Embora a declaração de princípios do Movimento para a Democracia Directa já vá bastante longe nos seus propósitos de reforma do nosso sistema político, considero que há nele duas lacunas, duas referências omissas. Sem necessidade, porém, de alterar uma vírgula no texto já aprovado, que está muito bem, creio que no seu espírito cabem duas ideias que proponho também à vossa consideração e que poderemos facilmente incorporar nos nossos ideais e objectivos: a adopção do voto preferencial e a proibição constitucional da disciplina de voto.
Passo a explicar ambas as ideias.
Quando os partidos políticos portugueses concorrem a eleições, fazem-no através da apresentação de listas de candidatos cuja ordenação é rígida. O eleitor escolhe a lista do partido que prefere, mas nada pode fazer para alterar a ordenação dos candidatos na lista.
Na Europa, o sufrágio de lista é esmagadoramente maioritário, e compreende-se que assim seja, pois esse é um dos componentes necessários dos sistemas eleitorais que tendem a assegurar uma maior proporcionalidade da representação política. Mas, em muitos países, para além de votar na lista de um partido, o eleitor dispõe também de um ou mais votos para atribuir aos seus candidatos preferidos nessa lista, podendo assim interferir na respectiva ordenação. Deste modo, ele não está somente a escolher um partido, mas também os que considera serem os melhores candidatos desse partido. Não escolhe apenas uma força política, mas também pessoas, personalidades.
Em Portugal, onde se usa um sistema de listas fechadas e bloqueadas, um eleitor ao votar num partido aceita inevitavelmente a ordem dos candidatos que lhe é proposta na lista (e os eleitos, não esqueçamos, são apurados pela sua ordem na lista). Noutros países, dá-se maior poder aos eleitores, permitindo-se-lhes fazer uma escolha intra-partidária dos melhores candidatos e alterar a sua ordem na lista em que concorrem. É a isso que se chama voto preferencial e pratica-se, com diversas nuances, na Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Grécia, Holanda, Hungria, Islândia, Itália, Lituânia, Noruega, Polónia, República Checa e Suécia. Obtém-se assim uma maior personalização dos mandatos e uma maior responsabilização dos eleitos perante os eleitores. Não resolve todos os problemas da representação política, mas ajuda a atenuar alguns, e é óbvio que dá mais peso ao eleitorado.
Quanto à chamada disciplina de voto, que obriga deputados e autarcas a votarem de acordo com as instruções recebidas dos directórios partidários ou das chefias de bancada, considero-a um dos maiores males da nossa democracia. Ela viola o artigo 155º da Constituição, que determina que o deputado exerce livremente o seu mandato; e fá-lo violar a sua consciência e até a sua competência técnica, fazendo-o pronunciar-se contrariamente ao que pensa ou sabe. Por isso, na pior das hipóteses, ela deveria constituir uma excepção em prol da governabilidade (admissível talvez em matérias como o Orçamento do Estado, as moções de confiança e de censura ou o Programa de Governo) e não uma regra.
A disciplina de voto tem vários efeitos muito perniciosos: arregimenta os deputados da maioria parlamentar como uma claque subserviente ao Governo e, como tal, impede qualquer controlo e fiscalização eficaz deste pelo Parlamento, ao contrário do que é pressuposto pelos próprios fundamentos da teoria democrática; favorece a corrupção política e os abusos de poder, e dá-lhes cobertura; impede a livre expressão de opiniões por aqueles que foram mandatados para nos representar; torna rígida e monolítica a maioria parlamentar, e por vezes a própria oposição, inviabilizando qualquer debate sério; subverte a separação de poderes, colocando o Parlamento sob o jugo do Governo, através de uma maioria dócil e controlada; afasta do jogo político os mais competentes, em proveito dos meros sequazes dos líderes, e leva a colocar a lealdade incondicional acima da própria competência para o desempenho dos cargos. Et cetera.
Há vozes que se levantam contra ela nos vários partidos, mas que são sufocadas pelas claques instaladas no poder. Compete-nos, fora dos partidos, dar também expressão a mais este combate pela racionalização do sistema político. Não estaremos sozinhos.