sábado, 4 de março de 2006

O direito à blasfémia

Pois, é isso mesmo. Não há como contornar o facto: a liberdade de expressão implica o direito à blasfémia.
O contrário significaria instituir um interdito, um tabu religioso. Mas que não faz nenhum sentido para os descrentes.
Questão de reciprocidade: se não se condena ninguém por expressar opiniões contra o ateísmo, ou por ridicularizar a descrença, como se pode condenar alguém por expressar opiniões contra a religião, ou por satirizar a crença? Logicamente, um tal raciocínio é tão válido quando se pensa numa crença em particular como na fé em geral.
Há quem defenda que "com o sagrado não se brinca". Talvez não. Mas com qual dos sagrados, o nosso ou os dos outros? Há tantos. Temos sempre que saber admitir que aquilo que nos parece sagrado não o é para toda a gente, nem tem de o ser. E os outros têm o direito inalienável de desdenhar as nossas crenças, assim como nós o temos de desdenhar as suas.
Para quem as professa, todas as superstições são sagradas ou tendem a sê-lo, independentemente de quais sejam. Respeitá-las a todas reduziria a muito pouco o direito de crítica e a liberdade intelectual.
Não considerar tal ou tal religião como uma superstição, por exemplo, não passa de uma opinião de crentes. Considerar o ateísmo como uma blasfémia, também. Tal como considerar a religião irrelevante não passa de uma opinião de ateus. E considerar que não há nada sagrado, também.
É precisamente a nossa permissão de brincar com o sagrado, qualquer que ele seja, que exprime o auge da liberdade de opinião em matéria religiosa. E as opiniões existem para se poderem exprimir.
Podemos é fazê-lo com mais ou menos bom senso. Temos de ter em consideração o grau de tolerância ou animosidade que as nossas opiniões podem despertar. Os seus efeitos, enfim.
Indubitavelmente, devemos respeitar as práticas religiosas sempre que elas não colidam com os direitos humanos. Uma das manifestações desse respeito consiste em não perturbar as crenças e práticas alheias no seu ambiente próprio, especialmente no ambiente que elas consideram sagrado.
Contudo, um jornal é um local profano. É um meio idóneo para publicar opiniões de todos os géneros e tendências, desde que não visem perturbar intencionalmente a ordem pública, pois esta é um bem ainda mais precioso que a liberdade de expressão.
Para podermos conciliar ambas as coisas, devemos recorrer ao bom senso. Sopesar as consequências do que dizemos, escrevemos e fazemos. Não vivemos num mundo inteiramente devotado à tolerância e à liberdade. Os fundamentalismos de opinião abundam e são todos potencialmente perigosos. Quando excessivamente estimulados, costumam conduzir à violência. Esse é o mundo profano em que vivemos.
No fim de contas, sendo o mundo como é, pode ser ainda mais perigoso brincar com o profano. Não vale a pena instigar ódios e violências só para exibir os nossos princípios. Basta que não renunciemos a eles, que saibamos defendê-los publicamente.
A prudência significa às vezes dar uma no cravo e outra na ferradura, por muito pouco coerente que isso pareça. Ou seja, neste caso: abstemo-nos de publicar mais caricaturas de Maomé, mas defendemos acerrimamente o nosso direito a publicá-las. Um pouco esquisito, não é? Mas pode ser esta a melhor maneira profana de lidar com o sagrado.