O défice orçamental do Estado passou a ser o novo bicho-de-sete-cabeças da política contemporânea. A inflação foi destronada, o desemprego bem pode esperar melhores dias e a pobreza tornou-se tacitamente um mal necessário ou um tópico residual de retórica parlamentar ou televisiva. A cada época sua perspectiva e sua hierarquia de preocupações.
O que se constata importar agora é que o Estado consiga arrecadar tantas receitas fiscais quanto o balúrdio que indistintamente gasta com todas as suas obrigações e extravagâncias, com todas as suas prioridades e irrelevâncias. Poderia também pôr-se a questão de outro modo, e há quem o faça, que seria a de o Estado cortar criteriosamente nas despesas e desembolsar apenas na medida do que recebe ou espera receber; mas parece que, para quem está no poder, esse método não dá tanto jeito ou exige competências mais transcendentes do que aquelas que se adquirem nas universidades. A prova disso, convenhamos, é quase quotidiana e está à vista até dos leigos.
Afigura-se pois a muitos razoável que o Governo faça aquilo que sabe fazer melhor, ou seja, aumentar a colecta por decreto e dar instruções implacáveis, embora nem sempre eficazes ou equitativas, para perseguir os caloteiros. Alguém tem alguma coisa a objectar? Então objecte, mas de pouco lhe servirá. Pois quem faz só o que sabe a mais não é obrigado, e não se vislumbra sequer porque haveriam os governantes de ser excepção.
Haverá outros remédios? Talvez. Um crítico perspicaz logo se atreveria a dizer que o primeiro grande passo para o equilíbrio orçamental seria a consciência plena de que ninguém tem o direito de desperdiçar o dinheiro subtraído pelo fisco ao trabalho ou aos lucros de quem labuta ou investe. Mas francamente, quem se iria apiedar dessa ética balofa, se desde tempos imemoriais o saque dos impostos serve prioritariamente para ser desperdiçado, ou seja, precisamente para aquilo que os moralistas dizem que não se deve fazer com ele? O Estado já não é o príncipe, nem sequer a família real inteira, mas alberga agora novos príncipes e novas realezas.
Retirar ao Estado o privilégio de sempre gastar acima das suas posses, acrescentando-as um pouco desmesuradamente com as alheias, não só lhe retiraria a sua dignidade própria, que é a de poder fazer o que se apresenta interdito ao cidadão comum, como poderia implicar uma autêntica revolução psicológica e administrativa que às vezes, mas só de passagem e com natural acanhamento, alguém se atreve a referir como "reforma do Estado". E com a agravante de que a moda das febres revolucionárias já passou, o que se aprecia agora são aquelas tendências reformistas muito mais moderadas que consistem, na maior parte dos casos, em dar um passo à frente e dois atrás. Portanto, ó Deus, se acaso existes, livra-nos de tais exageros!
Que não venha pois ninguém falar-nos da "avaliação da eficácia das políticas públicas", que não nos macem com essa conversa de "suprimir as despesas inúteis e reencontrar margens de manobra", de "substituir a lógica dos meios pela lógica dos resultados". Tudo isso, estamos fartos de o saber, é perfeitamente correcto, mas é precisamente por sê-lo que só dificilmente aparecerá alguém com ciência e consciência e aptidão e ética para fazê-lo. Relaxemos, pois, tanto o espírito como os cordões à bolsa. Talvez morramos mais velhos.