domingo, 13 de janeiro de 2008

Para uma política de civilização

O conceito não é recente. Foi criado pelo sociólogo Edgar Morin há uma boa porção de anos, mas fora dos meios académicos pouca gente o conhecia. Foi agora trazido para a ribalta, com uma pujança absolutamente inesperada, pelo novo presidente francês. E com um impacto mediático tal que, sejam quais forem as realizações práticas que venham a ser conseguidas sob a sua inspiração, a cultura política do nosso século não voltará provavelmente a ser a mesma.
Não se trata de uma fórmula de circunstância, de uma fuga poética ao pragmatismo, de um simples floreado filosófico. É uma noção com substância, embora de contornos mal definidos ou com vários teores possíveis. Ela exprime a ideia de que não basta fazer uma boa gestão prática dos assuntos públicos e que é necessário orientar a sociedade em direcção a determinados valores, instituições, práticas, regras de convivência, enfim, um modus vivendi colectivo que está para além das simples metas quantitativas de qualquer governo.
Por outras palavras, é o tipo de civilização pretendido que mais deve condicionar a orientação das políticas. Sob esse ponto de vista, cada opção de fundo acarreta algumas consequências práticas.
A nossa civilização baseia-se na defesa da laicidade do Estado e da igualdade jurídica dos sexos, o que implica cercear os fluxos migratórios vindos de regiões que não aceitam nem uma coisa nem outra.
Baseia-se na democracia representativa, o que implica que os parlamentos devem controlar e fiscalizar os governos, e não contrário, e que devem haver limites e freios eficazes ao exercício arbitrário e arrogante do poder.
Baseia-se num ideal de solidariedade e na manutenção de um sistema de segurança social, o que implica neutralizar os enormes danos económicos resultantes da concorrência desleal de países onde as empresas não têm de contribuir para esquemas de protecção aos doentes, aos desempregados ou aos idosos e, em certos casos, quase nem impostos pagam.
Baseia-se em elevados padrões de educação e civismo, o que se traduz na obrigatoriedade de preservar a real observância das leis, o cumprimento escrupuloso dos contratos, o respeito dos direitos alheios, a urbanidade e o acatamento das regras de coabitação ou de trânsito.
Baseia-se na ética empresarial e dos negócios, o que implica moralizar o capitalismo financeiro, regular de forma justa e sensata as relações laborais, proteger os consumidores contra abusos e publicidade enganosa.
Baseia-se na segurança das pessoas e dos bens, o que implica reformar um sistema de justiça que actualmente protege mais os delinquentes do que as vítimas e os deixa proliferar.
Baseia-se na possibilidade generalizada de acesso a um apurado nível de formação profissional, de molde a proporcionar algo próximo da igualdade teórica de oportunidades, o que implica a aquisição real de conhecimentos e competências úteis nos estabelecimentos de ensino e não apenas a exibição de estatísticas enganadoras ou elevados níveis de investimento educacional para inglês ver e sem resultados à altura.
Baseia-se no empreendedorismo e na livre iniciativa, o que implica moderar os ímpetos à sua maior inimiga, a voracidade fiscal.
Baseia-se em tudo isto e muito mais. Podem parecer apenas noções muito gerais, mas são susceptíveis de se traduzir em implicações muito concretas.