado desconhecido, a saber, a sua reeleição ou a ascensão na estrutura partidária, tendo em vista a continuação ou o "upgrade" das mordomias dos cargos políticos?
Segunda questão: se os círculos uninominais provocam distorções evidentes à proporcionalidade do sistema eleitoral, que maior democratização é que poderá resultar da formação de "maiorias artificiais" em que um maior número de eleitos não corresponde necessariamente a um maior número de eleitores apoiantes nem a uma maior representatividade política real?
A terceira questão já não é uma questão, é uma certeza. Um círculo nacional não compensa as distorções na representação proporcional criada pelos círculos uninominais, apenas a atenua. Porque um círculo nacional, apesar das manipulações a que pode ser sujeito, tende a gerar proporcionalidade, pois é também para isso que é concebido. Enquanto os círculos uninominais apenas tendem a gerar distorções a ela, apesar de serem concebidos para outra coisa completamente diferente.
domingo, 11 de janeiro de 2009
Os equívocos do voto preferencial
Mas, para produzir efeitos úteis, a intenção subjacente não pode limitar-se a que, nos actos eleitorais, deixemos de apenas pôr uma cruzinha num dos partidos concorrentes e possamos também expressar preferências por uns candidatos em detrimento de outros, dentro da lista partidária em que votamos. De facto, este tipo de "voto preferencial" não resolve tudo. Aliás, por si só, talvez não resolva nem altere nada de fundamental.
O problema maior é que não basta personalizar o voto dos eleitores, fazendo-o recair em personalidades e não só em partidos. É também necessário personalizar o voto dos deputados, fazendo-o recair sobre as opções que realmente defendem em consciência e não sobre as que lhes são impostas pelas respectivas direcções parlamentares, estas por sua vez controladas pelos directórios partidários sem pejo nem grandes subtilezas.
De que serve afinal escolher entre um deputado e outro, dentro da mesma lista partidária, se o voto de qualquer deles nas sessões parlamentares for depois determinado de fora pela mesma estrutura de poder, no partido a que pertencem? Estaremos afinal a escolher o quê? Que tipo de preferência estaremos a demonstrar? Que preferimos a oratória de um à de outro candidato? Que apreciamos mais a figura e o estilo deste ou daquele? É curto, muito curto.
De pouco ou nada vale personalizar o voto dos eleitores sem personalizar também o dos eleitos, de modo que estes possam expressar e defender livremente as suas convicções nos debates e nas votações parlamentares, sem terem de recear depois represálias estatutárias por parte dos seus dirigentes partidários. E não vejo senão duas maneiras de o conseguir: acabar de vez com a disciplina de voto (ou, numa primeira fase, limitá-la a certas questões ideológicas consideradas essenciais) e fazer depender as nomeações para as listas partidárias de uma franca concorrência interna, através de eleições "primárias", em vez da tradicional escolha ou indigitação dos candidatos pelos órgãos dirigentes nacionais ou regionais.
Voto preferencial, sim, é uma boa ideia, vale a pena repeti-lo. Mas ele deve começar logo no interior das estruturas partidárias, quando se tratar de escolher, por eleição, os candidatos aos actos eleitorais extra-partidários. Sem isso, haverá apenas fumo sem fogo.
Máxima: uma maior democratização do sistema político deve começar, de preferência, dentro dos próprios partidos, que são hoje o sector menos democrático do sistema.
domingo, 6 de janeiro de 2008
A representatividade dos partidos
O que deve pôr-se em causa nesta questão não é a iniciativa do Tribunal Constitucional, se ela apenas resulta da aplicação da lei vigente. O que deve pôr-se em causa é a própria lei e a legitimidade de uma tal norma.
Todos sabemos que o comum dos cidadãos anda hoje bastante arredado das lides partidárias. Muitos dos filiados nos grandes e pequenos partidos políticos têm neles uma existência apenas fictícia ou meramente residual. Uns não pagam quotas há muito tempo nem participam nas actividades internas, a outros há quem lhes pague as quotas apenas para preservar a representatividade das secções, engrossar as claques eleitorais dos caciques ou manter o número de delegados aos congressos partidários.
É até sobejamente conhecido o fenómeno das inscrições fictícias de muitos dos que se apresentam a votar em eleições internas, pagos para o efeito em dinheiro vivo ou obsequiados com jantares e outros favores. Nem os cadernos eleitorais nem os votantes de cada partido constituem pois um critério fidedigno do número de militantes reais, sendo certo que o número dos militantes activos é sempre muito menor, tal como o demonstra a escassa frequência das sedes e das secções. Na realidade, nem os próprios partidos sabem quantos militantes têm verdadeiramente.
Mas este não é o principal argumento que se pode esgrimir contra as pretensões da lei, quaisquer que elas sejam. O pior é que elas se baseiam no pressuposto implícito de que a representatividade ou relevância dos partidos se aferem pelo seu número de militantes, sejam eles activos ou não, em vez do número de votos que são capazes de obter em sufrágio nacional. Eis a perversão.
Aliás, é bem possível que dois dos partidos actualmente com assento na Assembleia da República não atinjam de facto o número mínimo de militantes que a lei prevê. Deveriam eles perder com isso o direito à existência, se a militância fosse quantificada com absoluta seriedade? É evidente que não. A representatividade dos partidos é aferida pelo voto e não pela militância, algo que aprendemos logo desde os alvores do actual regime. E a inegável falta de representatividade de alguns é publicamente atestada pela ausência de representação parlamentar. É o que basta, não sendo necessário condená-los à extinção por isso. Aliás, é sempre preferível que as correntes minoritárias ou ultraminoritárias se exprimam pelos mecanismos normais da democracia do que à margem deles.
Para rematar, o que mais importa não é o número de militantes em cada partido, mas a qualidade deles. Em teoria, porque há-de um pequeno partido de quadros, por exemplo, ser menos útil à democracia do que um grande partido de massas?
quarta-feira, 12 de dezembro de 2007
Os dois andares da democracia
Somados todos estes aspectos, parece haver poucas razões para duvidar que vivemos no seio de uma democracia representativa plena. Mas examinemos melhor.
A democracia é um edifício de dois andares. No andar superior, as coisas passam-se como atrás foi descrito. Há um clima de livre concorrência entre pessoas e doutrinas, entre ideias e projectos, entre idealismos e ambições pragmáticas, e os vencedores são sempre apurados através do voto. Tanto o poder legislativo como o poder executivo emanam dele. Os que o exercem são, sob um ponto de vista formal, os nossos representantes na estrutura cimeira do Estado ou das autarquias.
Mas no rés-do-chão deste edifício as coisas passam-se de outro modo. O debate interno encontra-se esclerosado ou foi suprimido, as iniciativas e as inovações são barradas por estrangulamentos burocráticos ou entraves estatutários, os contactos interpessoais são restringidos, o acesso à informação vital é vedado, a participação de certas candidaturas em contendas eleitorais pode ser impunemente boicotada, os regulamentos podem ser descaradamente infringidos, a admissão à militância política é reservada ou condicionada e tende a funcionar quase em regime de clube privado, as equipas no poder barricam-se metodicamente para evitar a substituição ou a alternância. O andar térreo do edifício são os partidos políticos.
Ora acontece que o acesso ao primeiro andar se faz através do rés-do-chão. E muitos daqueles que no andar de cima aspiram a serem eleitos, e que dependem de uma eleição para poderem assumir os cargos a que se candidatam, provêm de um piso inferior onde o estatuto de candidato se adquire, não por eleição também, mas por indigitação, ou seja, por nomeação de uma burocracia já bem instalada no poder partidário.
Por outras palavras: no patamar superior, os nossos representantes são eleitos; no patamar inferior são, em larga medida, designados. Pois aí os candidatos a deputados, eurodeputados e autarcas não são apurados por sufrágio, nem constam de listas construídas segundo o método da representação proporcional, nem adquirem a sua legitimidade pelo apoio das bases, ou seja, dos meros eleitores. É a cúpula dos partidos que decide, que escolhe, que segrega, que peneira, enquanto mesmo os seus órgãos intermédios apenas propõem, opinam, dão aprovações e pareceres em nada vinculativos. São pois aqueles que se assenhorearam do piso térreo do edifício democrático, à margem de qualquer legislação ou fiscalização eficaz, que controlam o acesso aos órgãos públicos que funcionam no andar de cima.
Isto significa que a nossa democracia não é plena, mas semiplena. Existe ampla democraticidade na competição entre partidos, mas não existe em idêntica medida dentro deles.
Ora de pouco nos serve podermos eleger livremente os nossos representantes em alguns dos escalões cimeiros do poder político, nos casos em que não podemos eleger livremente os candidatos a sê-lo. Se alguém pôde fazer por nós uma escolha prévia, subordinando-a aos seus interesses e critérios, é previsível que os nossos, os dos meros eleitores, tendam a sair sempre derrotados ou preteridos. E nesta parte, pelo menos, o jogo já não deve chamar-se democracia.
sexta-feira, 9 de novembro de 2007
A traição dos compromissos
Demasiadas vezes tiveram já os eleitores a sensação de lhes quererem impor, após as eleições, políticas que eles não escolheram nas suas linhas gerais.
Não há que culpar disso apenas a falta de clareza, de sinceridade e de coragem com que os dirigentes partidários se apresentam nas campanhas e nos comícios. Em política, mentir faz parte das regras do jogo, se as instituições e as leis o permitem.
A questão, portanto, é fazer com que cada vez menos o permitam. A par da indispensável autorização parlamentar, expressa por maioria qualificada de dois terços dos votos, como já antes defendi, para que um partido político catapultado ao Governo possa violar o seu próprio programa eleitoral, necessário se torna também atribuir explicitamente ao Presidente da República o poder e o dever de não promulgar, com idêntico fundamento, os decretos-leis do Governo que sejam contrários ao teor desse programa. Um tal alargamento de competências presidenciais significaria refinar ainda mais o seu papel de árbitro da democracia representativa.
Mas há mais. A não promulgação de um decreto-lei, nestas circunstâncias, deveria implicar uma dupla consequência: a devolução da sua apreciação para o âmbito do Parlamento, ainda que se tratasse de matérias da competência exclusiva do Governo; e que um tal diploma, para poder ser promulgado, carecesse de o ser sob a forma de lei parlamentar, com o apoio da tal maioria qualificada, ou com prévia autorização do próprio Parlamento, devidamente especificada no seu âmbito e com idêntica maioria.
Introduzir-se-ia assim um sistema de dupla fiscalização da conformidade das políticas governativas com os programas eleitorais apresentados pelos partidos donde brotaram os governantes eleitos: uma, de iniciativa parlamentar, desde que suscitada por uma percentagem significativa dos deputados (digamos, por exemplo, um quarto ou um terço destes, a fim de inviabilizar a guerrilha institucional dos pequenos partidos sem vocação de poder); a outra, presidencial, como parte dos poderes arbitrais concedidos ao supremo magistrado do país.
Contrariamente ao que muitos pensam, a democracia não é um sistema acabado e perfeito. Antes pelo contrário: a experiência vai mostrando que é possível e necessário introduzir pequenas melhorias nas suas regras de funcionamento, destinadas a colmatar imperfeições e omissões que só a própria experiência do regime democrático vai pondo à mostra. Tal como as sociedades onde funciona, a democracia é um sistema em evolução.
segunda-feira, 5 de novembro de 2007
A regra da vinculação eleitoral
Um desses princípios fundamentais em política é a honestidade. Relegada para o baú das ingenuidades ideológicas, sobrepôs-se-lhe facilmente o gosto pelas promessas fáceis, pelas manobras de bastidores pouco escrupulosas, pelas tácticas dúbias que parecem propiciar melhor as vitórias eleitorais. Os eleitores sabem que é assim e parecem conformados, mas isso resulta sobretudo de se sentirem impotentes.
Haverá porém algo que se possa fazer para reduzir a margem de actuação da mentira, da corrupção, da falta de escrúpulo? Haverá alguma regra que permita inviabilizar a trapaça e o descaramento impúdico? Pelo menos em certos domínios, há.
Uma regra possível consiste em interditar constitucionalmente aos partidos que a sua actuação governativa vá em sentido contrário ao do programa eleitoral com que se apresentaram a sufrágio, excepto com uma prévia autorização parlamentar.
O objectivo óbvio de uma tal regra é evitar que se minta tanto aos eleitores durante as campanhas eleitorais. Ainda que não inviabilize a demagogia e as promessas populistas, nem desencoraje as opções arrevesadas que mais facilmente rendem votos, impede pelo menos que se faça no governo exactamente o contrário do que se prometeu fazer antes de nele entrar. E ao dizer isto, salta-me imediatamente à memória o exemplo recente de um certo líder partidário que prometeu uma redução drástica de impostos (até lhe chamou enfaticamente "choque fiscal") e uma das primeiras medidas que tomou, depois de eleito, foi precisamente o agravamento deles. Houve "choque fiscal", sem dúvida, mas ao contrário do que se esperava.
Não é de excluir que circunstâncias conjunturais prementes e indisfarçáveis obriguem um governo a mudar de rumo, em relação ao previsto e prometido. Pode acontecer. Mas o princípio básico da honestidade postula que as promessas eleitorais são para cumprir, o que é o mesmo que dizer que não é legítimo mentir aos eleitores. E isso significa que só com carácter excepcional deve um governo ser autorizado a desviar-se do seu próprio programa eleitoral.
Se alguém o deve autorizar, avaliando a excepcionalidade das circunstâncias e outorgando a legitimidade das medidas desviantes, a instituição própria para o fazer é o Parlamento. Mas para que um partido ou coligação dominantes não possam consegui-lo levianamente, deve a Constituição exigir uma maioria qualificada para o efeito (na minha opinião, não inferior a dois terços dos votos parlamentares).
Uma regra destas, não resolvendo tudo, sempre resolveria alguma coisa.
sábado, 29 de setembro de 2007
Em prol da qualidade da democracia
Desde logo, através de uma legislação clara que moralize e discipline a organização e o funcionamento dos partidos, garantindo neles o fair-play e a democraticidade interna. E se necessário, dando poderes alargados de fiscalização às magistraturas locais, à Comissão Nacional de Eleições e ao Tribunal Constitucional, estendendo a respectiva jurisdição bem para o interior da actividade partidária. É muito o que está em causa e que o justifica.
É preciso acabar com as fraudes eleitorais, com os clientelismos, com o açambarcamento abusivo do poder pelos aparelhos partidários já instalados e engenhosamente barricados atrás de obstruções estatutárias, barreiras à entrada de novos membros, acessos exclusivos às informações pessoais e aos contactos dos militantes, regulamentos feitos à medida e uma intrincada teia de privilégios, inerências e exclusivismos.
Não é só entre os partidos que é necessário garantir a livre concorrência de pessoas, ideias e tendências. É também necessário garanti-la no interior deles.
É preciso assegurar que todos os protagonistas e seus projectos possam concorrer em igualdade de condições e oportunidades, sem se confrontarem com barreiras ardilosas e artificiais.
É preciso que a escolha dos candidatos a deputados e autarcas seja feita através de eleições internas nos respectivos círculos e não através do método da simples designação pelos directórios nacionais. Os partidos políticos são a primeira instância da democracia.
É preciso que os deputados deixem de dever subserviência às direcções partidárias de que dependeu a sua candidatura anterior e de que dependerá a seguinte.
E é preciso abolir a disciplina de voto, sem o que nunca haverá verdadeira fiscalização do poder executivo pelo poder legislativo.
Em tudo isto, é a credibilidade dos próprios partidos políticos que está em jogo, num regime cuja lógica assenta na alternância entre eles.
Através dos partidos, é a qualidade (e portanto, a credibilidade) da democracia que está em jogo, bem como o gosto dos cidadãos pela participação política e a possibilidade de aceder a ela.
Através da qualidade da democracia, são as grandes opções colectivas e a nossa qualidade de vida individual que estão em jogo.
O encadeamento pode ser subtil e pode não ser evidente para todos, mas umas coisas conduzem às outras. Portanto, não é sensato afirmar-se que os assuntos internos dos partidos só a eles dizem respeito.
Se a nossa democracia é de tipo representativo, poderá alguma vez ser irrelevante o modo de escolha dos nossos representantes, nos seus vários escalões, ou o seu grau de autonomia em relação a interesses e pressões, a baronatos e caudilhismos, a lideranças prepotentes e suas correias de transmissão?
O poder democrático começa em baixo. A fiscalização dele deve começar aí também.
quarta-feira, 5 de setembro de 2007
Falhas estruturais
Há factores que são exógenos, mas que não pesam demasiado nas nossas avaliações pessimistas porque não nos afectam unicamente a nós: uma moeda europeia sobrevalorizada, que dificulta as exportações e atormenta as empresas para elas vocacionadas; a competição desleal de vários países emergentes, alavancada por uma política deliberada de dumping social, monetário e fiscal; e o fraco crescimento económico da Europa como um todo, sujeita ao espartilho das obsessões anti-inflacionistas.
Há outros, porém, que são endógenos e persistentes e que só podemos censurar a nós próprios, como a estruturação deficiente do sistema político, a resistência arreigada à flexibilização das leis laborais, a deficiente produtividade do trabalho, o clima de corrupção discreta mas quase generalizada, o défice de lealdade e de confiança interpessoal (algo que faz parte daquilo a que os economistas chamam o "capital social"), a escassez de espírito cívico e de iniciativa empresarial, a ausência de uma cultura de empreendedorismo, as deficiências dos transportes e a anarquia do trânsito, a imigração não selectiva, a excessiva carga fiscal e contributiva, a ineficiência e o espírito perdulário do Estado, a incúria do património histórico e ambiental, a falta de responsabilidade social de políticos e empresários, a ausência de uma visão estratégica para o país e, acima de tudo, a nossa crónica incapacidade de reformar o sistema educativo, tornando-o moderno e eficiente. Talvez a lista não esteja completa, mas já vai extensa.
Porém, a falta de confiança do país em si próprio não resulta da existência de todos estes pecadilho sociais, mas da incredulidade em poder pôr-lhes cobro progressivamente através da actuação competente e enérgica da chamada "classe política". Por outras palavras, o país não confia nos políticos que elege. E tem bons motivos para isso.
Há razões históricas e sociais que favorecem entre nós a proliferação da "baixa política". Mas as tradições não explicam tudo. Há que saber olhar para as falhas estruturais das próprias instituições e da arquitectura jurídico-constitucional em que se apoiam. Mais do que tudo o resto, porque o resto em boa parte depende disso, o aperfeiçoamento do nosso sistema político deveria estar constantemente na ordem do dia. E não está.
domingo, 1 de maio de 2005
Uma má proposta
Parece-me que este é o género de ideias insensatas e inconsequentes que tende a surgir quando uma democracia atravessa uma crise de valores e de projectos. E pertence ao tipo de coisas que se propõe quando não ocorre nada de mais importante e consistente para defender.
Não é difícil, de resto, mostrar que se trata de uma má proposta. O seu único fundamento palpável consistiu no argumento de que a reeleição estaria sempre assegurada, devido ao prestígio mediático acumulado durante o primeiro mandato, o que tornaria a própria reeleição um mero plebiscito. A experiência democrática portuguesa é demasiado jovem e curta para nos proporcionar factos em contrário; mas analisando a história política norte-americana, por exemplo, que tem uma trajectória bem mais longa em matéria de eleições democráticas, já encontramos suficientes exemplos de que as coisas não são bem assim. Na sociedade mais mediatizada do mundo, vários presidentes não conseguiram conquistar o seu segundo mandato. E até a história turbulenta da nossa Iª República, pesem embora as enormes diferenças de época e de ambiente, nos fornece alguns exemplos adicionais.
As vantagens dos dois mandatos consecutivos são óbvias para qualquer pessoa de bom senso: se a maioria do eleitorado está convencida de que elegeu um bom Presidente, ou pelo menos um que lhe parece ser melhor opção que os candidatos rivais, pode reelegê-lo e mantê-lo no seu posto; se estiver decepcionada com a sua actuação, pode descartar-se dele. Na melhor das hipóteses, pode-se conservar durante oito anos um Presidente que seja apreciado; na pior, não teremos de aturá-lo por mais de quatro. Por acréscimo, um Presidente que queira assegurar a sua reeleição deverá abster-se de decisões arbitrárias e parcialidades que lhe minem o prestígio, já que a sua actuação durante o primeiro mandato irá ser julgada pelos votos.
No novo sistema que se defende, as desvantagens são também óbvias: ainda que o Presidente seja considerado pela maioria um bom titular do cargo, só poderá mantê-lo por sete anos, em vez de oito; e se for maioritariamente considerado um mau Presidente, o eleitorado terá de suportá-lo durante sete anos, em vez de quatro. Neste último caso, em vez de ser julgado pelos votos a meio do seu desempenho, será julgado apenas por sondagens imprecisas e inconsequentes.
Onde estão afinal as vantagens da mudança?
quinta-feira, 20 de janeiro de 2005
Contra os círculos uninominais
O nosso país parece ser pródigo em diagnósticos inteligentes e remédios tolos, em análises lúcidas e soluções ingénuas.
Veio de novo gente a terreiro defender a reforma do sistema político, verdadeira necessidade nacional, mas quem o fez não encontrou maior prioridade do que a criação de círculos eleitorais uninominais. O que, diga-se de passagem, não só não constitui uma prioridade, como promete os resultados mais aberrantes.
Quem nunca estudou ciência política fica desculpado por ignorar que, já há mais de duzentos anos, havia entre os primeiros constitucionalistas norte-americanos (os autores dos Federalist Papers que forneceram a seiva intelectual da Constituição americana) quem fizesse notar que, para dificultar a corrupção política, deveria haver uma prudente distância entre o eleitorado e os seus representantes, de modo que as relações e os vínculos pessoais interferissem o menos possível na actuação daqueles.
Por cá pretende-se seguir o caminho inverso. Defende-se uma relação cara a cara entre os eleitos e os seus votantes, pretende-se até que haja horários de contacto e atendimento pessoal. O deputado ficaria assim transformado numa espécie de mandatário, obrigado a servir os interesses de quem o elegesse.
Quem pensa que tudo iria correr bem à velha maneira inglesa deve estar equivocado, porque nós não somos ingleses nem temos a mentalidade ou as tradições deles. Somos portugueses, com hábitos arreigados de nepotismos, clientelas, caciquismos, conluios, negociatas, favores e compadrios, demagogias e venalidades; acaso queremos transportar tudo isso para uma relação mais próxima entre eleitores e eleitos? Pelo contrário, uma tal relação deve ser o mais distanciada possível – no sentido, obviamente, de distanciada das pessoas e não dos seus problemas.
A regra para os círculos eleitorais deve ser a de eles corresponderam ao âmbito dos mandatos: para órgãos de freguesia, a própria freguesia; para órgãos municipais, o concelho; para órgãos regionais, a região; para órgãos nacionais, o país. É incongruente pugnar por um arranjo diferente. Que sentido faz que um deputado vá defender interesses locais para o Parlamento, a quem cabe zelar pelo interesse geral de todo o país? Não faltariam, como já se viu, deputados a chantagear governos, a condicionar leis e orçamentos, a institucionalizar a troca de favores para satisfazer interesses municipais ou petições particulares de pessoas e empresas da sua zona eleitoral. É esse o caminho a seguir? Eis a questão nua e crua: a assembleia nacional deve representar toda a nação e zelar pelo interesse geral ou a sua função é servir de megafone para clientelas meramente locais? É isso que temos de decidir.
A solução correcta, ainda por poucos defendida, é a criação de um círculo nacional único para a eleição dos deputados à Assembleia da República. Isso contribuirá também para clarificar hierarquias dentro dos partidos. De caminho, evita-se um pouco do ridículo a que se tem assistido com a dança arbitrária dos lugares, as movimentações de nomes entre distritos, os folhetins da escolha dos cabeças-de-lista e outros episódios inenarráveis da política à portuguesa, que só não contribuem para desprestigiar ainda mais as nossas instituições porque o baixo nível a que estas chegaram já não o permite.
segunda-feira, 13 de dezembro de 2004
A renovação da classe política
Há muita gente que ainda não compreendeu bem o problema. Ou melhor: acertou numa parte do diagnóstico, mas continua a não reparar na inconsistência das soluções propostas.
Que os partidos estão fechados sobre si próprios, que as suas elites estão mais ou menos reduzidas a um núcleo duro profissionalizado, que existem barreiras à entrada ou ascensão de novos protagonistas, isso tem sido dito repetidamente e corresponde à verdade. Necessariamente, tal situação conduz a um anquilosamento das estruturas partidárias e da sua capacidade de renovação política, não obstante a dança das lideranças e dos seus séquitos.
Mas supor que o problema se resolve com apelos cívicos é de uma enorme candura. Não basta pedir que os partidos se abram a políticos não profissionais, que tentem atrair um número maior de independentes ou que, para o preenchimento de lugares ou candidaturas, alarguem o seu recrutamento para fora do núcleo duro profissionalizado. A grande questão é que as oligarquias instaladas (ou já com esperanças de instalar-se) não estão interessadas nisso. Absolutamente nada.
A última coisa de que os políticos profissionais querem ouvir falar é de nova concorrência que venha disputar-lhes os lugares alcançados ou cobiçados. É por isso que os partidos não se abrem à sociedade civil, que não se esforçam por recrutar novos valores, que asfixiam as próprias tentativas de transformação interna. É também por isso que o debate político quase desapareceu do funcionamento partidário, sendo substituído por episódicas litanias de apoio à claque dirigente e às suas pretensões. A própria contestação interna é abafada sempre que possível e em regra considerada uma traição quando tornada pública ou alardeada do exterior.
Os partidos políticos são hoje hostes profissionais de assalto aos cargos públicos e o seu quadro permanente de oficiais já está preenchido. Novos recrutas só se pretendem para os lugares do fundo da hierarquia, desprendidos de ambições ou suficientemente pacientes para saberem aguardar a sua vez.
Fora dos partidos, consegue medrar alguma preocupação com a renovação da classe política; dentro deles, falar nisso é quase uma blasfémia, pelo menos quando soa aos ouvidos de quaisquer estruturas dirigentes. Há excepções, claro. Mas essas mantêm‑se discretas.
É pois ilusório pensar que algum dia irão chover convites sobre as pessoas competentes da sociedade civil ou que haverá a preocupação sistemática de as atrair. Na óptica dos dirigentes partidários, gente que pensa pela sua cabeça é uma ameaça. E que algum dia se estabeleça um qualquer sistema de cotas para políticos não profissionais, conforme já foi proposto, é francamente duvidoso. Se vier a acontecer, a sua expressão será tão limitada e inócua que facilmente nela se reconhecerá o contorno demagógico de uma mera operação de maquilhagem do enquistamento partidário.
O que falta nos partidos políticos é mais democracia interna. Ou seja: regras que melhorem a concorrência lá dentro. E sobretudo, acabar com as designações para candidaturas a cargos electivos e substituí-las pelo resultado de um sufrágio interno. Permitir que a ascensão de pessoas e ideias possa sempre resultar da discussão e do voto e não dependa de cooptação dos maiorais já instalados.
A lei deve interferir sem pejo na orgânica geral dos partidos e impor-lhes uma maior democraticidade interna, tão essencial à concorrência das ideias e dos projectos como à renovação das elites.
Estamos mal servidos de políticos, reconheça-se, porque também estamos mal servidos de democracia na esfera interna dos partidos.
segunda-feira, 29 de novembro de 2004
Combater a mediocridade
O mote foi dado: é necessário contribuir para que os políticos competentes afastem os incompetentes.
Porém, como consegui-lo? Não bastam apelos à ética cívica e ao patriotismo desinteressado, quando está em causa combater lóbis políticos influentes e bem entrincheirados. Ânimos voluntariosos podem até aparecer, mas algumas medidas legais são também indispensáveis.
Se a mediocridade reina na actividade política, isso deve-se a três causas principais: a falta de democraticidade interna dos partidos, a reduzida filtragem institucional das políticas incorrectas ou populistas e o reduzido atractivo remuneratório dos cargos políticos para as elites profissionais com carreiras consagradas.
No que respeita aos partidos, a lei tem pretendido regular restritivamente as suas condições de formação e de financiamento, com um zelo que chega a ser excessivo e quase fundamentalista, mas nos legisladores tem prevalecido o entendimento de que o Estado não deve imiscuir-se demasiado nas regras de funcionamenbto interno das organizações partidárias. Demasiado, de facto, não deve intrometer-se; não pode é abdicar de impor regras mínimas de democraticidade interna. Assim como é necessário assegurar a livre concorrência entre os partidos e as tendências que representam, é também necessário assegurar a livre concorrência, dentro dos partidos, às diversas facções e opiniões que neles se degladiam e lutam pelo poder interno. Em última análise, a democracia ao nível “macro” é um reflexo da democracia ao nível “micro”.
Pouca gente parece notar que, devido à falta de regras legais adequadas, os partidos políticos se converteram em oligarquias fortemente burocratizadas que se preservam a si próprias, não obstante a competição renhida por chefias, cargos e privilégios. Discute-se a hierarquia dentro do bando dominante, mas este mantém os outros bandos à distância através de expedientes sórdidos. Criam-se barreiras deliberadas à entrada de novos valores individuais ou à emergência de novas tendências. Vicia-se e restringe-se com habilidades estatutárias ou com procedimentos indecorosos o livre e proveitoso confronto entre as personalidades e as facções.
A concorrência de ideias e tendências é tão fundamental no mercado político quanto a concorrência entre produtos e empresas no mercado económico. Mas enquanto neste se combate organizadamente, por meios institucionais, as restrições e os desvios à concorrência, assim como os abusos de posição dominante, no mercado político não se faz nada disso.
Dentro dos partidos, hoje em dia, as candidaturas para certos cargos externos (deputados, membros de assembleias municipais, autarcas) são escolhidas por designação das cúpulas dos vários níveis, não por sufrágio interno. Para eleger dirigentes concelhios ou distritais, chegam a fazer-se eleições sem qualquer período de debate prévio e sem divulgação completa e atempada do calendário eleitoral, para que as oposições internas não tenham oportunidade ou tempo de aprontar listas e preparar campanhas. Quando chega a haver um simulacro de debate, existem estratégias cuidadosamente montadas para abortá-lo. E quando alguém pretende tomar iniciativas, são-lhe negados os meios, tal como o acesso às instalações ou à lista de contactos dos outros filiados.
Mais do que oligarquias entrincheiradas, os partidos políticos converteram-se em discretos sovietes. Em muitas circunstâncias em que deveria acontecer o contrário, o poder já não emerge de baixo para cima, é distribuído de cima para baixo. As candidaturas a cargos externos são apenas um exemplo.
No que respeita à reduzida filtragem institucional das políticas públicas, existe uma generalizada falta de fiscalização e controlo: o Parlamento não fiscaliza o Governo, as assembleias municipais não fiscalizam os executivos camarários, os tribunais especializados não têm todas as competências e meios necessários para fiscalizar as contas públicas e as execuções orçamentais. As assembleias, sejam elas parlamentares ou autárquicas, a quem cabe doutrinária e constitucionalmente o encargo de fiscalizar políticas governativas e camarárias, vêem-se tolhidas pelas fidelidades partidárias impostas e pela pouca independência dos políticos eleitos pelo povo, mas designados pelos partidos (deveriam também, dentro destes, ser eleitos, e sempre por sufrágio directo). A par com a falta de democraticidade interna na selecção de candidatos, há o vício fundamental da disciplina de voto imposta depois aos eleitos. Ambos são vícios capitais. Ambos contribuem decisivamente para substituir a consciência cívica pelas lealdades partidárias, a independência crítica pela fidelidade às lideranças.
No que respeita a atrair à política activa as elites profissionais, há não só que desmantelar legalmente as barreiras à livre entrada de pessoas e à livre divulgação de ideias dentro dos partidos, que continuam a ser o cerne da democracia, mas também possibilitar que um elevado nível de competência, quando aplicado ao serviço público, não implique um grau excessivo de sacrifício privado. No fim de contas, administrar um país envolve muito mais responsabilidade do que administrar uma empresa, por mais tentacular que esta seja.
terça-feira, 3 de dezembro de 2002
A inconstitucionalidade da disciplina de voto
Começo por propor à doutrina jurídica uma distinção conveniente entre duas formas de inconstitucionalidade material das leis.
Chamemos inconstitucionalidade primária àquela que resulta de uma norma ou procedimento afrontar directamente um preceito constitucional, violando-o de forma óbvia através do próprio fim ou resultado pretendido. E considere-se que enferma de inconstitucionalidade secundária uma norma ou procedimento que, não contrariando pelo seu conteúdo expresso os imperativos constitucionais, produz no entanto, como resultado normal da sua aplicação, ainda que não pretendido, efeitos contrários ou diversos daqueles que a Constituição visa consagrar ou proteger.
Pode-se desde logo questionar se a disciplina de voto imposta pelos partidos políticos aos deputados parlamentares não constitui uma violação primária da natureza do voto, que a Constituição considera como um direito pessoal. Ser alguém coagido a votar contra a sua consciência, independentemente de qual o seu estatuto, quando é sua a titularidade do direito de voto, não é apenas imoral; pior do que isso, é uma aberração.
Sendo cada deputado membro dum órgão de soberania, como o é o Parlamento, segue-se que a imposição de uma disciplina de voto – que constitui para ele uma obrigação atribuída do exterior, e não uma mera recomendação, visto que a inobservância é sujeita a sanções – constitui afinal uma transferência sub-reptícia da soberania do Parlamento para os partidos políticos. Fica-se o Parlamento por uma soberania aparente, mas detêm os partidos a soberania real, visto que são eles que determinam de fora as decisões que hão-de ser tomadas lá dentro. Ora o Parlamento deve ser o órgão que efectivamente detem a soberania (isto é, a parte dela que lhe é constitucionalmente atribuída) e não apenas o local onde tal soberania é formalmente exercida, através de mandatários fiéis, por organizações políticas que lhe são exteriores.
Este é um exemplo de inconstitucionalidade secundária. Em nenhum local vem escrito que a soberania reside nos partidos políticos, que a exercem conjuntamente num local chamado Parlamento. A Constituição não é expressamente violada em nenhuma das suas partes, mas o resultado de tal prática é estranho ao que a lei fundamental dispõe.
Há outros resultados igualmente perversos.
Através da disciplina de voto, o chefe do Governo, sendo também o líder do partido maioritário ou da coligação vencedora, controla – directa ou indirectamente – o comportamento parlamentar dos deputados eleitos pelas listas do seu partido ou coligação, mantendo-os sob tutela. E assim, aqueles que constituem a maioria de um órgão que deveria controlar e fiscalizar o Governo, como preceitua o nosso ordenamento político, são afinal controlados e fiscalizados por ele.
O próprio presidente da Assembleia da República, considerado a segunda figura na hierarquia do Estado, ao ser membro do partido dominante no Governo, como geralmente acontece, fica subordinado à disciplina de voto que lhe é indirectamente imposta pelo líder do seu próprio partido, ou seja, o primeiro-ministro, que é apenas a terceira ou quarta figura da hierarquia do Estado, consoante os purismos protocolares que convenhamos adoptar.
Os próprios deputados, que constitucionalmente representam todo o país (e não, como vulgarmente se julga, o círculo por onde são eleitos) ficam reféns das orientações desses segmentos ideológicos do país que são os partidos políticos, que se arrogam estatutariamente o direito de transformá-los em moços-de-recados detentores de habilitações em excesso (valha a verdade, as intervenções parlamentares ditadas pela ortodoxia partidária e o esforço de levantar o braço ou premir um botão para exercer o voto não exigem desempenhos brilhantes). Mas a dignidade do Parlamento aos olhos do país ressente-se disso, assim como a própria imagem dos políticos. E não podemos censurar as opiniões perigosas que, por causa disso, consideram que a democracia é uma palhaçada.
Convém frisar que os partidos políticos são apenas associações que concorrem para a formação do poder político, mas que não são a fonte dele. Pelo menos, é o que diz a Constituição. Ora parece que andam por aí espalhadas algumas confusões acerca da origem da soberania e sobre quem tem o direito de exercê-la.
segunda-feira, 2 de dezembro de 2002
A fiscalização do governo
Um facto reconhecido por muita gente como óbvio é que o Parlamento não fiscaliza adequadamente o Governo. E não o faz, pelo menos, sob dois aspectos cruciais: quanto à sua vinculação ao programa com que os partidos vencedores se apresentaram ao eleitorado; e quanto ao cumprimento das regras orçamentais.
Que um partido ou uma coligação convertidos a governo possam arbitrariamente quebrar as suas promessas eleitorais, não apenas por omissão, mas fazendo exactamente o contrário daquilo que prometeram, pode parecer coisa de pouca monta que não mereça mais do que o inevitável arrazoado jornalístico. Mas é, de facto, um fenómeno grave: significa que a mentira e a fraude são aceites como legítimas para ganhar eleições, que vale tudo para captar votos e que, afinal de contas, na democracia não se votam realmente ideias e projectos, mas apenas pessoas e partidos. O que perverte a natureza do regime e transforma o exercício do voto numa mera prática referendária para a escolha dos líderes – portanto, algo próximo do plebiscito.
Se os partidos vencedores não ficam vinculados aos seus programas eleitorais, então estes não servem rigorosamente para nada – a não ser para aliciar os incautos. Para o país, no entanto, o que mais interessa são as reformas e as contra-reformas que os futuros possíveis governos se propõem executar, e não os nomes e rostos de quem as concretizará ou de quem as deixará por fazer.
Quanto ao orçamento do Estado, é certo que em boa parte ele se baseia em meras previsões de receitas e despesas, e que prever fluxos financeiros não é a coisa mais fácil deste mundo. Mas há regras mínimas de rigor e de equilíbrio que devem ser obrigatoriamente respeitadas, sob pena de se cair na quase discricionariedade e de a aprovação parlamentar do orçamento não passar de um espectáculo anual de circo que anuncia a proximidade das festas natalícias, período em que os espíritos e os cordões das bolsas andam mais soltos. Mas com a importante diferença de, para o Governo e as autarquias, passar a ser Natal durante o ano inteiro.
Quais as soluções para moralizar a vida política nestes dois aspectos?
O único crivo político que pode actuar regularmente contra a fraude governativa é o Parlamento. É a ele que cabe o principal papel fiscalizador e essa é uma das suas funções fundamentais.
Por um lado, é indispensável que as coligações ou os partidos vencedores fiquem juridicamente vinculados aos seus programas eleitorais de governo e que não disponham da possibilidade de os violar arbitrariamente. Todos os actos governativos que sejam contrários ao programa sufragado, ainda que sejam da competência exclusiva do Governo, deveriam carecer de autorização parlamentar, de modo que só a possa o poder executivo obter com carácter excepcional e invocando alteração das circunstâncias.
Por outro lado, quanto ao cumprimento das regras orçamentais, é necessário, para além da efectiva fiscalização sobre o poder executivo, tipificar e criminalizar as diversas infracções que possam ser cometidas, desde as ligeiras e negligentes até às graves e dolosas. E depois disso, como corolário, é indispensável que a justiça seja aplicada. Se é levado a tribunal quem é apanhado a roubar uma carteira, como pode safar-se tão tranquilamente quem rouba ou burla um país inteiro? Enquanto houver impunidade, não haverá maneira de pôr ordem duradoura nas finanças públicas, onde a parcimónia de uns só consegue alimentar involuntariamente o despesismo de outros.
Contudo, a criminalização das infracções orçamentais só tem efeitos “a posteriori”, o que significa que funciona como ameaça dissuasora. Mas no que respeita à actuação específica dos governos, só a fiscalização em tempo útil permitirá evitar desmandos graves e défices perigosos.
Podem agora objectar-me: mas como pode o Parlamento fiscalizar o Governo, se os deputados da maioria não dispõem de independência política e estão submetidos à disciplina de voto?
Boa pergunta! Mas não é preciso muito esforço para adivinhar qual será a resposta: banir da actividade partidária a obrigatoriedade da disciplina de voto, proibindo-a na própria Constituição, e assegurar métodos de democracia interna na escolha dos candidatos a deputados, obrigando a que estes sejam eleitos em vez de designados.
terça-feira, 29 de outubro de 2002
A independência dos deputados
Uma questão que tem sido tratada como marginal nos debates sobre a reforma do sistema político é a da independência dos deputados.
De um modo geral, serem os deputados politicamente independentes significa que não respondem perante ninguém, quanto às opções por si defendidas e aos votos expressos no Parlamento, a não ser perante os seus eleitores. Mas será de facto assim? Uma análise mais cuidada permite verificar que não. Além de responderem politicamente perante o eleitorado, todos os deputados respondem também perante o seu partido, que deles espera nada menos que cinco coisas: uma certa propensão ideológica, fidelidade aos dirigentes nacionais, acatamento das orientações dadas pelo partido, solidariedade institucional de tipo sectário e disciplina de voto. É a observância destes requisitos, esperada no futuro e, se possível, comprovada no passado, que determinará, mais do que a sua competência técnica ou política, a respectiva inclusão nas próximas listas eleitorais a submeter ao sufrágio.
É precisamente aí que reside o drama: os eleitos não são o resultado puro de um escrutínio. Antes de se submeterem a um processo de votação externo, que decidirá se passam efectivamente a ser membros do Parlamento, os futuros deputados são sujeitos a um processo interno de designação, nas fileiras do seu próprio partido, que determina se integrarão ou não as listas de candidatos. Como esta designação não depende de eleições internas, mas de uma escolha arbitrária confiada estatutariamente ao líder do partido ou ao seu directório nacional, a possibilidade futura de eleição fica de facto condicionada, ainda numa fase prévia, a uma espécie de declaração tácita de renúncia à sua própria independência política. É essa a actual natureza das coisas.
De facto, o deputado não é entre nós, assim como noutros sistemas políticos, considerado um mero representante de si próprio, eleito em função do mérito pessoal e da capacidade que lhe são reconhecidos, nem tão-pouco um simples representante do povo, por este eleito para dar voz aos seus anseios e aspirações (seja qual for a fracção do povo que se sinta nele representada); é mais exactamente um representante do seu partido, ética e estatutariamente submetido a uma direcção política – nem sempre por via directa, o que poderia ser mais chocante, mas através da chefia da sua bancada parlamentar – e compelido a uma actuação de facto que é supervisionada, nas suas componentes ideológica e de exercício do voto, pelos órgãos dirigentes do partido e respectivas ramificações. Na prática, o deputado torna-se independente de quem o elegeu e dependente de quem o pode voltar a designar como candidato.
Qual é o mal disso? Reside precisamente no pormenor não desprezível de os dirigentes nacionais que o designaram serem em princípio os mesmos que, com grande probabilidade e em grande percentagem, se tornarão membros do Governo, no caso de o seu partido sair vencedor das eleições. Ora como é suposto o Parlamento exercer o controle e fiscalização do Governo, de acordo com o princípio da separação dos poderes, mas a maioria parlamentar está refém das orientações políticas da direcção nacional do partido que vence as eleições e forma o próprio Governo, fica assim criada uma contradição insanável. Pior: invertem-se os termos e é o Governo que fiscaliza o Parlamento, já que o chefe do poder executivo controla de facto os votos da maioria dos deputados na assembleia legislativa e está em posição de exercer chantagem sobre a futura carreira política de muitos ou de cada um deles. Eis o cenário ideal para os abusos da acção governativa.
Se queremos um Parlamento que realmente controle e fiscalize o Governo, os deputados deverão ser politicamente independentes. Se preferirmos um Parlamento que sistematicamente dê cobertura aos erros e abusos do Governo, então podemos deixar as coisas como estão. Os deputados continuarão a votar alinhados com o seu chefe de bancada e este com o presidente do partido, e nomeadamente os da maioria parlamentar votarão alinhados com o Governo. Assim, este faz o que quer, desde que a lei permita; se a lei não permite, o Governo manda recado à maioria parlamentar (um recado que é uma ordem implícita, entenda-se) para que mude a lei a seu contento. O principal contratempo que pode surgir é a alteração da lei exigir uma maioria qualificada e o Governo não dispor dela, sendo forçado a negociar com a oposição. Mas isso é a excepção e não a regra.
domingo, 7 de julho de 2002
A reforma do sistema político (I)
Há quem diga que o principal obstáculo ao progresso são os maus governos. A acusação não é inteiramente merecida, porque não vai à raiz das coisas: os maus governos resultam muitas vezes, como consequência previsível, dos maus sistemas políticos.
O assunto está na ordem do dia, por moda e por necessidade. Mas as soluções mais vulgarmente apontadas, também em voga por razões que pouco têm a ver com um puro exercício de lucidez, poderão não resolver grande coisa, pois contemplam sobretudo aspectos secundários dos problemas.
O financiamento exclusivamente público dos partidos políticos, por exemplo, é em teoria uma ideia defensável, já que parece evitar perversões e dependências, mas a verdade é que ninguém ainda conseguiu explicar bem como é que essa medida, só por si, irá acabar com as óbvias ligações de muitos políticos aos interesses económicos, assumindo directa ou veladamente a representação destes. Poderá perguntar-se também onde é que falha aí a ética, quando a representação de tais interesses se faz por racionalidade e convicção e não por puro mercenarismo... No fim de contas, se a economia representa, de uma maneira ou de outra, mais de noventa por cento da política, como se pode pretender que andem divorciadas? E querendo levar-se por diante um tal purismo, acaso já alguém inventou um método seguro para acabar com os donativos e patrocínios secretos? Esta será, por certo, mais uma daquelas leis exemplares que ninguém conseguirá fazer cumprir, com elevado potencial para promover virtudes públicas e vícios privados...
Como os excessos de zelo são indesejáveis e contraproducentes, e porque não convém ir além do que é fiscalizável, proibir o financiamento dos partidos políticos por empresas é suficiente para salvaguardar a moralidade aparente do sistema e tem a vantagem de não sobrecarregar em vão o orçamento do Estado.
Quanto às leis eleitorais, não há agora orador de serviço que não fale em aproximar os eleitores dos eleitos, sugerindo mais uma vez a estafada ideia da criação de círculos uninominais. É um dos estereótipos obrigatórios do momento. Correndo embora o risco de ser desmancha-prazeres, deixem-me assinalar que o problema está triplamente mal posto.
Em primeiro lugar, são os eleitos que precisam de aproximar-se dos eleitores, e não o inverso, colocando-se aqueles mais a par das realidades práticas deste mundo e não deixando que as cortinas dos gabinetes os impeçam de manter o imprescindível contacto com elas. Mas isso nada tem a ver com o tamanho dos círculos, é simplesmente uma questão de os eleitos se interessarem verdadeiramente por conhecer e resolver os problemas da população que os elege. Direi mesmo que é uma pura questão de mentalidade, um modo de ocupar cargos e exercer funções, uma manifestação de um certo estado de espírito que se chama “serviço público” e que se resume afinal a justificar plenamente o próprio facto da eleição. Por outras palavras: fazer bem aquilo que é suposto fazer-se no lugar que se foi ocupar, em vez de reduzir o encargo à sua expressão mínima e preencher o espaço restante do mandato com uma habilidosa gestão da própria carreira política e dos seus proventos financeiros.
Em segundo lugar, e em verdadeiro rigor, os círculos uninominais já existem, pois outra coisa não significa a eleição dos presidentes de câmara em cada um dos concelhos do país. A principal diferença – mas não muito importante – é que o eleito leva atrás de si alguns lugares-tenentes e ordenanças, para o melhor e para o pior (mais usualmente, apenas para o melhor...). É a esse eleito que compete dar satisfação às necessidades locais da população e, naquilo que transcende os seus poderes, dar-lhes voz e expressão noutras instâncias, representando o seu município perante os órgãos políticos e administrativos do país. Não há necessidade de mais um deputado para o fazer, nem tão-pouco se vislumbra a conveniência disso. Adoptar em eleições legislativas uma metodologia eleitoral apenas adequada para eleições municipais, com a agravante de nem sequer ser possível uma concordância territorial entre os respectivos círculos, só pode dar asneira. Mas um pouco de bom senso agora evitar-nos-ia perder vinte e tal anos para chegar a essa conclusão.
De facto, a opção por círculos uninominais é tão artificial que as suas consequências são facilmente previsíveis: duplicação de representações locais; rivalidades indecorosas entre deputados e autarcas; perda do sentido nacional dos mandatos; maior intromissão de lobbies locais no trabalho parlamentar; preterição de candidatos de mérito em círculos disputados por duas ou mais figuras de primeira linha; desvios perniciosos e absurdos ao princípio da representação proporcional; a distância entre eleitos e eleitores não desaparecerá, porque é de uma mudança de comportamentos políticos e não de métodos eleitorais que isso depende; e o próprio insucesso da reforma acentuará ainda mais o descrédito da classe política.
Como é aliás possível que um método eleitoral que, historicamente falando, não passa de um arcaísmo anglo-saxónico, ande agora nas bocas do mundo como uma alternativa “moderna”?
Em terceiro lugar, e isto é que é essencial, salvo no caso óbvio das assembleias parlamentares regionais, um deputado não representa um círculo eleitoral restrito, ele representa todo o país. O seu cargo é de âmbito nacional, o seu mandato é nacional e é de problemas nacionais que ele tem de ocupar-se (o que não exclui, obviamente, que se preocupe também com o impacto nacional de problemas sectoriais ou regionais). A sua missão constitucional é zelar pelos interesses, pelas necessidades, pelo progresso de Portugal inteiro, no âmbito de um órgão com funções próprias, que é o Parlamento. Para promover prioritariamente os interesses e necessidades meramente locais existem outros órgãos e outros mandatários: os municípios e os respectivos autarcas. Estes, como é evidente, querem ter voz própria, não querem mandar recados a ninguém através de um interposto deputado. (Os autarcas que pensem bem nisto: os círculos uninominais podem vir a provocar, com o andar do tempo, uma erosão do poder autárquico e da sua legitimidade, dada a sobreposição e a emulação entre representações localizadas.)
Já a questão do regime de incompatibilidades dos titulares dos cargos políticos requer verdadeira coragem e urgente inovação. Sobram-nos os exemplos de miscelânea de cargos, de promiscuidade de funções, de alternância casuística de posições, de habilidosas danças de titularidades e suplências. Como, felizmente, também sobra população neste país, a ninguém deveria ser permitido ocupar, em simultâneo ou em alternância arbitrária, mais do que um cargo político. Ou seja: não deve ser constitucionalmente autorizada a titularidade de um cargo sem a prévia e definitiva renúncia a todos os outros. E não me acodem à memória quaisquer excepções que mereçam ser consideradas.
Passando agora à apregoada diminuição do número de deputados, não parece que seja panaceia para coisa nenhuma. O seu número já foi diminuído uma vez e ninguém viu o benefício disso. Diminuição de despesas do Parlamento? É ilusório: os avultados salários de deputados pagos a menos são facilmente compensados com o aumento de assessorias e de despesas administrativas. E embora possa vir a haver no futuro ainda menos deputados, creio que o seu número não pode diminuir muito mais, sob pena de pôr em risco o desejável funcionamento das comissões parlamentares, particularmente no tão desprezado capítulo da fiscalização sectorial do governo. Nas circunstâncias actuais, duzentos deputados é um número razoável e talvez o mínimo compatível com a eficácia do Parlamento. O facto de sermos um país relativamente pequeno não torna menor o número das tarefas que incumbem aos deputados; de facto, as missões e as exigências são quase as mesmas que para um país grande.
No que respeita à instauração de um sistema bicameral, composto por uma Câmara Baixa (Parlamento) e por uma Câmara Alta (Senado), cabendo a este uma representação não proporcional do território, por regiões ou por distritos, parece-me ser esta uma brilhante elucubração de estudiosos de ciência política com pouco faro para as realidades. Por uma lado, o tamanho exíguo do país não justifica este artifício, dispendioso e desnecessário; por outro, não teria lógica e coerência implantar tal sistema num país que rejeitou formalmente a regionalização e que vê nos distritos meras divisões administrativas destinadas à extinção e que não têm qualquer correspondência nítida com especificidades étnicas, económicas e culturais que as distingam claramente e sem controvérsias. Ou seja: uma representação territorial fragmentada de Portugal seria tão artificial como o é a tentativa de dividir o território em áreas politicamente diferenciadas. Este país tem sido e quer continuar a ser uno e unido. Deixemo-lo continuar assim e não criemos artificialmente o germe dos problemas com que se defrontam as nações que não tiveram outro remédio senão reconhecer e institucionalizar a sua fragmentação regional. Temos a sorte de ser uma população praticamente sem linhas de fractura perceptíveis. Seria uma estupidez crassa ter a veleidade de criá-las por acto legislativo e negligenciar o risco de futuras rivalidades e antagonismos. O que a História uniu não deve a fantasia separar.