Entre nós, publicitam-se e defendem-se ideias e programas partidários sem entraves de maior, fazem-se livremente campanhas e sondagens, todos os cidadãos maiores podem exprimir através do voto a orientação geral das suas escolhas, os parlamentares e o líder do Governo são eleitos, os governos ascendem e caem, os maiores partidos alternam no exercício do poder e este é balizado por normas constitucionais que dão corpo de letra a um vasto consenso sobre quais devem ser as regras do jogo político.
Somados todos estes aspectos, parece haver poucas razões para duvidar que vivemos no seio de uma democracia representativa plena. Mas examinemos melhor.
A democracia é um edifício de dois andares. No andar superior, as coisas passam-se como atrás foi descrito. Há um clima de livre concorrência entre pessoas e doutrinas, entre ideias e projectos, entre idealismos e ambições pragmáticas, e os vencedores são sempre apurados através do voto. Tanto o poder legislativo como o poder executivo emanam dele. Os que o exercem são, sob um ponto de vista formal, os nossos representantes na estrutura cimeira do Estado ou das autarquias.
Mas no rés-do-chão deste edifício as coisas passam-se de outro modo. O debate interno encontra-se esclerosado ou foi suprimido, as iniciativas e as inovações são barradas por estrangulamentos burocráticos ou entraves estatutários, os contactos interpessoais são restringidos, o acesso à informação vital é vedado, a participação de certas candidaturas em contendas eleitorais pode ser impunemente boicotada, os regulamentos podem ser descaradamente infringidos, a admissão à militância política é reservada ou condicionada e tende a funcionar quase em regime de clube privado, as equipas no poder barricam-se metodicamente para evitar a substituição ou a alternância. O andar térreo do edifício são os partidos políticos.
Ora acontece que o acesso ao primeiro andar se faz através do rés-do-chão. E muitos daqueles que no andar de cima aspiram a serem eleitos, e que dependem de uma eleição para poderem assumir os cargos a que se candidatam, provêm de um piso inferior onde o estatuto de candidato se adquire, não por eleição também, mas por indigitação, ou seja, por nomeação de uma burocracia já bem instalada no poder partidário.
Por outras palavras: no patamar superior, os nossos representantes são eleitos; no patamar inferior são, em larga medida, designados. Pois aí os candidatos a deputados, eurodeputados e autarcas não são apurados por sufrágio, nem constam de listas construídas segundo o método da representação proporcional, nem adquirem a sua legitimidade pelo apoio das bases, ou seja, dos meros eleitores. É a cúpula dos partidos que decide, que escolhe, que segrega, que peneira, enquanto mesmo os seus órgãos intermédios apenas propõem, opinam, dão aprovações e pareceres em nada vinculativos. São pois aqueles que se assenhorearam do piso térreo do edifício democrático, à margem de qualquer legislação ou fiscalização eficaz, que controlam o acesso aos órgãos públicos que funcionam no andar de cima.
Isto significa que a nossa democracia não é plena, mas semiplena. Existe ampla democraticidade na competição entre partidos, mas não existe em idêntica medida dentro deles.
Ora de pouco nos serve podermos eleger livremente os nossos representantes em alguns dos escalões cimeiros do poder político, nos casos em que não podemos eleger livremente os candidatos a sê-lo. Se alguém pôde fazer por nós uma escolha prévia, subordinando-a aos seus interesses e critérios, é previsível que os nossos, os dos meros eleitores, tendam a sair sempre derrotados ou preteridos. E nesta parte, pelo menos, o jogo já não deve chamar-se democracia.