domingo, 14 de junho de 2020

O que há muito precisa ser dito sobre racismo e xenofobia...

Nós, portugueses, não somos santos. Conhecemos os nossos defeitos. Podem apontar à maioria de nós, sem grande risco de errar, a nossa propensão colectiva para a hipocrisia, a venalidade, a corrupção, a inveja, a maledicência e a ostentação. Gostamos de favores e de cunhas, mas depois somos ingratos. O escárnio e o maldizer são, desde há muito, desportos nacionais. Tendemos a ser clubistas e rancorosos. Gostamos de viver o dia a dia de forma imprudente, sem pensar muito no amanhã. Não somos frugais nem dados à poupança. Temos também uns quantos genes que são avessos à organização e ao planeamento, donde acabarmos por cair tantas vezes no mero desenrascanço e nas coisas feitas em cima do joelho. Por insinceridade ou manha, gostamos às vezes de nos fingir de tolos e até aceitamos cordatamente que nos tomem por ingénuos. Deixamos amiúde que espezinhem os nossos direitos e convicções, só para não nos chatearmos. Não intercedemos pelos outros quando mais seria necessário, para evitar problemas ou incómodos. Adoramos fugir ao fisco e a outros deveres contributivos. Somos coscuvilheiros, indisciplinados, metediços, parciais e deslumbrados. Somos tudo isso. Mas racistas?... Alto aí e pára o baile!

Racistas é que, de um modo geral, não somos, ainda que nos dêem motivos de sobra para sê-lo. Existem alguns por aí, aceitemos, como em qualquer parte do mundo, mas esse não é um traço que colectivamente nos defina. Desculpem os exaltados e os fanáticos, mas não é. Para quem queira raciocinar um pouco e ver o óbvio, há muitas coisas à nossa volta a demonstrá-lo. E atestam-no não só o nosso passado como o nosso presente, não só o nosso lastro cultural como os nossos costumes brandos.

Nenhum povo se enraizou com tanta facilidade em tantas partes do mundo, misturando-se e entrosando-se com as gentes locais. Dos cerca de quinze milhões de portugueses que hoje provavelmente somos, um terço vive disperso na diáspora, e as nossas comunidades não são problemáticas em lado nenhum. Por isso nos aceitam bem em toda a parte, mesmo nos países que querem desfazer-se de outros fluxos de imigração.

Há muitos séculos que nos habituámos à diversidade étnica e à miscigenação. Até as nossas colonizações nos vários continentes se distinguem bem das alheias, e não apenas por serem mais antigas ou mais longas. Nenhum outro povo pós-medieval criou uma tão ampla mestiçagem de raças e culturas, nem promoveu tão afincadamente as uniões e os casamentos mistos. Nenhum outro deu aos indígenas, segundo os horizontes de cada época, tantas oportunidades de instrução e de ascensão social, por muito que tudo pareça insuficiente segundo os critérios enviesados de hoje. Porque todas as coisas têm de ser vistas e julgadas, antes de mais, segundo os critérios do seu próprio tempo e lugar, ainda que os ignorantes não percebam isso.

Acusam-nos de termos cometido abusos enquanto conquistadores e colonizadores? Sim, é inegável. Mas que teve isso a ver com mero racismo? Também os cometemos em abundância contra os da nossa própria raça, não só em perseguições religiosas e guerras civis, como na estratificação social e nas práticas do quotidiano. Até há menos de um século atrás, quase todas as sociedades do mundo foram bastante cruéis, a desumanidade foi a regra. Barbaridades e injustiças foram sempre “fruta da época”, porque as mentalidades as assimilavam e legitimavam. Quem foi excepção? Pela parte que nos toca, até o nosso Eça já escrevia há século e meio que Portugal era a “pátria dos abusos” (e em muitos aspectos, lamentavelmente, ainda não deixou de o ser). Mas onde é que havia menos discriminação racial do que entre nós, segundo os padrões dominantes em cada época? E por que querem agora espicaçar-nos com o estigma do racismo, a não ser por oportunismo velhaco ou para colher dividendos indevidos?

Até à chegada dos europeus, e muito depois dela, as etnias e as tribos africanas ou ameríndias sempre se degladiaram e chacinaram, escravizaram os capturados e sujeitaram-nos a toda a espécie de torturas e maus tratos, sem excluir o canibalismo. Muito antes de os europeus se atreverem a aventurar-se pelo interior da África subsariana, já os escravos negros eram trazidos para a costa e vendidos, a troco de quinquilharias, por outros negros de etnias ou tribos rivais. A escravatura no interior do continente africano foi uma prática tradicional de negros contra negros, desde tempos imemoriais, e só depois também dos sucessivos colonizadores. Quem não conhece a história de África que a estude, se duvidar. O que os comerciantes europeus e árabes lhe acrescentaram foi sobretudo o comércio intercontinental dos escravos, através do Atlântico ou do Índico, muito mais do que as capturas adicionais, que também existiram, mas que implicavam custos e riscos desnecessários. E os africanos e afrodescendentes, muitos deles completamente ignorantes da sua própria história ancestral, vêm agora pedir-nos contas pelos tempos de escravatura? O que seria ainda hoje a África, se não tivesse havido a colonização europeia? E aliás, o que é ainda hoje a África, muitas décadas depois da descolonização?

Eu vivi algum tempo em África, como professor cooperante, e por lá visitei diversos e variados países, desde a orla mediterrânica até ao sul de Angola. Pude sentir e experimentar, ao vivo e a cores, o racismo dos negros contra os brancos. Fui vítima dele e teria muito que contar. Mas também presenciei o racismo que existe entre árabes e berberes, entre negros e mulatos, e por mais incrível que pareça, entre os próprios negros de diferentes etnias. Os africanos distinguem ao milímetro os diversos tons de pele, os diferentes graus de mestiçagem, e por muito que às vezes o neguem ou disfarcem, os seus costumes são profundamente discriminatórios em relação às várias pertenças étnicas. Por mais que se misturem nos aglomerados urbanos, não há simbiose. E para além das rivalidades tradicionais, é frequente que se detestem e se evitem mutuamente. É uma coisa visceral, que tem a ver com as culturas locais e a sua segmentação. Mas há agora quem, vindo de qualquer dessas paragens, se ache no direito de nos lançar imprecações por causa de um alegado “racismo estrutural” que alguns idiotas e iluminados julgam descobrir na sociedade portuguesa? Tenham dó… Não há paciência.

Temos entre nós chineses, indianos, paquistaneses, bengaleses, árabes, judeus, turcos, iranianos, nepaleses, ucranianos e outros eslavos, latino-americanos, tailandeses, timorenses e uma miríade de outras nacionalidades. Não há notícia de conflitos raciais com eles, não obstante os casos de polícia que possam ocorrer. Temos europeus das mais diversas proveniências e, com excepção de uma nacionalidade específica, também com eles não há atritos étnicos, apesar dos episódios de hooliganismo no futebol ou das bebedeiras de turistas que às vezes descambam em distúrbios. Não vale a pena tapar o sol com a peneira: os crónicos problemas étnicos que temos são sempre com os mesmos segmentos da população e todos sabemos quais são. E digamo-lo sem papas na língua: tem tudo a ver com a alarvidade ou o parasitismo com que se comportam, com a frequência com que nos agridem ou nos ameaçam, com o modo como nos assediam ou nos intimidam com os seus comportamentos de bando, com os estragos ou imundícies que provocam, com os furtos ou abusos que cometem, com o medo e insegurança que nos causam.  Sem isso seriam, aos nossos olhos, pessoas como outras quaisquer. Somos aplaudidos no mundo pela nossa hospitalidade e por tratarmos bem os estrangeiros, ao contrário de muitos outros povos que os abominam e hostilizam ou que os tratam com reserva e rudeza. Somos bons anfitriões. Os turistas de todo o mundo gostam de nós. E somos racistas?... Não, somos até bastante tolerantes, muito mais do que deveríamos ser.

Não deveríamos tolerar, de modo algum, que haja comportamentos étnicos bem característicos que atentam contra os nossos valores fundamentais ou contra as nossas noções básicas de civismo e cidadania. Não deveríamos tolerar, por exemplo, os casamentos infantis forçados nas famílias ciganas, nem o seu incumprimento generalizado da escolaridade obrigatória, muito menos a proibição de as raparigas frequentarem a escola. Não deveríamos fechar os olhos à mutilação genital das meninas nas famílias de certas origens africanas. Não deveríamos permitir impunemente que jovens afrodescendentes nos espichem sistematicamente as fachadas dos prédios logo após os condomínios terem gasto fortunas em obras de conservação exterior. Não deveríamos tolerar que nos vandalizem os equipamentos públicos, os monumentos ou as estátuas. Deveria haver tolerância zero para criminalidade violenta ou reincidente, para condução sem carta e sem seguro, para desobediências crónicas às nossas polícias e aos nossos tribunais. Já basta termos de lidar com os nossos próprios delinquentes, que por serem portugueses são um encargo nosso, não de outros. Mas os estrangeiros ou naturalizados que não acatam a autoridade do nosso Estado ou das nossas leis não têm que cá continuar, e expulsá-los não é racismo nem xenofobia, é mera justiça. É até mais do que isso: é uma questão de civilização.

Apesar de toda a nossa tradição de convivência racial, confesso que não gosto de “pretos” nem de “ciganos”. E isto não tem nada a ver com a cor da pele, com a origem geográfica ou com as tradições inócuas de cada comunidade. Um negro ou um mulato civilizados para mim são tão “brancos” como eu. Mas um vândalo branco para mim é “preto”, porque se comporta como tal. Ser “preto” não é uma questão de raça ou de pigmento, é um nível de conduta. É um atributo de selvajaria, de subdesenvolvimento, de imundície, de indigência cultural. Assim como ser “cigano” é sinónimo de velhacaria, de burla, de esperteza saloia, de falta de escrúpulos. Se alguém tem culpa destas designações são, em primeiro lugar, os costumes das comunidades que lhes deram origem. Porque o que está em causa não é a cor da pele, é a cor dos comportamentos; não é a etnia, são os costumes intoleráveis. E quem quer confundir as coisas é parvo, ou faz-se.

Mais de oitocentos mil portugueses, talvez quase um milhão, foram escorraçados ou tiveram de fugir das ex‑colónias africanas, nos idos anos setenta, e mais uns largos milhares foram expulsos da Índia Portuguesa, descartados em Timor-Leste ou substituídos por chineses em Macau devolvido. Apesar disso, hoje acolhemos toda a gente, apesar dos ressentimentos residuais que ainda possa haver. Deixamos africanos, indianos, timorenses e chineses virem para cá morar, trabalhar, estudar, estabelecer-se, sem grande filtragem e com pouco controlo. Se tantos vêm para cá é porque têm muito mais oportunidades aqui do que nos seus países de origem, não é certamente por masoquismo. E decerto são melhor tratados aqui do que o são lá os portugueses, inclusivamente em termos de protecção social. E ainda nos acusam de racismo?

Os novos graffiti incitam-nos também a “descolonizar”. Mas então não o fizemos já? Os principais vestígios que sobram do nosso colonialismo não são decerto as nossas estátuas e monumentos, que enquanto nação temos todo o direito a manter e preservar porque fazem parte da nossa história, mas as hordas de imigrantes vindos dos vários países de expressão portuguesa, atraídos pelas facilidades proporcionadas pela língua comum que lá deixámos e pelo muito melhor nível de vida que encontram aqui. É óbvio que, sem a nossa colonização, a esmagadora maioria deles nunca teria posto cá os pés. Se quiséssemos ir até às últimas consequências da descolonização, deveríamos pois recambiá-los para a sua terra de origem, como consequência lógica. É isso que pretendem? Até porque agora são eles que pretendem colonizar‑nos a nós, e estão a consegui-lo rapidamente através da demografia, pela tripla via da natalidade, do descontrolo migratório e das obtusas leis de reagrupamento familiar. Ora, pelas notícias eloquentes que nos vão chegando dos seus países de origem e pelas misérias que lá se vivem, um país europeu ser tão rapidamente colonizado por africanos e brasileiros e timorenses não é de todo uma boa ideia. Pelo andar actual da carruagem, e no que toca ao grau de civilização, não sei se eles se irão aproximar lentamente de nós, mas tenho a certeza que nós iremos rapidamente aproximar-nos deles. Para uma cultura subir de nível, tem de lutar contra a força da gravidade; mas para descer, todos os santos ajudam.

Se há africanos ou afrodescendentes incomodados com o acolhimento que recebem aqui, ou com as oportunidades de que desfrutam, é justo lembrar-lhes que há alternativas. Não faltam outros países, outros continentes, incluindo o das suas origens. E a nossa resposta coerente só pode ser uma: quem está mal, mude-se. Este não é um conselho racista nem xenófobo, pois é o mesmo que os próprios portugueses sempre usaram entre si. A verdade é que já lhes proporcionamos muito mais do que alguma vez eles a nós. Mas não estamos dispostos a dar para o peditório dos privilégios às minorias étnicas, da discriminação positiva, das quotas raciais, dos subsídios de compensação ou das indemnizações pelo nosso “abominável” passado colonial. Queremos mesmo é viver numa sociedade de iguais, partilhando uma cultura essencial comum, agregados por um sentimento de pertença e solidariedade. Oportunistas, parasitas, vândalos e arruaceiros não nos fazem falta.

Pela minha parte, tenciono por enquanto continuar a não ser racista nem xenófobo, e espero nisso persistir, mas ponho três condições a prazo. A primeira é que não tenha de continuar a presenciar a quase total impunidade de tantos comportamentos e artimanhas próprios de “pretos” ou de “ciganos”. A segunda é que não continue a ver o nosso governo a tratar imigrantes ilegais com mais esmero e preocupação do que os concedidos aos portugueses mais carenciados, desde os idosos aos sem-abrigo. E a terceira é que não se continue a dar de bandeja a nacionalidade a todos os arrivistas que só querem um salvo-conduto para a Europa, uma facilidade adicional para as suas negociatas ilegais ou um pretexto para trazerem atrás de si um batalhão de familiares verdadeiros e falsos, como autênticos traficantes de gente.

Caso contrário, se tais condições não se cumprirem, poderei vir a mudar de opinião. Talvez me torne selectivamente racista e xenófobo, tal como muitos outros portugueses que não estão para aturar mixórdias e barafundas, ameaças, agressões, pilhagens, tumultos, vandalismos e delinquência a granel. Em suma: que querem viver em paz e segurança.

Como é evidente, as simples aversões pessoais, quando somadas, podem tranformar-se em grandes problemas colectivos. Os nossos ministros e os anti-racistas de serviço que pensem bem no assunto, ou as coisas poderão vir a não correr bem no futuro. Tal como já não correm em outros países, europeus e não só. A experiência deles deveria servir-nos para alguma coisa. E uma das conclusões a tirar é que o multiculturalismo tem os seus limites.

domingo, 19 de abril de 2009

Os ingredientes do insucesso

As dificuldades por que passa o país são o resultado natural de uma receita simples cujos principais ingredientes são três: falhas institucionais, hábitos instalados pouco recomendáveis e um certo desfalecimento intelectual e moral. Consoante as suas idiossincrasias pessoais, políticos e jornalistas dos vários quadrantes dão mais destaque a uma maleita ou a outra e alargam-se mais em certo género de comentários e prescrições, mas as coisas não deixam de ser o que são por variar o ângulo da análise.
No tocante às falhas institucionais, vai-se tornando evidente com o tempo a insustentável ausência de um sistema adequado de normas, freios e controles, capaz de pôr cobro ou limites mais encurtados a toda a espécie de incoerências políticas ou desmandos financeiros, nomeadamente quando se trata de respeitar compromissos eleitorais ou restrições orçamentais. Até para o desrespeito do texto das leis, inclusive as constitucionais, se tem encontrado sempre alguma justificação no espírito das medidas postas em prática, e ainda continua a achar-se amiúde que uma boa justificação elimina a própria infracção ou desculpa a camuflagem dela.
Se passarmos aos hábitos instalados, depressa concluímos que o Estado teima em não renunciar às obsessões perdulárias, que os contribuintes parecem não fazer mais do que a sua obrigação quando desembolsam para todos os gastos e desperdícios públicos, que a lei é para cumprir só quando não pode deixar de ser e que, com boa vontade e os necessários conluios, sempre os vários poderes arranjam forma de poderem fazer aquilo que é sabido que não devem.
Mas é no declínio intelectual e moral que menos se põe a tónica e onde reside a maior gravidade do problema nacional, o qual, referido assim em abstracto, mais não é que o vago e vasto somatório de muitos problemas evitáveis com que colectivamente arcamos. Poderíamos referir o espírito de corrupção mais ou menos generalizado, cujo nível e gabarito dependem apenas da capacidade e inspiração de cada um (para já não falarmos das oportunidades, que sempre são muitas), da debilidade dos idealismos e dos empenhos cívicos, da facílima traição das promessas e dos programas políticos, da supremacia das conivências sobre as competências, do intuito de carreirismo privado com que se perseguem e aceitam cargos públicos, da ausência de uma educação selectiva para o ingresso nas carreiras superiores do funcionalismo público e na descarada partidarização destas, nas feudalidades administrativas que subsistem, na incompreensão absoluta de que a mais importante e prioritária das opções é a de uma certa política de civilização, transcendendo em muito as preocupações pragmáticas das tecnocracias, e enfim, todo um rol de pequenos e grandes sintomas de que o Estado é afinal algo que serve para pilhar ou ser pilhado, de que os cargos públicos não são o corolário de um percurso de competências adquiridas e provas dadas, mas antes pelo contrário, um utilíssimo trampolim para saques, privilégios e mordomias.
A respeito dos nossos políticos, em particular, se falássemos da falta de "espírito de missão" diríamos quase tudo, se falássemos da falta de estadistas diríamos o resto.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

O elogio da leitura

Um célebre provérbio chinês diz-nos que uma imagem vale por mil palavras. E sob inúmeros aspectos, isso é verdade.
Uma imagem consegue dar-nos com mais facilidade e precisão os detalhes, os contornos, o impacto de um objecto ou situação; retrata ou transmite de forma mais intuitiva e directa uma emoção, um sentimento, um gesto; permite-nos vivenciar um acontecimento como se estivéssemos diante dele, e não como se nos facultassem apenas um relato; e uma boa sequência de imagens permite-nos visualizar toda a riqueza do movimento que uma sequência de palavras apenas poderia escassamente descrever.
A imagem parece pois ser um recurso privilegiado de comunicação. Mas essas, que parecem ser as suas maiores forças e vantagens, são também as suas debilidades e limitações face à palavra. Quando se trata de interpretar o que se vê, de discutir a sua importância e significado, de filtrar a importância das coisas, a imagem de pouco nos serve. Ela pouco pode ajudar-nos a valorizar ou desvalorizar algo, apenas pode dar-lhe ou tirar-lhe ênfase. E para quem procura captar o geral, o abstracto, as implicações do óbvio, as alternativas ao que nos é dado, ou seja, o lado complexo ou subtil da vida e do mundo, ela não consegue ser mais do que um mero cartão de visita, um convite, um incitamento, nada mais.
Uma imagem pode despertar-nos uma simpatia ou uma antipatia, mas não justificá-la. Pode proporcionar-nos uma impressão estética ou uma reacção moral, mas não os seus fundamentos. Pode confrontar-nos com os nossos gostos, mas não apurá-los. Pode alargar o nosso horizonte, mas não nos faz vislumbrar o que possa existir para além dele. Permite-nos conhecer, mas não descobrir; perceber, mas não inventar; aliciar, mas não persuadir; intuir uma ideia, mas não desenvolvê-la.
Embora não no sentido em que o dizia Platão, existem de facto dois mundos: o das coisas e o das ideias. Querendo ou não, com consciência ou não, cada um de nós vive simultaneamente em ambos. Ora a imagem está para o mundo das coisas assim como a palavra está para o mundo das ideias. Cada uma delas é a ponte de passagem para um território distinto. A imagem dá-nos o superficial, o fugaz, o transitório, o particular, o aparente. A palavra permite-nos o acesso ao profundo, ao duradouro, ao perene, ao geral, ao essencial. São tão distintas como complementares. Uma sem a outra, a imagem e a palavra vivem na mais perturbadora solidão. Uma sem a outra, praticam o angustiante celibato dos significados, ainda que possam não se dar conta disso.
Nem tudo nelas são contrastes. Ambas são capazes de uma certa espécie de retórica, ambas dispõem de truques de eloquência, ambas têm regras de morfologia e de sintaxe que permitem melhorar o seu desempenho. E ambas revelam capacidades simbólicas e narrativas capazes de nos estimular a imaginação. Mas, no limite, a mundividência a que nos conduzem não é do mesmo género.
Fazer o elogio da imagem não é hoje em dia necessário. Fazem-no sem cessar a publicidade, o cinema, os videojogos, o design gráfico e industrial, a parafernália dos museus, as seduções do turismo. Mas a palavra tem apoios mais limitados, pois a favor dela apenas militam a oratória e o texto. E como o uso virtuoso da oralidade parece tender a desaparecer gradualmente num mundo contemporâneo cujo panorama intelectual é minado pelo improviso desleixado e pela tagarelice, ou talvez ainda mais pela proliferação das gírias, impõe-se a defesa obstinada dos últimos bastiões “esclarecidos” ou "eruditos" da palavra escrita: a revista, o jornal, o livro, e seus similares.
Eis-nos assim chegados ao universo da leitura, onde todos os contrastes e todos os contrários se encontram e se revezam inesperadamente: a aventura e a estratégia, a emoção e a reflexão, o plano e o improviso, a poesia e o drama, a intriga e o desfecho, a análise e a síntese, o concreto e o abstracto, o senso comum e a filosofia, a superstição e a ciência.
Bem vistas as coisas, a palavra escrita permite-nos, muito mais do que a imagem ou o movimento, ultrapassar os limites do trivial. Ler é como desvendar o enigma de outras vidas, outras mentes, outras culturas, outros códigos, ser verdadeiramente um cidadão do mundo, algo que nem o turista mais viajado alguma vez conseguirá apenas pelo facto de se deslocar muito de um lado para o outro. E quem não lê, embora o não perceba, nunca deixará de ser um estrangeiro até na sua própria terra.