sexta-feira, 1 de março de 2002

Manifesto para a educação da República

O que é necessário para que a República passe a educar bem os seus filhos?
Como será possível saltar dos anseios e dos apelos para os métodos e os resultados?
Antes de mais, são necessárias novas directivas públicas, o que constitui missão e responsabilidade do Estado. Cabe a este o primeiro impulso prático, depois de ter sido a própria sociedade civil a dar espontaneamente o primeiro impulso teórico para a renovação. E as novas directivas obrigarão a reformar mentalidades e atitudes, sejam quais forem as resistências. É pois ao Estado que cabe definir pragmaticamente os objectivos da educação e o padrão geral de exigência, situando-os num nível adequado às necessidades económicas e culturais do país, as quais por sua vez resultam do nível de desafogo material e do grau de civilização em que pretendemos colectivamente viver. E é óbvio que, quanto mais elevada for a ambição, maior terá de ser a exigência.

A escolaridade obrigatória não pode consistir simplesmente em frequentar a escola durante um determinado número de anos, julgando-se tão acessório o quanto lá se aprende que todos possam obter um diploma só pelo facto de a terem frequentado. Pelo contrário, é imperioso garantir que cada um sai dela com um certo número mínimo de conhecimentos indispensáveis, fortemente consolidados e rigorosamente avaliados.

É urgente reintroduzir no ensino básico e secundário as noções de sequência e de precedência, na medida em que a aquisição de certos conhecimentos depende da verdadeira assimilação de outros mais elementares. Não é possível iludir os requisitos de cada um dos estádios da aprendizagem, a menos que um país inteiro aceite iludir-se a si mesmo. Pretendemos a qualidade dos resultados e não o consolo das estatísticas fraudulentas.

A escola fez-se para ensinar e aprender. Neste aspecto, a modernidade pouco tem a acrescentar à tradição. Por isso, não se deve confundir o rigor e a disciplina da aprendizagem com o entretenimento leviano de uma simples ocupação de tempos livres. Logo nos primeiros passos do percurso escolar, a componente lúdica da escola deve ser utilizada como um artifício didáctico e não como um fim em si mesma. Exceptuado o tempo próprio do recreio, as brincadeiras e os jogos devem ser direccionados para aprendizagens específicas, ainda que de cariz não intelectual, em vez de se converterem em simples culto da espontaneidade infantil, muito ao gosto de certas modas que insistem em não dar frutos. E em vez de idolatrar as supostas e ubíquas virtudes da motivação e do interesse espontâneo, a elas condicionando a obtenção e até a própria exigência dos resultados, é preciso revalorizar a disciplina, a concentração, o esforço, o empenho, bem como a memorização dos conhecimentos fundamentais, pois a memória não deixou de ser uma das principais matérias-primas da inteligência. Há pois que reconhecer que, embora a motivação e o interesse sejam de enorme importância, eles só podem existir de forma avulsa e parcelar, ao sabor dos gostos e das inclinações individuais mais diversos (e, portanto, não direccionados para todas as aprendizagens básicas); logo, é menos importante o que as crianças gostam de aprender do que aquilo que devem aprender.
É importante, por exemplo, que voltem a saber a tabuada “na ponta da língua”, para que ela não atrapalhe depois as suas capacidades de cálculo; é importante que saibam ler com destreza, para que as dificuldades da leitura não criem empecilhos à compreensão dos textos; é importante que saibam pensar e analisar e criticar, mas que memorizem as coisas essenciais; é importante que saibam exprimir correctamente, falando ou redigindo, tanto as ideias veiculadas pelos livros e meios audiovisuais como as que resultem dos estímulos à sua própria criatividade, tendo como assente que a criatividade pouco vale sem uma boa capacidade de expressão, assim como as ideias pouco valem sem um raciocínio rigoroso.

No 1.º ciclo do ensino básico, é preciso contrariar o exagero do “lúdico”, o abuso do desenho livre e dos trabalhos manuais em detrimento da língua materna e do cálculo, o culto das actividades de expressão plástica ou dramática, o horror aos conhecimentos que exigem a utilização intensiva da memória.
É preciso também inovar no plano curricular, preenchendo as três maiores lacunas reconhecidas:
  • a aprendizagem precoce das línguas estrangeiras, e muito especialmente do inglês, já que é na faixa etária até aos 9 anos que se concentra a maior aptidão natural para a aprendizagem linguística oral, sendo pois um desperdício e um contra-senso remetê-la para mais tarde;
  • a iniciação à informática, que muitos consideram “a segunda alfabetização”, mas que os currículos ainda tratam como matéria de especialização vocacional;
  • a sistematização da educação emocional, a par da intelectual e da motora, de forma a abranger as três grandes componentes do desenvolvimento infantil.

Actualmente, o 1.º ciclo do ensino básico transmite aos seguintes as lamentáveis deficiências na leitura, na expressão oral, na redacção, na aritmética e noutros conhecimentos elementares. Mas o verdadeiro calcanhar de Aquiles do nosso sistema educativo está no indescritível facilitismo do 2.º e 3.º ciclos, onde a extrema debilidade do sistema de avaliação instituído e a permissividade dos critérios utilizados parecem dar à ignorância direitos adquiridos. Não se culpem disso os professores, sempre tratados como simples funcionários arregimentados que mal conseguem fazer ouvir as suas críticas e discordâncias; meçam-se antes as anónimas responsabilidades de planeadores ministeriais impreparados, que julgam poder fazer sucessivas reformas educativas sem conhecer a fundo o que se passa no terreno. O que há a fazer? Retire-se capacidade de decisão aos simples ideólogos; devolva-se poder, voz, iniciativa e responsabilidade aos professores, que são quem verdadeiramente sabe do seu ofício, e a educação melhorará. Alargue-se a autonomia organizacional, curricular, financeira, administrativa e pedagógica das escolas, confiando que a competência dos professores supere a dos burocratas, e a organização educativa também melhorará.

A uma maior exigência de resultados na educação corresponde necessariamente uma maior insistência nas matérias fundamentais – as chamadas “competências básicas ou essenciais” – até que estas fiquem realmente consolidadas e capazes de perdurar a longo prazo. Como corolário, é imprescindível avaliá-las com rigor. Para tal, a avaliação deverá ser extensiva e não por amostragem. Em prol da verdade, reconheçamos de uma vez por todas que não vale a pena deixar prosseguir estudos a quem não domina os conhecimentos precedentes indispensáveis para poder progredir no próprio conhecimento e nas suas aplicações práticas. Deixemos as aparências e escolhamos a substância, pois só esta nos conduz à eficiência dos procedimentos.
Trata-se, no fundo, de uma opção pela seriedade e pelo pragmatismo. E eis o que ela significa: resultados em vez de vagos princípios; métodos entrosados em vez de teorias genéricas; psicopedagogia em vez de ideologia; conjugação de competências profissionais específicas em vez de improvisos “iluminados” de políticos superficiais.

A exigência de todo o sistema educativo espelha-se necessariamente no grau de exigência utilizado na avaliação de conhecimentos e capacidades. Cabe perguntar: onde está o rigor, se a avaliação é imprecisa? Onde está a exigência, se não há reprovações?
A reintrodução no 2.º e 3.º ciclos do ensino básico de um sistema de classificação mais preciso, mais discriminado, com uma escala mais alargada (de 0 a 10, pelo menos, e preferencialmente a mesma do ensino secundário), é uma prioridade. É preciso diferenciar mais os vários graus de domínio dos conhecimentos, detectar com mais minúcia as suas lacunas ou inconsistências e combatê-las selectivamente através de módulos intensivos.
Para reforçar o rigor e a selectividade progressiva do sistema, a realização de exames finais, pelo menos no final de cada ciclo de estudos, terá também o seu papel mais do que justificado pela necessidade de assegurar a qualidade da aprendizagem no ciclo seguinte e uma maior homogeneidade nacional nos próprios requisitos mínimos de progressão.

Actualmente, o ensino secundário vive encurralado entre as deficiências do ensino básico e as exigências do ensino superior. É uma espécie de “ponte sobre o rio Kwai” entre dois mundos estranhos e hostis.
Para além dessa situação paradoxal, enferma de falhas intrínsecas na sua concepção e funcionamento. A um nível que já deveria ser de grande especialização vocacional, continuam a acotovelar-se demasiadas disciplinas simultâneas, espalhando-se por uma mancha horária demasiado extensa, provocando uma excessiva dispersão do estudo, traduzindo-se em exagerada perda de sequência nas matérias.
A desnecessária inclusão nos currículos de algumas disciplinas de escasso valor formativo e difícil justificação pedagógica, a frequência obrigatória de outras manifestamente desenquadradas da opção curricular básica dos alunos e em contradição com as suas aptidões, a própria obsolescência de inúmeros programas, tudo contribui para adensar o cenário da ineficiência. Mas esta resultaria, de qualquer modo, da já tradicional desarticulação entre disciplinas interdependentes, entre rubricas programáticas, entre a teoria e a prática, entre as metodologias didácticas oficialmente recomendadas e as regras elementares da psicologia da aprendizagem.
Chega até a ser difícil optar para onde dirigir um criticismo mais intenso: se para o desajustamento dos programas das disciplinas de formação geral relativamente às de formação específica ou se, de um modo mais abrangente, para o seu desajustamento às próprias realidades (sejam elas as necessidades do mundo prático ou os níveis de preparação real dos alunos nas áreas conceptual, linguística e cultural). Apesar da propalada clarividência de tantas reformas sucessivas, o ensino secundário continua a ser essencialmente um trabalho de “patchwork” cultural. Falta-lhe integração, coerência, finalidade própria.
E como corolário e emblema de um grau de ensino fundamentalmente baseado na confusão de objectivos, na sobreposição de tendências pedagógicas contraditórias e na ausência de uma visão sistémica da educação dos jovens, temos o tratamento desleixado e degradante dado à nossa própria língua. Não seria já altura, havendo consenso em que o uso prático da língua não se confunde com o seu uso literário, de separar formalmente o ensino do Português e o da Literatura Portuguesa, generalizando o primeiro e especializando o segundo? Interpretar textos literários não será certamente a competência prioritária que a vida moderna continuará a exigir do comum dos indivíduos, por muito que essa flor possa brilhar na lapela de cada um... Pelo contrário, o uso correcto e fluente da língua materna, nas suas diferentes formas de utilização prática, é uma necessidade reconhecida e profissionalmente valorizada. Porque não basta assimilar ideias e saberes; em inúmeras ocasiões, há também que dar expressão ao que deles resulta.

Em suma: qualquer que seja a noção de cultura que se perfilhe, qualquer que seja o modelo cívico que se ambicione, há algo que o sistema de ensino e de formação profissional não pode deixar de proporcionar às crianças, jovens e adultos que o frequentam: as ferramentas intelectuais que as sociedades modernas exigem. E não há dúvidas de que presentemente ele só o faz de forma muito imperfeita, com grande dispêndio de recursos e uma certa mediocridade de resultados.
Ao mesmo tempo que de um debate nacional sobre as necessidades e os métodos, talvez precisemos também de apressar uma reforma de mentalidades. Porque a competitividade internacional não vai ter compaixão dos mais lentos.