Legislatura atrás de legislatura, vão passando os anos, vários, sem que ninguém se preocupe no dia a dia, alto e bom som, se há mulheres que abortam, se algumas morrem ou adoecem por causa disso, se há outras soluções socialmente viáveis para as gravidezes indesejadas ou insustentáveis. Apesar da magnitude do problema e do número imaginável de casos, ninguém toma a questão muito a peito, excepto alguns grupos organizados com expressão marginal e repercussão quase nula.
Sabemos que se fazem abortos clandestinos em quantidade, e porquê, e como. Sabemos os riscos para a saúde de quem lança mão a este expediente de último recurso. Sabemos que há inúmeras crianças que deixam de nascer, sem que ninguém grite "aqui d'el rei". Sabemos que há quem assim se alivie de um pesadelo previsível, de uma consciência culpada ou de um estigma social. E sabemos que a proibição do aborto não diminui a sua ocorrência. Mas faz-se vista grossa.
De repente, alguém se lembra de submeter o assunto a um referendo e logo rebenta o alvoroço. De um instante para o outro, nascem organizações empenhadas, revitalizam-se outras que estavam em coma profundo, montam-se encenações mediáticas, fazem-se reuniões e comícios entusiásticos, prodigaliza se a propaganda, terçam armas as opiniões irredutíveis, os nervos agitam-se à flor da pele. Já não são simples pessoas que se movimentam, mas ideologias rivais e heterogéneas forças sociais, cuidando de não perderem prestígio e influência junto da comunidade.
Bem vistas as coisas por este insólito viés, o que se vai referendar em breve não é propriamente o direito à interrupção voluntária da gravidez, mas a hipocrisia das nossas convicções publicamente assumidas, que às vezes nem sequer o são em privado.
Não tenho a mínima dúvida de que, no que respeita à maioria dos seus protagonistas, por debaixo de todo este reboliço, de todo este linguajar verborreico e incoerente, não medra qualquer preocupação sincera com os dramas humanos que estão subjacentes, e para os quais ninguém oferece reais soluções práticas.
Se o contrário fosse verdade, já há muito que teriam surgido os apoios suficientes às grávidas carenciadas, os mecanismos ágeis de adopção, as instituições de acolhimento, o acesso generalizado e fácil à contracepção gratuita.
Quando se trata de resolver problemas, mas de resolvê-los a sério, seja por iniciativa pública ou privada, onde param então os humanistas e os panfletários de todos os quadrantes?
Não nos venham de novo com a ética humanista. Toda esta recente agitação é essencialmente política, religiosa, ideológica. O que mais tem andado arredado deste assunto é precisamente o humanismo, para não dizer a própria ética, especialmente durante todo o tempo que decorre antes e depois de referendos, em que quase nada se faz para resolver ou minorar o problema real.
Nós, portugueses, sabemos como somos. Mais facilmente nos interessamos por causas do que por pessoas. E ligamos mais a controvérsias do que a quem sofre com o resultado delas.