sexta-feira, 7 de junho de 2002

A reforma do sistema político (II)

Passado em revista o rol das reformas mais badaladas no momento, não custa aceitar que algumas das opções propostas se afiguram mais racionais do que outras. Mas não tenhamos ilusões. Criação de círculos uninominais, redução do número de deputados, novo regime de incompatibilidades, financiamento público ou misto dos partidos, criação ou não de uma segunda câmara na Assembleia da República, nada disso diz nada sobre a natureza e a qualidade do trabalho parlamentar. E está aí o nó górdio do problema.

Os maus sistemas políticos propiciam os maus governos, quando permitem que estes não sejam convenientemente fiscalizados. E a verdade é que, dado o actual modo de funcionamento dos partidos, os governos estão praticamente isentos de qualquer fiscalização, apesar de sujeitos a ela em teoria.

De acordo com o princípio fundamental da separação dos poderes, cabe aos deputados eleitos, quer no seu conjunto quer em comissões especializadas, exercer o controle parlamentar do poder executivo. Esse controle deve incidir sobre, pelo menos, três vertentes: a própria eficácia governativa, avaliada nos seus resultados e métodos; o cumprimento efectivo dos programas de governo e dos planos plurianuais; o rigor da execução orçamental. Nada disso, porém, se vê acontecer. O Parlamento critica ou elogia, encobre ou denuncia, mas não controla nem sanciona.

O facto não é sequer surpreendente. Como se pode esperar que o Parlamento actue como um órgão de fiscalização do governo, se a mesma direcção partidária escolhe os membros do governo e os da maioria parlamentar? Se os dirigentes dos partidos são os principais responsáveis pela composição das listas de deputados, como têm estes a independência política necessária para fiscalizar a actuação governativa de quem decide da sua própria carreira como membro do Parlamento?

A evidência é só esta: a separação de poderes esfumou-se completamente. A teoria política e a doutrina constitucional foram habilmente subvertidas e criou-se uma situação de facto que se traduz numa escandalosa concentração de poderes. Não se pode dizer, em rigor, que a maioria parlamentar emana do governo, pois este só é constituído depois de apurada a maioria; mas nas circunstâncias actuais é o vencedor eleitoral que, antes ainda de o ser, superintende na composição das listas de candidatos de onde sairá a maioria. Ou seja: enquanto líder partidário, o futuro primeiro-ministro escolhe os membros da futura maioria parlamentar – o mesmo será dizer: escolhe a maioria dos membros do órgão político que supostamente deverá depois controlar o seu governo. Se preferirmos em termos mais crus: o fiscalizado escolhe os seus fiscais. Pode imaginar-se maior perversão dos princípios?

O resto deduz-se facilmente. Em teoria, os deputados deveriam ser politicamente responsáveis perante o eleitorado, que é quem os elege; mas, na prática, são muito mais responsáveis perante a respectiva direcção partidária, que é quem os indigita. E o problema é que alguém, antes de ser eleito, precisa de ser candidato; antes de ser deputado, precisa de ser admitido numa lista eleitoral. Se só o for, agora ou no futuro, em função da sua esperada fidelidade política e da subserviência às orientações recebidas dos órgãos máximos do respectivo partido, a sua carreira parlamentar resume-se a duas alternativas simples: a de ser um deputado sem independência ou um independente sem mandato (pelo menos, sem o próximo mandato...). Qualquer veleidade de fiscalização efectiva equivaleria a um anúncio de suicídio político. É por isso que tal veleidade, no nosso sistema e noutros semelhantes, fica exclusivamente reservada para a oposição, que a desempenha por dever de ofício, sujeita a um constrangimento em tudo análogo. Para a oposição, só a perspectiva muda: aí a perene obrigação é a de estar contra. E como se trata, salvo indicação em contrário, não de estar contra isto ou aquilo, mas contra tudo o que o governa faça ou pretenda fazer, a fiscalização séria que daí resulta é absolutamente nenhuma. Será apenas uma guerra de bota-abaixo contra a facção do bota-acima...

Esta é a primeira perversão do sistema democrático que urge eliminar: a dependência política dos deputados (ou dos candidatos) em relação às respectivas direcções partidárias. E isso só será possível de uma maneira: introduzindo obrigatoriamente a democraticidade interna plena nos partidos políticos. Os candidatos a deputados devem ser sufragados no interior dos próprios partidos, isto é, devem ser escolhidos em eleições internas, disputadas por voto universal e secreto entre listas concorrentes, fazendo-se o respectivo apuramento segundo o critério da representação proporcional, em círculos eleitorais territorialmente coincidentes com os das eleições legislativas.

Escusado será dizer que esta alteração representará uma autêntica revolução democrática no interior dos partidos políticos. Supondo-se desde logo que idêntico método acabaria por prevalecer para a selecção dos candidatos autárquicos, inviabilizando a imposição de candidatos externos à revelia da vontade das secções concelhias, décadas de tradição no controlo do aparelho partidário pela facção dominante seriam assim contrariadas num ápice. Os órgãos internos dos partidos e os seus rostos mais visíveis na política seriam uma mais saudável expressão da emulação interna dos seus militantes e não um produto indesejável das prerrogativas e prepotências das instâncias superiores do aparelho. Seria a vitória do mérito sobre a subserviência, ou pelo menos a da credibilidade individual sobre a mera ortodoxia. Acima de tudo, seria a garantia da possibilidade de independência política daqueles que se candidatam a cargos públicos electivos.

Mas, apesar de parecer decisivo, este passo ainda não basta. De que vale que haja candidatos escolhidos sem a condição prévia da subserviência aos dirigentes, se os que venham a ser eleitos ficarem depois tolhidos e amordaçados por essa forma de política torcionária da consciência que dá pelo nome de “disciplina de voto”? Para que precisa um Parlamento de ter duzentos ou mais deputados condenados a não ter opinião própria (ou a não expressá-la livremente), coarctados na sua capacidade crítica e fiscalizadora pelas limitações impostas pela direcção da sua bancada parlamentar (que por sua vez acata instruções da respectiva direcção partidária)? É uma lógica de aparatchiks que assim se instala dentro do próprio Parlamento, fortalecendo artificialmente os líderes partidários e desprotegendo o povo.

A experiência recente do descrontole orçamental dos governos socialistas, com o seu longo cortejo de expedientes e de abusos, revela à saciedade quanto ficam vulneráveis os contribuintes, as finanças públicas e a economia perante governos que não são eficazmente fiscalizados. E o pior é que não é sequer de esperar que o venham a ser, qualquer que sejam as suas cores políticas, enquanto a maioria parlamentar for apenas uma extensão política do próprio governo, composta por antecipação, em vez de ser o governo uma extensão da maioria parlamentar, gozando esta de um efectivo ascendente político sobre aquele. Da maneira como as coisas realmente se passam, não é o poder legislativo que controla o poder executivo. É exactamente o contrário.

Para evitar esta grave perversão do sistema político, que se torna afinal uma autêntica desfiguração do próprio regime democrático, tal como muitos reconhecem em privado mas não admitem em público, é necessário conjugar duas medidas: a plena democraticidade interna dos partidos políticos, reflectida na obrigatoriedade da eleição interna dos candidatos a cargos públicos electivos, e a proibição constitucional da disciplina de voto.

Quanto a esta última, não é só pela lógica do sistema político que há muito deveria ter sido banida. Que terceiros, sejam eles quem forem, possam controlar ou determinar o voto político de alguém é uma aberração que nunca poderia encontrar justificação ou fundamento em matéria de direitos, liberdades e garantias. Se a independência de voto dos simples cidadãos é um princípio sagrado em democracia, como o poderia não ser a independência de voto dos eleitos, sejam eles deputados ou membros das assembleias municipais? As consequências são da maior importância prática: é que só com independência poderão realmente exercer a sua função fiscalizadora sobre o poder executivo.