terça-feira, 3 de dezembro de 2002

A inconstitucionalidade da disciplina de voto

Começo por propor à doutrina jurídica uma distinção conveniente entre duas formas de inconstitucionalidade material das leis.

Chamemos inconstitucionalidade primária àquela que resulta de uma norma ou procedimento afrontar directamente um preceito constitucional, violando-o de forma óbvia através do próprio fim ou resultado pretendido. E considere-se que enferma de inconstitucionalidade secundária uma norma ou procedimento que, não contrariando pelo seu conteúdo expresso os imperativos constitucionais, produz no entanto, como resultado normal da sua aplicação, ainda que não pretendido, efeitos contrários ou diversos daqueles que a Constituição visa consagrar ou proteger.

Pode-se desde logo questionar se a disciplina de voto imposta pelos partidos políticos aos deputados parlamentares não constitui uma violação primária da natureza do voto, que a Constituição considera como um direito pessoal. Ser alguém coagido a votar contra a sua consciência, independentemente de qual o seu estatuto, quando é sua a titularidade do direito de voto, não é apenas imoral; pior do que isso, é uma aberração.

Sendo cada deputado membro dum órgão de soberania, como o é o Parlamento, segue-se que a imposição de uma disciplina de voto – que constitui para ele uma obrigação atribuída do exterior, e não uma mera recomendação, visto que a inobservância é sujeita a sanções – constitui afinal uma transferência sub-reptícia da soberania do Parlamento para os partidos políticos. Fica-se o Parlamento por uma soberania aparente, mas detêm os partidos a soberania real, visto que são eles que determinam de fora as decisões que hão-de ser tomadas lá dentro. Ora o Parlamento deve ser o órgão que efectivamente detem a soberania (isto é, a parte dela que lhe é constitucionalmente atribuída) e não apenas o local onde tal soberania é formalmente exercida, através de mandatários fiéis, por organizações políticas que lhe são exteriores.

Este é um exemplo de inconstitucionalidade secundária. Em nenhum local vem escrito que a soberania reside nos partidos políticos, que a exercem conjuntamente num local chamado Parlamento. A Constituição não é expressamente violada em nenhuma das suas partes, mas o resultado de tal prática é estranho ao que a lei fundamental dispõe.

Há outros resultados igualmente perversos.

Através da disciplina de voto, o chefe do Governo, sendo também o líder do partido maioritário ou da coligação vencedora, controla – directa ou indirectamente – o comportamento parlamentar dos deputados eleitos pelas listas do seu partido ou coligação, mantendo-os sob tutela. E assim, aqueles que constituem a maioria de um órgão que deveria controlar e fiscalizar o Governo, como preceitua o nosso ordenamento político, são afinal controlados e fiscalizados por ele.

O próprio presidente da Assembleia da República, considerado a segunda figura na hierarquia do Estado, ao ser membro do partido dominante no Governo, como geralmente acontece, fica subordinado à disciplina de voto que lhe é indirectamente imposta pelo líder do seu próprio partido, ou seja, o primeiro-ministro, que é apenas a terceira ou quarta figura da hierarquia do Estado, consoante os purismos protocolares que convenhamos adoptar.

Os próprios deputados, que constitucionalmente representam todo o país (e não, como vulgarmente se julga, o círculo por onde são eleitos) ficam reféns das orientações desses segmentos ideológicos do país que são os partidos políticos, que se arrogam estatutariamente o direito de transformá-los em moços-de-recados detentores de habilitações em excesso (valha a verdade, as intervenções parlamentares ditadas pela ortodoxia partidária e o esforço de levantar o braço ou premir um botão para exercer o voto não exigem desempenhos brilhantes). Mas a dignidade do Parlamento aos olhos do país ressente-se disso, assim como a própria imagem dos políticos. E não podemos censurar as opiniões perigosas que, por causa disso, consideram que a democracia é uma palhaçada.

Convém frisar que os partidos políticos são apenas associações que concorrem para a formação do poder político, mas que não são a fonte dele. Pelo menos, é o que diz a Constituição. Ora parece que andam por aí espalhadas algumas confusões acerca da origem da soberania e sobre quem tem o direito de exercê-la.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2002

A fiscalização do governo

Um facto reconhecido por muita gente como óbvio é que o Parlamento não fiscaliza adequadamente o Governo. E não o faz, pelo menos, sob dois aspectos cruciais: quanto à sua vinculação ao programa com que os partidos vencedores se apresentaram ao eleitorado; e quanto ao cumprimento das regras orçamentais.

Que um partido ou uma coligação convertidos a governo possam arbitrariamente quebrar as suas promessas eleitorais, não apenas por omissão, mas fazendo exactamente o contrário daquilo que prometeram, pode parecer coisa de pouca monta que não mereça mais do que o inevitável arrazoado jornalístico. Mas é, de facto, um fenómeno grave: significa que a mentira e a fraude são aceites como legítimas para ganhar eleições, que vale tudo para captar votos e que, afinal de contas, na democracia não se votam realmente ideias e projectos, mas apenas pessoas e partidos. O que perverte a natureza do regime e transforma o exercício do voto numa mera prática referendária para a escolha dos líderes – portanto, algo próximo do plebiscito.

Se os partidos vencedores não ficam vinculados aos seus programas eleitorais, então estes não servem rigorosamente para nada – a não ser para aliciar os incautos. Para o país, no entanto, o que mais interessa são as reformas e as contra-reformas que os futuros possíveis governos se propõem executar, e não os nomes e rostos de quem as concretizará ou de quem as deixará por fazer.

Quanto ao orçamento do Estado, é certo que em boa parte ele se baseia em meras previsões de receitas e despesas, e que prever fluxos financeiros não é a coisa mais fácil deste mundo. Mas há regras mínimas de rigor e de equilíbrio que devem ser obrigatoriamente respeitadas, sob pena de se cair na quase discricionariedade e de a aprovação parlamentar do orçamento não passar de um espectáculo anual de circo que anuncia a proximidade das festas natalícias, período em que os espíritos e os cordões das bolsas andam mais soltos. Mas com a importante diferença de, para o Governo e as autarquias, passar a ser Natal durante o ano inteiro.

Quais as soluções para moralizar a vida política nestes dois aspectos?

O único crivo político que pode actuar regularmente contra a fraude governativa é o Parlamento. É a ele que cabe o principal papel fiscalizador e essa é uma das suas funções fundamentais.

Por um lado, é indispensável que as coligações ou os partidos vencedores fiquem juridicamente vinculados aos seus programas eleitorais de governo e que não disponham da possibilidade de os violar arbitrariamente. Todos os actos governativos que sejam contrários ao programa sufragado, ainda que sejam da competência exclusiva do Governo, deveriam carecer de autorização parlamentar, de modo que só a possa o poder executivo obter com carácter excepcional e invocando alteração das circunstâncias.

Por outro lado, quanto ao cumprimento das regras orçamentais, é necessário, para além da efectiva fiscalização sobre o poder executivo, tipificar e criminalizar as diversas infracções que possam ser cometidas, desde as ligeiras e negligentes até às graves e dolosas. E depois disso, como corolário, é indispensável que a justiça seja aplicada. Se é levado a tribunal quem é apanhado a roubar uma carteira, como pode safar-se tão tranquilamente quem rouba ou burla um país inteiro? Enquanto houver impunidade, não haverá maneira de pôr ordem duradoura nas finanças públicas, onde a parcimónia de uns só consegue alimentar involuntariamente o despesismo de outros.

Contudo, a criminalização das infracções orçamentais só tem efeitos “a posteriori”, o que significa que funciona como ameaça dissuasora. Mas no que respeita à actuação específica dos governos, só a fiscalização em tempo útil permitirá evitar desmandos graves e défices perigosos.

Podem agora objectar-me: mas como pode o Parlamento fiscalizar o Governo, se os deputados da maioria não dispõem de independência política e estão submetidos à disciplina de voto?

Boa pergunta! Mas não é preciso muito esforço para adivinhar qual será a resposta: banir da actividade partidária a obrigatoriedade da disciplina de voto, proibindo-a na própria Constituição, e assegurar métodos de democracia interna na escolha dos candidatos a deputados, obrigando a que estes sejam eleitos em vez de designados.

sexta-feira, 15 de novembro de 2002

A questão do cheque-ensino

Está de novo em voga a questão da liberdade de ensinar e de aprender, e entende-se por isto pelo menos duas coisas distintas: o Estado deve renunciar ao seu quase monopólio na educação, deixando que floresça uma nova indústria privada capaz de competir vantajosamente com ele no tocante a qualidade e inovação; e deve devolver aos pais, segundo critérios de capitação e de forma igualitária, o dinheiro dos impostos destinado à educação pública, sempre que aqueles optem por colocar os filhos em escolas privadas, o que equivale tão-somente a reembolsar o custo de um serviço público que afinal não é prestado.

Teoricamente, a questão é muito simples: o Estado dispor-se-ia a entregar um cheque-ensino (“voucher”) a cada encarregado de educação por cada um dos seus educandos, e ficaria assim resolvido o problema económico da liberdade de escolha e, juntamente com ele e por acréscimo, o da qualidade, já que esta resultaria espontaneamente da própria concorrência entre as escolas, ciosas de captar alunos e recursos.

Isto é o que se passaria no melhor dos mundos possíveis. Vejamos agora o que é previsível que se passe no admirável mundo real.

A grande ofensiva em prol da liberdade de ensino vem sobretudo de organizações confessionais que pretendem ver integrados na educação dos jovens os valores morais e religiosos que professam. Se o movimento ganhar força, outras se lhe seguirão. Isso não traz nenhum mal ao mundo, bem pelo contrário, pois tudo parece preferível à incapacidade manifesta da educação pública para inculcar valores de qualquer espécie, atolada que está num laicismo exagerado e num relativismo paralisante. Quando a imparcialidade (apenas aparente, no fundo) é levada ao extremo de todos os valores e tendências culturais serem colocados ao mesmo nível, por mais contraditórios e desnivelados que sejam em termos civilizacionais, esquecendo por completo as raízes culturais do país e um certo grau de disciplina pessoal e cívica que o bom senso e o desenvolvimento exigem, daí só pode resultar a total ausência de valores e a quebra abrupta das tradições (que, aos olhos de muitos “progressistas”, todas parecem agora ser um mal em si mesmas e um verdadeiro impedimento à liberdade).

Porém, do outro lado também um perigo espreita. As escolas de inspiração confessional terão de ser obrigadas pela lei a respeitar o mesmo grau de liberdade e tolerância religiosas de que a educação pública tem dado provas. Onde quer que o ensino privado assegure ou substitua a função educativa do Estado, não pode haver imposição de cultos ou acessos condicionados pela opção religiosa, pois é irrealista pensar que todo o território possa ser coberto homogeneamente por uma dupla oferta, com características múltiplas. Exercer legitimamente uma influência moral e religiosa não pode significar o mesmo que impô-la facciosamente, pelo que, mesmo nas escolas de inspiração confessional, a prática dos cultos e a frequência das disciplinas religiosas deverá ser obrigatoriamente facultativa, sujeita à livre decisão de alunos e pais, e não poderão as matérias consideradas científicas ser pervertidas ou obstruídas pela interferência abusiva das crenças, criando desigualdades pedagógicas graves que iriam condicionar o futuro académico dos alunos. A julgar pelos exemplos lamentáveis que nos chegam do estrangeiro, mesmo de países avançados, esse é um perigo real. E havendo as mais diversas tendências religiosas, umas nativas, outras trazidas pela imigração, umas já com uma forte tradição de tolerância, outras ainda mal percebendo o que isso é, seria um erro potencialmente muito grave negligenciar os efeitos futuros no tecido social de quaisquer fundamentalismos consentidos agora.

Outro aspecto, talvez mais melindroso, tem a ver com os custos. Algo de que os defensores dos “vouchers” ainda não se aperceberam, e que constitui uma das maiores dificuldades que terão de contornar, é que este sistema aumenta inegavelmente o custo per capita da educação. Como não é previsível que se possam encerrar escolas na exacta proporção do êxodo que se verificasse para o ensino privado (pois que esse êxodo não seria concentrado, mas disperso), as escolas públicas perderiam importantes economias de escala e os encargos educativos subiriam vertiginosamente (não em termos absolutos, mas em custos unitários), tendo apenas por limite a estratosfera – o que por sua vez implicaria aumentar cada vez mais o valor dos “vouchers”, num círculo vicioso.

É preciso ter em consideração que a maior parte dos custos das escolas públicas são muito pouco elásticos. Há uma quantidade considerável de despesas que variam pouco, mesmo quando o número de alunos varia muito; mas em contrapartida, verificando-se neste um decréscimo acentuado, haverá muito menos dinheiro para pagá-las – a não ser que o orçamento do Estado resolva engordar bastante. Ora isto é dificilmente sustentável numa época de combate ao despesismo estatal.

Finalmente, a questão da qualidade. Não há dúvida de que a concorrência entre escolas só pode ser benéfica, analogamente ao que sucederia em qualquer outra fatia de mercado, desde que sejam fixados padrões mínimos de transmissão de conhecimentos. Mas não esperemos milagres. Sobretudo, não podemos esquecer que os bons professores e os bons directores são um recurso limitado.

Convém evitar toda a espécie de sofismas. O ensino privado não é uma solução segura para o problema da qualidade, só pelo simples facto de ser privado. Já tivemos a prova disso. Infelizmente, terá de ser sempre o Estado, directa ou delegadamente, a fixar e a garantir padrões mínimos para a educação dos jovens – a começar, muito desejavelmente, pela que ele próprio lhes ministra. E desde que sejam asseguradas qualidade e flexibilidade, não é muito importante para os pais donde elas provêm. Mas se não houver salvaguardas vindas do Estado central e das autarquias, a educação privada será mais propensa a assegurar uma proliferação da diversidade do que uma proliferação da qualidade. Ora é óbvio que uma não interessa muito sem a outra.

Como resolver então o problema? Dado que o método dos “vouchers” parece unicamente adequado a sociedades afluentes, e portanto não utilizável em muito larga escala, há que dar outras formas de oportunidade ao ensino privado, se não como alternativa, pelo menos como complemento. Uma das soluções poderia ser a de o Estado entregar à iniciativa privada as escolas que notoriamente funcionam mal. Vários métodos são possíveis para a transferência de poderes e competências: privatizações por concurso público, concessões, contratos de gestão privada, et cetera.

Outra solução ousada consistiria em ter a coragem política de celebrar verdadeiros contratos de autonomia com os corpos docentes das escolas, indo bastante além daquilo que a legislação já actualmente prevê e nunca foi concretizado pelos governos, e permitir que os próprios professores possam ser também beneficiários financeiros das melhorias de gestão e de qualidade que consigam implantar. No fim de contas, quem é suposto perceber mais de educação do que eles? Os empresários, os gestores profissionais, os burocratas, os autarcas eleitos? Os ministros que temos tido e outros de igual estaleca que venhamos a ter? Pode ser que os professores, devido a certas tendências na moda, constituam afinal uma parte do problema – mas não há nenhuma solução sem eles, e nenhuma boa por cima deles.

terça-feira, 29 de outubro de 2002

A independência dos deputados

Uma questão que tem sido tratada como marginal nos debates sobre a reforma do sistema político é a da independência dos deputados.

De um modo geral, serem os deputados politicamente independentes significa que não respondem perante ninguém, quanto às opções por si defendidas e aos votos expressos no Parlamento, a não ser perante os seus eleitores. Mas será de facto assim? Uma análise mais cuidada permite verificar que não. Além de responderem politicamente perante o eleitorado, todos os deputados respondem também perante o seu partido, que deles espera nada menos que cinco coisas: uma certa propensão ideológica, fidelidade aos dirigentes nacionais, acatamento das orientações dadas pelo partido, solidariedade institucional de tipo sectário e disciplina de voto. É a observância destes requisitos, esperada no futuro e, se possível, comprovada no passado, que determinará, mais do que a sua competência técnica ou política, a respectiva inclusão nas próximas listas eleitorais a submeter ao sufrágio.

É precisamente aí que reside o drama: os eleitos não são o resultado puro de um escrutínio. Antes de se submeterem a um processo de votação externo, que decidirá se passam efectivamente a ser membros do Parlamento, os futuros deputados são sujeitos a um processo interno de designação, nas fileiras do seu próprio partido, que determina se integrarão ou não as listas de candidatos. Como esta designação não depende de eleições internas, mas de uma escolha arbitrária confiada estatutariamente ao líder do partido ou ao seu directório nacional, a possibilidade futura de eleição fica de facto condicionada, ainda numa fase prévia, a uma espécie de declaração tácita de renúncia à sua própria independência política. É essa a actual natureza das coisas.

De facto, o deputado não é entre nós, assim como noutros sistemas políticos, considerado um mero representante de si próprio, eleito em função do mérito pessoal e da capacidade que lhe são reconhecidos, nem tão-pouco um simples representante do povo, por este eleito para dar voz aos seus anseios e aspirações (seja qual for a fracção do povo que se sinta nele representada); é mais exactamente um representante do seu partido, ética e estatutariamente submetido a uma direcção política – nem sempre por via directa, o que poderia ser mais chocante, mas através da chefia da sua bancada parlamentar – e compelido a uma actuação de facto que é supervisionada, nas suas componentes ideológica e de exercício do voto, pelos órgãos dirigentes do partido e respectivas ramificações. Na prática, o deputado torna-se independente de quem o elegeu e dependente de quem o pode voltar a designar como candidato.

Qual é o mal disso? Reside precisamente no pormenor não desprezível de os dirigentes nacionais que o designaram serem em princípio os mesmos que, com grande probabilidade e em grande percentagem, se tornarão membros do Governo, no caso de o seu partido sair vencedor das eleições. Ora como é suposto o Parlamento exercer o controle e fiscalização do Governo, de acordo com o princípio da separação dos poderes, mas a maioria parlamentar está refém das orientações políticas da direcção nacional do partido que vence as eleições e forma o próprio Governo, fica assim criada uma contradição insanável. Pior: invertem-se os termos e é o Governo que fiscaliza o Parlamento, já que o chefe do poder executivo controla de facto os votos da maioria dos deputados na assembleia legislativa e está em posição de exercer chantagem sobre a futura carreira política de muitos ou de cada um deles. Eis o cenário ideal para os abusos da acção governativa.

Se queremos um Parlamento que realmente controle e fiscalize o Governo, os deputados deverão ser politicamente independentes. Se preferirmos um Parlamento que sistematicamente dê cobertura aos erros e abusos do Governo, então podemos deixar as coisas como estão. Os deputados continuarão a votar alinhados com o seu chefe de bancada e este com o presidente do partido, e nomeadamente os da maioria parlamentar votarão alinhados com o Governo. Assim, este faz o que quer, desde que a lei permita; se a lei não permite, o Governo manda recado à maioria parlamentar (um recado que é uma ordem implícita, entenda-se) para que mude a lei a seu contento. O principal contratempo que pode surgir é a alteração da lei exigir uma maioria qualificada e o Governo não dispor dela, sendo forçado a negociar com a oposição. Mas isso é a excepção e não a regra.

quarta-feira, 21 de agosto de 2002

Esquerda e direita

Se subsiste hoje uma diferença residual entre “esquerda” e “direita” na política, ela é mais fácil de descortinar nas posições extremas dos partidos que ocupam as franjas do espectro ideológico. Quanto aos maiores partidos, os que em geral disputam mais directamente o poder e que dependem, para o alcançar, de aliciar o eleitorado do “centro” (essa massa crítica de independentes e indecisos que ninguém sabe exactamente como caracterizar e que geralmente decide o vencedor das eleições), os pontos de contacto são evidentes.

Desde que o socialismo democrático abandonou a inspiração marxista e as correntes neoliberais se distanciaram das teorias do Estado mínimo, já quase ninguém entre os partidos moderados coloca em causa a necessidade de regulação da economia pelo Estado e o imperativo ético de pôr em prática programas vastos de protecção social. O que se discute é até onde deve ir essa regulação e como deve ser feita, bem como a natureza e montante dos benefícios a conceder aos mais desprotegidos na sociedade. Ou seja: todos reconhecem ao Estado uma vocação dupla, simultaneamente reguladora e proteccionista.

O mundo real dá também a sua contribuição para a aproximação pragmática entre as teses partidárias, já que os problemas de fundo, quando encarados de um ponto de vista essencialmente técnico, forçam os especialistas a ultrapassar as bagarras doutrinárias e a ir buscar aos conhecimentos académicos as soluções mais recomendáveis. Os fundamentos comuns da formação técnica tendem, até certo ponto, a esbater as divergências ideológicas, embora sobre alguma margem de manobra para a hierarquização de opções possíveis e prioridades. Como efeito perverso, pode mesmo a ideologia sobrepor-se à objectividade e ao cariz técnico das questões, mas creio que é mais frequente acontecer o contrário: que o distanciamento ideológico seja atenuado ou até obliterado pela convergência de pontos de vista que tende a ser produzida por conceitos comuns e por instrumentos de análise técnica partilhados.

Na realidade, acontece amiúde que os eleitores não se apercebam de qualquer reviravolta ideológica na condução dos assuntos governativos, sempre que a alternância democrática produz uma substituição dos partidos no poder. Durante as campanhas eleitorais, a retórica panfletária difunde a mensagem de que existem diferenças abissais no modo de conduzir as coisas públicas; mas quando os eleitos são obrigados a enfrentar os dossiers e as questões reais, a perspectiva que domina é geralmente a tecnocrática. E como todos os governos tendem a ser cada vez mais tecnocráticos, nesse bom sentido, por imposição das próprias circunstâncias em que decorre a acção governativa, o que inevitavelmente os faz assemelhar-se entre si, são obrigados a revirar as gavetas das velharias ideológicas para se distinguirem artificialmente na sua luta pelo poder, mais do que no exercício dele.

São esses factos que levam muita gente a questionar-se se ainda existe algum fundamento sólido na tradicional distinção entre esquerda e direita, algo mais do que um hábito teimoso ou uma convicção cega. De facto há, pois as tradições políticas não são inofensivas, mas para as compreender é necessário saber distinguir entre preconceitos e propensões.

Entre os preconceitos, encontramos a ideia arreigada de que a “direita” defende o capitalismo selvagem, as organizações religiosas, os grandes interesses económicos e a prepotência dos patrões, e que é à “esquerda” que cabe o papel de defensora da regulação da economia pelo Estado, do laicismo e independência deste, da salvaguarda dos direitos dos trabalhadores e do alargamento dos esquemas de protecção social. Ora não há nada, nos tempos de hoje ou na história recente, que confirme isto claramente: “esquerda” e “direita” são obrigadas a entender-se para quase todas as reformas constitucionais, que exigem votações por maioria qualificada, e no resto e de facto limitam-se a discutir, de forma artificialmente acirrada, as modalidades e os graus de intervenção do Estado e os detalhes polémicos da concertação social, ao mesmo tempo que ambas pactuam a seu modo com as instituições religiosas, os sindicatos, as associações patronais e outras organizações, disputando entre si o controlo dos diversos lobbies. Em todos esses aspectos, a diferença entre “esquerda” e “direita” não é de género, é de estilo ou de eficácia.

Mas restam as propensões, e é aqui que bate o ponto. As tradições, os preconceitos, os sectarismos, as alianças duradouras ou preferenciais, todos estes factores contribuem para criar nos vários partidos certos tiques característicos, certas orientações dominantes que se traduzem na prática em probabilidades de actuação ou em clichés programáticos. Independentemente do que prometam nas campanhas eleitorais ou do que esteja ao seu alcance fazer no exercício concreto do poder, acreditamos saber à partida o que podemos razoavelmente esperar deles, devido às suas tendências intrínsecas.

À esquerda, encontramos geralmente uma linguagem mais populista e mais virada para a promessa fácil, uma ambição desmedida de distribuir benefícios sociais a qualquer preço, sejam quais forem os recursos efectivamente disponíveis; uma indisfarçável necessidade de aumentar os impostos e taxas, para financiar os novos programas mais ou menos indiscriminados de protecção social, demagógicos e permeáveis ao abuso; a retórica de um crescendo de direitos e garantias que amiúde nem sequer tem contrapartida nas reais e imediatas necessidades das pessoas; uma pressão sistemática para o aumento irrealista dos salários e das pensões; uma falta de sensibilidade e uma hostilidade crónicas para os mecanismos espontâneos do mercado e para a filosofia empresarial; uma tendência irresistível para a sobrecarga fiscal e para os ataques ao património e aos rendimentos elevados; e em política externa, um alinhamento preferencial contrário aos interesses ocidentais, em prol de uma visão terceiro-mundista das relações geoestratégicas.

À direita, predomina uma linguagem mais centrada na responsabilidade das promessas e nos equilíbrios colectivos; uma visão gradualista do crescimento dos benefícios sociais, ajustada ao ritmo do crescimento económico; uma assumida preferência pela contenção fiscal ou mesmo pela redução dos impostos directos; uma noção bastante mais moderada quanto à dimensão desejável da administração pública; uma hostilidade ao intervencionismo desmedido do Estado e aos excessos de regulamentação e burocracia; uma maior confiança, não raro exagerada, no bom funcionamento e nos resultados dos mecanismos de mercado; a moderação do crescimento salarial e a defesa apaixonada da produtividade; uma maior sensibilidade para os factores de sobrevivência e de competitividade internacional das empresas, nem sempre acompanhada por igual sensibilidade para as dificuldades reais das pessoas em tempos de crise; uma fé imoderada no credo empresarial e nas novas modas da gestão; e na política externa, um alinhamento quase incondicional pelos interesses ocidentais e, dentro destes, pelos da zona económica a que se pertence.

No entanto, se tivesse que reduzir estes vários aspectos a uma dicotomia mais simplista, diria que o ponto de vista da “esquerda” se centra no avanço rápido das chamadas “conquistas sociais”, sem olhar muito àquilo que o sistema económico pode realmente suportar; e que o ponto de vista da “direita” privilegia a preservação dos equilíbrios básicos da economia, a ela subordinando o progresso dos diversos benefícios e regalias, assim como o dos rendimentos do trabalho. É óbvio que a relação que há entre estes pontos de vista é aproximadamente a mesma que existe entre a demagogia e o realismo, e por essa razão a “esquerda” há-de sempre ostentar uma aparente e aliciante superioridade ideológica sobre a “direita”, apesar de ser quase sistematicamente esta que vence no cômputo das realizações práticas, numa perspectiva de longo prazo.

Devemos porém resistir a simplificar demasiado a questão. A experiência tem demonstrado sobejamente que o facto de um partido se situar num dos lados do espectro partidário típico não significa obrigatoriamente que, uma vez no exercício do poder, se disponha a promover de uma forma predominante ou exclusiva as políticas tradicionais desse lado do espectro. O pragmatismo do poder impõe muitas traições ao fundamentalismo dos princípios, de um lado e de outro.

domingo, 11 de agosto de 2002

Ser de esquerda, ontem (carta aberta a Mário Soares)

Para começar, não é verdade que os valores éticos e políticos, na sua essência, não mudaram. Podem alguns, ao longo do tempo, ter-se mantido relativamente estáveis na sua roupagem retórica, mas quase todos tiveram de evoluir na sua expressão prática. Os valores são factos sociais e todos os factos sociais estão actualmente sujeitos a rápida evolução. O ritmo apressado da História não perdoa. O problema está em que há pessoas que ficam agarradas ao fascínio retórico e aparentemente humanista de certos valores e perdem a noção da sua evolução semântica, da sua mudança de conteúdos, da sua inflexão de sentido; outras há que não perdem tal noção pela simples razão de que, cristalizados no idealismo ético de uma certa época, nunca chegam a adquiri-la.

Sou dos que acreditam que ainda subsiste uma diferença residual entre “esquerda” e “direita” na política. Mas também reconheço que essa diferença não está onde habitualmente a apontam, pelo que se torna necessário combater ideias anacrónicas.

Em abono da verdade, sublinhe-se que muitos dos valores que a chamada “esquerda” continua a reivindicar como fazendo parte da sua identidade própria formam hoje um substracto comum a todos os grandes partidos. Acreditar no progresso e na possibilidade de transformar o mundo para melhor, reparar as injustiças e desigualdades humanas, a liberdade, a solidariedade, a igualdade de oportunidades, a justiça social, o laicismo do Estado, a concertação social, as conquistas básicas do movimento sindical, a defesa do ambiente e dos equilíbrios ecológicos, a previdência social, a luta em favor dos excluídos, a democracia representativa e a participação directa dos cidadãos na vida política, o direito à diferença, a liberdade sexual, a defesa dos direitos das minorias, o estímulo ao associativismo – tudo isto e mais qualquer coisa pode ser encontrado nos textos programáticos e na acção política dos partidos de todos os quadrantes do espectro ideológico das sociedades ocidentais. Se são estas as referências que ainda caracterizam a “esquerda”, então já nada a individualiza.

Ah! Falta acrescentar certos imperativos puramente éticos? Pois acrescentem-se “os valores de devoção à coisa pública e ao bem comum, da estrita moralidade política e individual, do serviço público em favor da comunidade, da boa governação em benefício dos mais desfavorecidos, da generosidade e da solidariedade.” Por que não? Toda a gente subscreve, sem excepção. “Não são valores exclusivos da esquerda, obviamente”. E para sermos mais precisos, não há sequer quem conteste que a boa governação – que deve afinal ser feita em benefício de todos, visto que todos devem ser cidadãos de primeira, e não apenas em benefício dos mais desfavorecidos – deve exercer alguma discriminação positiva em favor destes, através dos programas de protecção social e de outras medidas que diminuam a diferença relativa de rendimentos entre os estratos sociais.

Quanto a isso, estamos todos de acordo. Porém, se existem diversos partidos políticos, é porque há algumas linhas de demarcação que têm a ver com a expressão concreta dos valores, dos interesses, das ambições e dos projectos. E a questão coloca-se cada vez menos no terreno das ideologias, não porque estas tenham entrado todas em colapso, mas porque as sobreviventes em grande parte convergiram. Curiosamente, começaram por convergir sobretudo na retórica, mas acabaram por fazê-lo também nos princípios. Como consequência inevitável, as diferenças partidárias que hoje subsistem têm muito maior relevo no campo pragmático do que no campo ideológico; neste, tornaram-se de tal modo subtis que escapam à maior parte dos observadores comuns. De facto, os partidos distinguem‑se hoje muito mais pelo estilo e pela orientação das respectivas lideranças do que pelos ditames de qualquer ideologia.

Mas a questão não acaba aqui. Se “a primeira e mais importante obrigação de uma esquerda moderna é redefinir-se, sem ambiguidades, perante a globalização que temos”, então acrescentarei que estamos todos condenados a ser de “esquerda”. Tomar posições perante a globalização tornou-se inevitável para todos os partidos, seja qual for a sua orientação dominante, porque a globalização se tornou um facto político incontornável. Grande parte dos programas de acção dos partidos tem de ser pensada em função dela ou arrisca-se a não ser credível. E se esta que temos é desregulada, selvagem e predadora, como todos os quadrantes reconhecem, devido à escassez de instituições globais ou supranacionais com capacidade para regulá-la, a globalização alternativa e ética que se pode desejar está certamente também na mira de todos, embora inevitavelmente sob diferentes versões.

Infelizmente, ficamos sem saber em que é que a versão da “esquerda” difere das outras. A impressão omnipresente que nos fica é que o assunto, de tão recente que é nas suas mais graves implicações (ou, pelo menos, na intensidade delas) apanhou muitos dos líderes e ex-líderes políticos impreparados para lhes propor soluções exequíveis e com contornos bem definidos. Modestamente, arrisco dizer que o panorama não é melhor à esquerda do que à direita e que ao centro é semelhante. De maneira que também não é por aí que nos podemos esclarecer sobre o que hoje diferencia a “esquerda”, pois não é o vazio ou a retórica das preocupações que sugere rumos à política partidária.

Agradecemos o esforço, Dr. Mário Soares, mas ficámos na mesma.

(Réplica ao artigo de Mário Soares “Ser de esquerda, hoje” publicado em 03/08/2002 no semanário Expresso.)

domingo, 7 de julho de 2002

A reforma do sistema político (I)

Há quem diga que o principal obstáculo ao progresso são os maus governos. A acusação não é inteiramente merecida, porque não vai à raiz das coisas: os maus governos resultam muitas vezes, como consequência previsível, dos maus sistemas políticos.

O assunto está na ordem do dia, por moda e por necessidade. Mas as soluções mais vulgarmente apontadas, também em voga por razões que pouco têm a ver com um puro exercício de lucidez, poderão não resolver grande coisa, pois contemplam sobretudo aspectos secundários dos problemas.

O financiamento exclusivamente público dos partidos políticos, por exemplo, é em teoria uma ideia defensável, já que parece evitar perversões e dependências, mas a verdade é que ninguém ainda conseguiu explicar bem como é que essa medida, só por si, irá acabar com as óbvias ligações de muitos políticos aos interesses económicos, assumindo directa ou veladamente a representação destes. Poderá perguntar-se também onde é que falha aí a ética, quando a representação de tais interesses se faz por racionalidade e convicção e não por puro mercenarismo... No fim de contas, se a economia representa, de uma maneira ou de outra, mais de noventa por cento da política, como se pode pretender que andem divorciadas? E querendo levar-se por diante um tal purismo, acaso já alguém inventou um método seguro para acabar com os donativos e patrocínios secretos? Esta será, por certo, mais uma daquelas leis exemplares que ninguém conseguirá fazer cumprir, com elevado potencial para promover virtudes públicas e vícios privados...

Como os excessos de zelo são indesejáveis e contraproducentes, e porque não convém ir além do que é fiscalizável, proibir o financiamento dos partidos políticos por empresas é suficiente para salvaguardar a moralidade aparente do sistema e tem a vantagem de não sobrecarregar em vão o orçamento do Estado.

Quanto às leis eleitorais, não há agora orador de serviço que não fale em aproximar os eleitores dos eleitos, sugerindo mais uma vez a estafada ideia da criação de círculos uninominais. É um dos estereótipos obrigatórios do momento. Correndo embora o risco de ser desmancha-prazeres, deixem-me assinalar que o problema está triplamente mal posto.

Em primeiro lugar, são os eleitos que precisam de aproximar-se dos eleitores, e não o inverso, colocando-se aqueles mais a par das realidades práticas deste mundo e não deixando que as cortinas dos gabinetes os impeçam de manter o imprescindível contacto com elas. Mas isso nada tem a ver com o tamanho dos círculos, é simplesmente uma questão de os eleitos se interessarem verdadeiramente por conhecer e resolver os problemas da população que os elege. Direi mesmo que é uma pura questão de mentalidade, um modo de ocupar cargos e exercer funções, uma manifestação de um certo estado de espírito que se chama “serviço público” e que se resume afinal a justificar plenamente o próprio facto da eleição. Por outras palavras: fazer bem aquilo que é suposto fazer-se no lugar que se foi ocupar, em vez de reduzir o encargo à sua expressão mínima e preencher o espaço restante do mandato com uma habilidosa gestão da própria carreira política e dos seus proventos financeiros.

Em segundo lugar, e em verdadeiro rigor, os círculos uninominais já existem, pois outra coisa não significa a eleição dos presidentes de câmara em cada um dos concelhos do país. A principal diferença – mas não muito importante – é que o eleito leva atrás de si alguns lugares-tenentes e ordenanças, para o melhor e para o pior (mais usualmente, apenas para o melhor...). É a esse eleito que compete dar satisfação às necessidades locais da população e, naquilo que transcende os seus poderes, dar-lhes voz e expressão noutras instâncias, representando o seu município perante os órgãos políticos e administrativos do país. Não há necessidade de mais um deputado para o fazer, nem tão-pouco se vislumbra a conveniência disso. Adoptar em eleições legislativas uma metodologia eleitoral apenas adequada para eleições municipais, com a agravante de nem sequer ser possível uma concordância territorial entre os respectivos círculos, só pode dar asneira. Mas um pouco de bom senso agora evitar-nos-ia perder vinte e tal anos para chegar a essa conclusão.

De facto, a opção por círculos uninominais é tão artificial que as suas consequências são facilmente previsíveis: duplicação de representações locais; rivalidades indecorosas entre deputados e autarcas; perda do sentido nacional dos mandatos; maior intromissão de lobbies locais no trabalho parlamentar; preterição de candidatos de mérito em círculos disputados por duas ou mais figuras de primeira linha; desvios perniciosos e absurdos ao princípio da representação proporcional; a distância entre eleitos e eleitores não desaparecerá, porque é de uma mudança de comportamentos políticos e não de métodos eleitorais que isso depende; e o próprio insucesso da reforma acentuará ainda mais o descrédito da classe política.

Como é aliás possível que um método eleitoral que, historicamente falando, não passa de um arcaísmo anglo-saxónico, ande agora nas bocas do mundo como uma alternativa “moderna”?

Em terceiro lugar, e isto é que é essencial, salvo no caso óbvio das assembleias parlamentares regionais, um deputado não representa um círculo eleitoral restrito, ele representa todo o país. O seu cargo é de âmbito nacional, o seu mandato é nacional e é de problemas nacionais que ele tem de ocupar-se (o que não exclui, obviamente, que se preocupe também com o impacto nacional de problemas sectoriais ou regionais). A sua missão constitucional é zelar pelos interesses, pelas necessidades, pelo progresso de Portugal inteiro, no âmbito de um órgão com funções próprias, que é o Parlamento. Para promover prioritariamente os interesses e necessidades meramente locais existem outros órgãos e outros mandatários: os municípios e os respectivos autarcas. Estes, como é evidente, querem ter voz própria, não querem mandar recados a ninguém através de um interposto deputado. (Os autarcas que pensem bem nisto: os círculos uninominais podem vir a provocar, com o andar do tempo, uma erosão do poder autárquico e da sua legitimidade, dada a sobreposição e a emulação entre representações localizadas.)

Já a questão do regime de incompatibilidades dos titulares dos cargos políticos requer verdadeira coragem e urgente inovação. Sobram-nos os exemplos de miscelânea de cargos, de promiscuidade de funções, de alternância casuística de posições, de habilidosas danças de titularidades e suplências. Como, felizmente, também sobra população neste país, a ninguém deveria ser permitido ocupar, em simultâneo ou em alternância arbitrária, mais do que um cargo político. Ou seja: não deve ser constitucionalmente autorizada a titularidade de um cargo sem a prévia e definitiva renúncia a todos os outros. E não me acodem à memória quaisquer excepções que mereçam ser consideradas.

Passando agora à apregoada diminuição do número de deputados, não parece que seja panaceia para coisa nenhuma. O seu número já foi diminuído uma vez e ninguém viu o benefício disso. Diminuição de despesas do Parlamento? É ilusório: os avultados salários de deputados pagos a menos são facilmente compensados com o aumento de assessorias e de despesas administrativas. E embora possa vir a haver no futuro ainda menos deputados, creio que o seu número não pode diminuir muito mais, sob pena de pôr em risco o desejável funcionamento das comissões parlamentares, particularmente no tão desprezado capítulo da fiscalização sectorial do governo. Nas circunstâncias actuais, duzentos deputados é um número razoável e talvez o mínimo compatível com a eficácia do Parlamento. O facto de sermos um país relativamente pequeno não torna menor o número das tarefas que incumbem aos deputados; de facto, as missões e as exigências são quase as mesmas que para um país grande.

No que respeita à instauração de um sistema bicameral, composto por uma Câmara Baixa (Parlamento) e por uma Câmara Alta (Senado), cabendo a este uma representação não proporcional do território, por regiões ou por distritos, parece-me ser esta uma brilhante elucubração de estudiosos de ciência política com pouco faro para as realidades. Por uma lado, o tamanho exíguo do país não justifica este artifício, dispendioso e desnecessário; por outro, não teria lógica e coerência implantar tal sistema num país que rejeitou formalmente a regionalização e que vê nos distritos meras divisões administrativas destinadas à extinção e que não têm qualquer correspondência nítida com especificidades étnicas, económicas e culturais que as distingam claramente e sem controvérsias. Ou seja: uma representação territorial fragmentada de Portugal seria tão artificial como o é a tentativa de dividir o território em áreas politicamente diferenciadas. Este país tem sido e quer continuar a ser uno e unido. Deixemo-lo continuar assim e não criemos artificialmente o germe dos problemas com que se defrontam as nações que não tiveram outro remédio senão reconhecer e institucionalizar a sua fragmentação regional. Temos a sorte de ser uma população praticamente sem linhas de fractura perceptíveis. Seria uma estupidez crassa ter a veleidade de criá-las por acto legislativo e negligenciar o risco de futuras rivalidades e antagonismos. O que a História uniu não deve a fantasia separar.

sexta-feira, 7 de junho de 2002

A reforma do sistema político (II)

Passado em revista o rol das reformas mais badaladas no momento, não custa aceitar que algumas das opções propostas se afiguram mais racionais do que outras. Mas não tenhamos ilusões. Criação de círculos uninominais, redução do número de deputados, novo regime de incompatibilidades, financiamento público ou misto dos partidos, criação ou não de uma segunda câmara na Assembleia da República, nada disso diz nada sobre a natureza e a qualidade do trabalho parlamentar. E está aí o nó górdio do problema.

Os maus sistemas políticos propiciam os maus governos, quando permitem que estes não sejam convenientemente fiscalizados. E a verdade é que, dado o actual modo de funcionamento dos partidos, os governos estão praticamente isentos de qualquer fiscalização, apesar de sujeitos a ela em teoria.

De acordo com o princípio fundamental da separação dos poderes, cabe aos deputados eleitos, quer no seu conjunto quer em comissões especializadas, exercer o controle parlamentar do poder executivo. Esse controle deve incidir sobre, pelo menos, três vertentes: a própria eficácia governativa, avaliada nos seus resultados e métodos; o cumprimento efectivo dos programas de governo e dos planos plurianuais; o rigor da execução orçamental. Nada disso, porém, se vê acontecer. O Parlamento critica ou elogia, encobre ou denuncia, mas não controla nem sanciona.

O facto não é sequer surpreendente. Como se pode esperar que o Parlamento actue como um órgão de fiscalização do governo, se a mesma direcção partidária escolhe os membros do governo e os da maioria parlamentar? Se os dirigentes dos partidos são os principais responsáveis pela composição das listas de deputados, como têm estes a independência política necessária para fiscalizar a actuação governativa de quem decide da sua própria carreira como membro do Parlamento?

A evidência é só esta: a separação de poderes esfumou-se completamente. A teoria política e a doutrina constitucional foram habilmente subvertidas e criou-se uma situação de facto que se traduz numa escandalosa concentração de poderes. Não se pode dizer, em rigor, que a maioria parlamentar emana do governo, pois este só é constituído depois de apurada a maioria; mas nas circunstâncias actuais é o vencedor eleitoral que, antes ainda de o ser, superintende na composição das listas de candidatos de onde sairá a maioria. Ou seja: enquanto líder partidário, o futuro primeiro-ministro escolhe os membros da futura maioria parlamentar – o mesmo será dizer: escolhe a maioria dos membros do órgão político que supostamente deverá depois controlar o seu governo. Se preferirmos em termos mais crus: o fiscalizado escolhe os seus fiscais. Pode imaginar-se maior perversão dos princípios?

O resto deduz-se facilmente. Em teoria, os deputados deveriam ser politicamente responsáveis perante o eleitorado, que é quem os elege; mas, na prática, são muito mais responsáveis perante a respectiva direcção partidária, que é quem os indigita. E o problema é que alguém, antes de ser eleito, precisa de ser candidato; antes de ser deputado, precisa de ser admitido numa lista eleitoral. Se só o for, agora ou no futuro, em função da sua esperada fidelidade política e da subserviência às orientações recebidas dos órgãos máximos do respectivo partido, a sua carreira parlamentar resume-se a duas alternativas simples: a de ser um deputado sem independência ou um independente sem mandato (pelo menos, sem o próximo mandato...). Qualquer veleidade de fiscalização efectiva equivaleria a um anúncio de suicídio político. É por isso que tal veleidade, no nosso sistema e noutros semelhantes, fica exclusivamente reservada para a oposição, que a desempenha por dever de ofício, sujeita a um constrangimento em tudo análogo. Para a oposição, só a perspectiva muda: aí a perene obrigação é a de estar contra. E como se trata, salvo indicação em contrário, não de estar contra isto ou aquilo, mas contra tudo o que o governa faça ou pretenda fazer, a fiscalização séria que daí resulta é absolutamente nenhuma. Será apenas uma guerra de bota-abaixo contra a facção do bota-acima...

Esta é a primeira perversão do sistema democrático que urge eliminar: a dependência política dos deputados (ou dos candidatos) em relação às respectivas direcções partidárias. E isso só será possível de uma maneira: introduzindo obrigatoriamente a democraticidade interna plena nos partidos políticos. Os candidatos a deputados devem ser sufragados no interior dos próprios partidos, isto é, devem ser escolhidos em eleições internas, disputadas por voto universal e secreto entre listas concorrentes, fazendo-se o respectivo apuramento segundo o critério da representação proporcional, em círculos eleitorais territorialmente coincidentes com os das eleições legislativas.

Escusado será dizer que esta alteração representará uma autêntica revolução democrática no interior dos partidos políticos. Supondo-se desde logo que idêntico método acabaria por prevalecer para a selecção dos candidatos autárquicos, inviabilizando a imposição de candidatos externos à revelia da vontade das secções concelhias, décadas de tradição no controlo do aparelho partidário pela facção dominante seriam assim contrariadas num ápice. Os órgãos internos dos partidos e os seus rostos mais visíveis na política seriam uma mais saudável expressão da emulação interna dos seus militantes e não um produto indesejável das prerrogativas e prepotências das instâncias superiores do aparelho. Seria a vitória do mérito sobre a subserviência, ou pelo menos a da credibilidade individual sobre a mera ortodoxia. Acima de tudo, seria a garantia da possibilidade de independência política daqueles que se candidatam a cargos públicos electivos.

Mas, apesar de parecer decisivo, este passo ainda não basta. De que vale que haja candidatos escolhidos sem a condição prévia da subserviência aos dirigentes, se os que venham a ser eleitos ficarem depois tolhidos e amordaçados por essa forma de política torcionária da consciência que dá pelo nome de “disciplina de voto”? Para que precisa um Parlamento de ter duzentos ou mais deputados condenados a não ter opinião própria (ou a não expressá-la livremente), coarctados na sua capacidade crítica e fiscalizadora pelas limitações impostas pela direcção da sua bancada parlamentar (que por sua vez acata instruções da respectiva direcção partidária)? É uma lógica de aparatchiks que assim se instala dentro do próprio Parlamento, fortalecendo artificialmente os líderes partidários e desprotegendo o povo.

A experiência recente do descrontole orçamental dos governos socialistas, com o seu longo cortejo de expedientes e de abusos, revela à saciedade quanto ficam vulneráveis os contribuintes, as finanças públicas e a economia perante governos que não são eficazmente fiscalizados. E o pior é que não é sequer de esperar que o venham a ser, qualquer que sejam as suas cores políticas, enquanto a maioria parlamentar for apenas uma extensão política do próprio governo, composta por antecipação, em vez de ser o governo uma extensão da maioria parlamentar, gozando esta de um efectivo ascendente político sobre aquele. Da maneira como as coisas realmente se passam, não é o poder legislativo que controla o poder executivo. É exactamente o contrário.

Para evitar esta grave perversão do sistema político, que se torna afinal uma autêntica desfiguração do próprio regime democrático, tal como muitos reconhecem em privado mas não admitem em público, é necessário conjugar duas medidas: a plena democraticidade interna dos partidos políticos, reflectida na obrigatoriedade da eleição interna dos candidatos a cargos públicos electivos, e a proibição constitucional da disciplina de voto.

Quanto a esta última, não é só pela lógica do sistema político que há muito deveria ter sido banida. Que terceiros, sejam eles quem forem, possam controlar ou determinar o voto político de alguém é uma aberração que nunca poderia encontrar justificação ou fundamento em matéria de direitos, liberdades e garantias. Se a independência de voto dos simples cidadãos é um princípio sagrado em democracia, como o poderia não ser a independência de voto dos eleitos, sejam eles deputados ou membros das assembleias municipais? As consequências são da maior importância prática: é que só com independência poderão realmente exercer a sua função fiscalizadora sobre o poder executivo.

sexta-feira, 1 de março de 2002

Manifesto para a educação da República

O que é necessário para que a República passe a educar bem os seus filhos?
Como será possível saltar dos anseios e dos apelos para os métodos e os resultados?
Antes de mais, são necessárias novas directivas públicas, o que constitui missão e responsabilidade do Estado. Cabe a este o primeiro impulso prático, depois de ter sido a própria sociedade civil a dar espontaneamente o primeiro impulso teórico para a renovação. E as novas directivas obrigarão a reformar mentalidades e atitudes, sejam quais forem as resistências. É pois ao Estado que cabe definir pragmaticamente os objectivos da educação e o padrão geral de exigência, situando-os num nível adequado às necessidades económicas e culturais do país, as quais por sua vez resultam do nível de desafogo material e do grau de civilização em que pretendemos colectivamente viver. E é óbvio que, quanto mais elevada for a ambição, maior terá de ser a exigência.

A escolaridade obrigatória não pode consistir simplesmente em frequentar a escola durante um determinado número de anos, julgando-se tão acessório o quanto lá se aprende que todos possam obter um diploma só pelo facto de a terem frequentado. Pelo contrário, é imperioso garantir que cada um sai dela com um certo número mínimo de conhecimentos indispensáveis, fortemente consolidados e rigorosamente avaliados.

É urgente reintroduzir no ensino básico e secundário as noções de sequência e de precedência, na medida em que a aquisição de certos conhecimentos depende da verdadeira assimilação de outros mais elementares. Não é possível iludir os requisitos de cada um dos estádios da aprendizagem, a menos que um país inteiro aceite iludir-se a si mesmo. Pretendemos a qualidade dos resultados e não o consolo das estatísticas fraudulentas.

A escola fez-se para ensinar e aprender. Neste aspecto, a modernidade pouco tem a acrescentar à tradição. Por isso, não se deve confundir o rigor e a disciplina da aprendizagem com o entretenimento leviano de uma simples ocupação de tempos livres. Logo nos primeiros passos do percurso escolar, a componente lúdica da escola deve ser utilizada como um artifício didáctico e não como um fim em si mesma. Exceptuado o tempo próprio do recreio, as brincadeiras e os jogos devem ser direccionados para aprendizagens específicas, ainda que de cariz não intelectual, em vez de se converterem em simples culto da espontaneidade infantil, muito ao gosto de certas modas que insistem em não dar frutos. E em vez de idolatrar as supostas e ubíquas virtudes da motivação e do interesse espontâneo, a elas condicionando a obtenção e até a própria exigência dos resultados, é preciso revalorizar a disciplina, a concentração, o esforço, o empenho, bem como a memorização dos conhecimentos fundamentais, pois a memória não deixou de ser uma das principais matérias-primas da inteligência. Há pois que reconhecer que, embora a motivação e o interesse sejam de enorme importância, eles só podem existir de forma avulsa e parcelar, ao sabor dos gostos e das inclinações individuais mais diversos (e, portanto, não direccionados para todas as aprendizagens básicas); logo, é menos importante o que as crianças gostam de aprender do que aquilo que devem aprender.
É importante, por exemplo, que voltem a saber a tabuada “na ponta da língua”, para que ela não atrapalhe depois as suas capacidades de cálculo; é importante que saibam ler com destreza, para que as dificuldades da leitura não criem empecilhos à compreensão dos textos; é importante que saibam pensar e analisar e criticar, mas que memorizem as coisas essenciais; é importante que saibam exprimir correctamente, falando ou redigindo, tanto as ideias veiculadas pelos livros e meios audiovisuais como as que resultem dos estímulos à sua própria criatividade, tendo como assente que a criatividade pouco vale sem uma boa capacidade de expressão, assim como as ideias pouco valem sem um raciocínio rigoroso.

No 1.º ciclo do ensino básico, é preciso contrariar o exagero do “lúdico”, o abuso do desenho livre e dos trabalhos manuais em detrimento da língua materna e do cálculo, o culto das actividades de expressão plástica ou dramática, o horror aos conhecimentos que exigem a utilização intensiva da memória.
É preciso também inovar no plano curricular, preenchendo as três maiores lacunas reconhecidas:
  • a aprendizagem precoce das línguas estrangeiras, e muito especialmente do inglês, já que é na faixa etária até aos 9 anos que se concentra a maior aptidão natural para a aprendizagem linguística oral, sendo pois um desperdício e um contra-senso remetê-la para mais tarde;
  • a iniciação à informática, que muitos consideram “a segunda alfabetização”, mas que os currículos ainda tratam como matéria de especialização vocacional;
  • a sistematização da educação emocional, a par da intelectual e da motora, de forma a abranger as três grandes componentes do desenvolvimento infantil.

Actualmente, o 1.º ciclo do ensino básico transmite aos seguintes as lamentáveis deficiências na leitura, na expressão oral, na redacção, na aritmética e noutros conhecimentos elementares. Mas o verdadeiro calcanhar de Aquiles do nosso sistema educativo está no indescritível facilitismo do 2.º e 3.º ciclos, onde a extrema debilidade do sistema de avaliação instituído e a permissividade dos critérios utilizados parecem dar à ignorância direitos adquiridos. Não se culpem disso os professores, sempre tratados como simples funcionários arregimentados que mal conseguem fazer ouvir as suas críticas e discordâncias; meçam-se antes as anónimas responsabilidades de planeadores ministeriais impreparados, que julgam poder fazer sucessivas reformas educativas sem conhecer a fundo o que se passa no terreno. O que há a fazer? Retire-se capacidade de decisão aos simples ideólogos; devolva-se poder, voz, iniciativa e responsabilidade aos professores, que são quem verdadeiramente sabe do seu ofício, e a educação melhorará. Alargue-se a autonomia organizacional, curricular, financeira, administrativa e pedagógica das escolas, confiando que a competência dos professores supere a dos burocratas, e a organização educativa também melhorará.

A uma maior exigência de resultados na educação corresponde necessariamente uma maior insistência nas matérias fundamentais – as chamadas “competências básicas ou essenciais” – até que estas fiquem realmente consolidadas e capazes de perdurar a longo prazo. Como corolário, é imprescindível avaliá-las com rigor. Para tal, a avaliação deverá ser extensiva e não por amostragem. Em prol da verdade, reconheçamos de uma vez por todas que não vale a pena deixar prosseguir estudos a quem não domina os conhecimentos precedentes indispensáveis para poder progredir no próprio conhecimento e nas suas aplicações práticas. Deixemos as aparências e escolhamos a substância, pois só esta nos conduz à eficiência dos procedimentos.
Trata-se, no fundo, de uma opção pela seriedade e pelo pragmatismo. E eis o que ela significa: resultados em vez de vagos princípios; métodos entrosados em vez de teorias genéricas; psicopedagogia em vez de ideologia; conjugação de competências profissionais específicas em vez de improvisos “iluminados” de políticos superficiais.

A exigência de todo o sistema educativo espelha-se necessariamente no grau de exigência utilizado na avaliação de conhecimentos e capacidades. Cabe perguntar: onde está o rigor, se a avaliação é imprecisa? Onde está a exigência, se não há reprovações?
A reintrodução no 2.º e 3.º ciclos do ensino básico de um sistema de classificação mais preciso, mais discriminado, com uma escala mais alargada (de 0 a 10, pelo menos, e preferencialmente a mesma do ensino secundário), é uma prioridade. É preciso diferenciar mais os vários graus de domínio dos conhecimentos, detectar com mais minúcia as suas lacunas ou inconsistências e combatê-las selectivamente através de módulos intensivos.
Para reforçar o rigor e a selectividade progressiva do sistema, a realização de exames finais, pelo menos no final de cada ciclo de estudos, terá também o seu papel mais do que justificado pela necessidade de assegurar a qualidade da aprendizagem no ciclo seguinte e uma maior homogeneidade nacional nos próprios requisitos mínimos de progressão.

Actualmente, o ensino secundário vive encurralado entre as deficiências do ensino básico e as exigências do ensino superior. É uma espécie de “ponte sobre o rio Kwai” entre dois mundos estranhos e hostis.
Para além dessa situação paradoxal, enferma de falhas intrínsecas na sua concepção e funcionamento. A um nível que já deveria ser de grande especialização vocacional, continuam a acotovelar-se demasiadas disciplinas simultâneas, espalhando-se por uma mancha horária demasiado extensa, provocando uma excessiva dispersão do estudo, traduzindo-se em exagerada perda de sequência nas matérias.
A desnecessária inclusão nos currículos de algumas disciplinas de escasso valor formativo e difícil justificação pedagógica, a frequência obrigatória de outras manifestamente desenquadradas da opção curricular básica dos alunos e em contradição com as suas aptidões, a própria obsolescência de inúmeros programas, tudo contribui para adensar o cenário da ineficiência. Mas esta resultaria, de qualquer modo, da já tradicional desarticulação entre disciplinas interdependentes, entre rubricas programáticas, entre a teoria e a prática, entre as metodologias didácticas oficialmente recomendadas e as regras elementares da psicologia da aprendizagem.
Chega até a ser difícil optar para onde dirigir um criticismo mais intenso: se para o desajustamento dos programas das disciplinas de formação geral relativamente às de formação específica ou se, de um modo mais abrangente, para o seu desajustamento às próprias realidades (sejam elas as necessidades do mundo prático ou os níveis de preparação real dos alunos nas áreas conceptual, linguística e cultural). Apesar da propalada clarividência de tantas reformas sucessivas, o ensino secundário continua a ser essencialmente um trabalho de “patchwork” cultural. Falta-lhe integração, coerência, finalidade própria.
E como corolário e emblema de um grau de ensino fundamentalmente baseado na confusão de objectivos, na sobreposição de tendências pedagógicas contraditórias e na ausência de uma visão sistémica da educação dos jovens, temos o tratamento desleixado e degradante dado à nossa própria língua. Não seria já altura, havendo consenso em que o uso prático da língua não se confunde com o seu uso literário, de separar formalmente o ensino do Português e o da Literatura Portuguesa, generalizando o primeiro e especializando o segundo? Interpretar textos literários não será certamente a competência prioritária que a vida moderna continuará a exigir do comum dos indivíduos, por muito que essa flor possa brilhar na lapela de cada um... Pelo contrário, o uso correcto e fluente da língua materna, nas suas diferentes formas de utilização prática, é uma necessidade reconhecida e profissionalmente valorizada. Porque não basta assimilar ideias e saberes; em inúmeras ocasiões, há também que dar expressão ao que deles resulta.

Em suma: qualquer que seja a noção de cultura que se perfilhe, qualquer que seja o modelo cívico que se ambicione, há algo que o sistema de ensino e de formação profissional não pode deixar de proporcionar às crianças, jovens e adultos que o frequentam: as ferramentas intelectuais que as sociedades modernas exigem. E não há dúvidas de que presentemente ele só o faz de forma muito imperfeita, com grande dispêndio de recursos e uma certa mediocridade de resultados.
Ao mesmo tempo que de um debate nacional sobre as necessidades e os métodos, talvez precisemos também de apressar uma reforma de mentalidades. Porque a competitividade internacional não vai ter compaixão dos mais lentos.