segunda-feira, 13 de abril de 2009

O elogio da leitura

Um célebre provérbio chinês diz-nos que uma imagem vale por mil palavras. E sob inúmeros aspectos, isso é verdade.
Uma imagem consegue dar-nos com mais facilidade e precisão os detalhes, os contornos, o impacto de um objecto ou situação; retrata ou transmite de forma mais intuitiva e directa uma emoção, um sentimento, um gesto; permite-nos vivenciar um acontecimento como se estivéssemos diante dele, e não como se nos facultassem apenas um relato; e uma boa sequência de imagens permite-nos visualizar toda a riqueza do movimento que uma sequência de palavras apenas poderia escassamente descrever.
A imagem parece pois ser um recurso privilegiado de comunicação. Mas essas, que parecem ser as suas maiores forças e vantagens, são também as suas debilidades e limitações face à palavra. Quando se trata de interpretar o que se vê, de discutir a sua importância e significado, de filtrar a importância das coisas, a imagem de pouco nos serve. Ela pouco pode ajudar-nos a valorizar ou desvalorizar algo, apenas pode dar-lhe ou tirar-lhe ênfase. E para quem procura captar o geral, o abstracto, as implicações do óbvio, as alternativas ao que nos é dado, ou seja, o lado complexo ou subtil da vida e do mundo, ela não consegue ser mais do que um mero cartão de visita, um convite, um incitamento, nada mais.
Uma imagem pode despertar-nos uma simpatia ou uma antipatia, mas não justificá-la. Pode proporcionar-nos uma impressão estética ou uma reacção moral, mas não os seus fundamentos. Pode confrontar-nos com os nossos gostos, mas não apurá-los. Pode alargar o nosso horizonte, mas não nos faz vislumbrar o que possa existir para além dele. Permite-nos conhecer, mas não descobrir; perceber, mas não inventar; aliciar, mas não persuadir; intuir uma ideia, mas não desenvolvê-la.
Embora não no sentido em que o dizia Platão, existem de facto dois mundos: o das coisas e o das ideias. Querendo ou não, com consciência ou não, cada um de nós vive simultaneamente em ambos. Ora a imagem está para o mundo das coisas assim como a palavra está para o mundo das ideias. Cada uma delas é a ponte de passagem para um território distinto. A imagem dá-nos o superficial, o fugaz, o transitório, o particular, o aparente. A palavra permite-nos o acesso ao profundo, ao duradouro, ao perene, ao geral, ao essencial. São tão distintas como complementares. Uma sem a outra, a imagem e a palavra vivem na mais perturbadora solidão. Uma sem a outra, praticam o angustiante celibato dos significados, ainda que possam não se dar conta disso.
Nem tudo nelas são contrastes. Ambas são capazes de uma certa espécie de retórica, ambas dispõem de truques de eloquência, ambas têm regras de morfologia e de sintaxe que permitem melhorar o seu desempenho. E ambas revelam capacidades simbólicas e narrativas capazes de nos estimular a imaginação. Mas, no limite, a mundividência a que nos conduzem não é do mesmo género.
Fazer o elogio da imagem não é hoje em dia necessário. Fazem-no sem cessar a publicidade, o cinema, os videojogos, o design gráfico e industrial, a parafernália dos museus, as seduções do turismo. Mas a palavra tem apoios mais limitados, pois a favor dela apenas militam a oratória e o texto. E como o uso virtuoso da oralidade parece tender a desaparecer gradualmente num mundo contemporâneo cujo panorama intelectual é minado pelo improviso desleixado e pela tagarelice, ou talvez ainda mais pela proliferação das gírias, impõe-se a defesa obstinada dos últimos bastiões “esclarecidos” ou "eruditos" da palavra escrita: a revista, o jornal, o livro, e seus similares.
Eis-nos assim chegados ao universo da leitura, onde todos os contrastes e todos os contrários se encontram e se revezam inesperadamente: a aventura e a estratégia, a emoção e a reflexão, o plano e o improviso, a poesia e o drama, a intriga e o desfecho, a análise e a síntese, o concreto e o abstracto, o senso comum e a filosofia, a superstição e a ciência.
Bem vistas as coisas, a palavra escrita permite-nos, muito mais do que a imagem ou o movimento, ultrapassar os limites do trivial. Ler é como desvendar o enigma de outras vidas, outras mentes, outras culturas, outros códigos, ser verdadeiramente um cidadão do mundo, algo que nem o turista mais viajado alguma vez conseguirá apenas pelo facto de se deslocar muito de um lado para o outro. E quem não lê, embora o não perceba, nunca deixará de ser um estrangeiro até na sua própria terra.