quinta-feira, 7 de setembro de 2006

A cultura da sebenta

Os estudantes universitários, nomeadamente os das áreas de ciências humanas, já quase não lêem ensaios. E quando digo "quase", não quero exprimir o facto de que lêem poucos, mas sim o de que a maior parte deles já não os lê de todo.

Os editores queixam-se com razão de que se tornou um risco comercial publicar o tipo de obras que lhes seja especialmente destinado, excepto tratando-se de manuais adoptados ou de uma ou outra obra sinóptica tornada de leitura obrigatória pelo docente que a escreveu. Torna‑se curial perguntar como se formam estas novas gerações de estudantes, se já não lêem sequer o que há de mais essencial nas respectivas especialidades académicas.

A resposta está no novo espírito mercantil das universidades. Desde que estas descobriram que a reprografia também é negócio, as fotocópias de excertos e a edição de sebentas tiveram um incremento notável. Pelo caminho, foram-se atropelando mais ou menos deliberadamente, mais ou menos discretamente, as normas legais de protecção dos direitos de autor, quase sempre na maior impunidade. E se a lei estabelece a proibição de reprodução integral não autorizada de qualquer obra, os interessados puderam relaxar no facto tranquilizador de que agora basta reproduzir partes ou capítulos.

Poderá dizer-se que esta situação consentida obedece a um inconfessado propósito de economia de custos? Propósito ilusório e perverso, esse, pois que, apesar de à partida deverem ter um vasto público universitário teoricamente garantido, na prática os ensaios não vendem. O que tem como resultado a elevação drástica do custo dos livros neste sector martirizado, devido à redução das tiragens e à subida em flecha dos custos unitários, assim como a retracção das editoras em lançar novos títulos no mercado, limitando a acessibilidade das obras em tradução portuguesa.

Estamos pois rendidos à cultura da sebenta. Eis uma situação a que o Ministério da Educação não tem estado atento, mas que, de qualquer modo, dificilmente poderia ser corrigida por uma qualquer directiva ministerial. Sempre dependerá essencialmente do brio pedagógico dos docentes universitários, bem como do grau de exigência intelectual que lhe é correlativo, tornar de leitura obrigatória incontornável as obras de referência das disciplinas que leccionam, assim como os ensaios mais polémicos que na respectiva área se vão publicando e que marcam, por assim dizer, uma faceta importante ou uma tendência básica dela, ou como se diria noutras especialidades mais técnicas, o "estado da arte" nessa área temática.

Mas o reverso do problema é que muitos docentes universitários perderam o direito moral a esse grau de exigência, ou nunca o adquiriram. Com a espantosa proliferação de cursos universitários não técnicos a que se assistiu no mercado da educação, tornou-se frequente a contratação de assistentes demasiado jovens e ainda insuficientemente preparados para as matérias que vão leccionar, não obstante os graus ou os títulos académicos que possam ter obtido. Por outro lado, devido a uma legislação demasiado permissiva que autoriza os professores séniores e mais credenciados a saltar constantemente de uma universidade para outra, numa ânsia incontrolada de acumulação de funções e de rendimentos, aqueles passaram, por falta de tempo, a fazer menos investigação pessoal do que era norma tácita noutros tempos, e muitos deles limitam-se a quase repetir de ano para ano a leccionação dos mesmos apontamentos e dos itens recorrentes que os compõem. À docência repetitiva e ancorada nestes apontamentos progressivamente estiolados e sem prazo de validade, corresponde a discência baseada na mera deglutição das sebentas.

O resultado final é uma certa degradação da preparação universitária nas diversas áreas das ciências humanas. A esmagadora maioria dos novos licenciados nelas nunca leu sequer as principais obras de referência das áreas em que se diplomaram. Nunca como hoje foram tão patentes a sua falta de cultura histórica, a sua deficiente preparação filosófica, a sua ausência de ecletismo na formação teórica especializada.

Será assim tão inevitável, como alguns dizem, que ao alargamento progressivo do acesso à universidade tenha de corresponder o abaixamento inexorável do seu nível?