segunda-feira, 28 de abril de 2008

Os professores e a estratégia sindical

Com culpa ou sem ela, dada a complexidade quase labiríntica das reformas toscas e atabalhoadas que o Ministério da Educação tem tentado ultimamente empreender à pressa, o que é facto é que os sindicatos têm revelado também algumas falhas de clarividência estratégica para se opor a elas.
Talvez seja compreensível: toda a classe docente anda ainda tão atordoada com esta avalanche de mudanças mal concebidas e pior legisladas que só agora começa a ser capaz de juntar os fios da meada. Têm-se sucedido despachos, circulares, orientações e documentos avulsos a um ritmo que impede a boa digestão. Têm-se acumulado as imprecisões, as lacunas, as inépcias e as omissões, num volume significativo. Vão proliferando as diferenças de interpretação, de planificação, de aplicação. Multiplicam-se também as análises e os pareceres, mas as opiniões dividem-se. Feitas as contas, sobra pouco tempo para pensar com calma e ir ao essencial.
Em primeiro lugar, há que questionar seriamente se e como pode ser avaliado com rigor o desempenho didáctico de cada professor, tratando-se de uma profissão essencialmente solitária, que se desenrola em larga medida (ou seja, no seu núcleo duro: ensinar) à margem dos olhos de colegas e directores.
Em segundo lugar, há que pôr em evidência que uma variável só pode ser medida com precisão quando pode ser isolada. Ora se o progresso escolar dos alunos pode resultar do mérito dos professores, do mérito dos próprios alunos ou de uma conjugação de ambos, como é possível destrinçá-los para medir só um deles separadamente? Não conheço ainda resposta para tal questão.
Em terceiro lugar, há a razoabilidade financeira. Qualquer modelo de avaliação dos docentes implica, para cada caso individual, o dispêndio de um certo número de horas de trabalho qualificadas e pagas. Num processo burocrático tão complexo como o que se preconiza e se pretende aplicar, qual o tempo de trabalho necessário para avaliar 143.000 professores de dois em dois anos? E quanto custa isso ao Estado, ou seja, aos contribuintes? Será esse dispêndio colossal minimamente justificável em face dos magros resultados previsíveis, quando seria possível aplicar tais verbas na modernização tecnológica das escolas ou noutras melhorias, com resultados muito mais palpáveis?
Em quarto lugar, se pode o Ministério da Educação formar uma comissão científica para superintender na avaliação do desempenho dos professores, por que não hão-de os professores, numa actuação concertada dos seus sindicatos, constituir também uma comissão científica, igualmente credível e não menos eminente, para avaliar em cada ano o desempenho do Ministério da Educação? Como arma política de arremesso, não seria coisa de desprezar. E tanto menos quanto maior fosse a seriedade posta na iniciativa.
Aqui fica a sugestão para abrir quatro novas frentes de combate.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Uma profissão solitária

Há muitas profissões que se desenrolam à vista de chefes e colegas, permanentemente expostas à observação e ao escrutínio de quem pode orientá-las, dirigi-las, criticá las e, por fim, avaliá-las. Nelas, o desempenho de cada um não é coisa reservada, não há como escondê-lo ou camuflá-lo perante o olhar dos pares e dos superiores hierárquicos. Não há privacidade nesse desempenho.
Noutras, a avaliação do desempenho pode fazer-se em grande parte por rigorosos critérios objectivos, estandardizados, quantificáveis: níveis de produção, resultados de vendas, percentagens no controle de qualidade, incrementos da produtividade, redução dos custos, lucros líquidos, quotas de mercado, volume de clientes ou de transacções. Pode pensar-se o que se quiser, os números aí estão para confirmar ou desmentir.
Outras, porém, são profissões solitárias. Não porque se desenrolem inteiramente à margem dos olhares e juízos alheios, mas porque quem vê e ajuíza sobre a porção visível não tem supostamente a isenção e a preparação necessárias para julgar. É o caso dos professores.
Boa parte do seu trabalho é de carácter reservado: o estudo prévio das matérias a leccionar, a esquematização das aulas, a preparação dos materiais didácticos, a concepção dos instrumentos de avaliação dos alunos, tudo isso é feito na intimidade de uma mesa de trabalho, em casa ou seja onde for, longe do olhar dos colegas e dos directores, e até mesmo dos destinatários.
Outra parte é de carácter colectivo e, portanto, não responsabiliza individualmente ninguém: a planificação da execução dos programas, as normas internas de avaliação, a aprovação de matrizes para exames, o plano anual de actividades extracurriculares, tudo isso resulta de deliberações de cada departamento específico ou dos outros órgãos pedagógicos da escola. Cada professor aí apenas opina, sugere, critica, regista e, quando for o caso, vota.
Mas o essencial da docência, o seu núcleo duro, é dar aulas. Durante mais de meio milhar de horas em cada ano lectivo, o professor está apenas exposto aos seus alunos, sujeito aos ventos instáveis do interesse e da atenção daqueles, confrontado com muitos desafios personalizados e individualismos de motivação, disciplina, capacidade, empenho, preparação prévia e sedimentação de conteúdos. Está condenado a dirigir-se à média intelectual de cada turma ou, na pior das hipóteses, ao seu menor denominador comum. Tem que ajustar os seus planos e intenções iniciais às características próprias dos alunos com que se defronta em cada bloco lectivo. É obrigado a adaptar, a improvisar, a fazer o que a dinâmica de cada aula exige, e não há verdadeiramente nenhuma igual a outra, porque a contínua variação das matérias e a alternância das turmas tende a estilhaçar as rotinas.
Não sendo justo nem razoável que um professor seja avaliado pelos resultados obtidos pelos seus alunos, visto que não é responsável pela qualidade das turmas que lhe atribuem, será suficiente um dos seus pares assistir-lhe a umas quantas aulas, correspondentes a menos de 1% do seu desempenho lectivo ao longo de um ano inteiro, para avaliar grosso modo a qualidade intrínseca do seu trabalho? Ou não será isto resvalar para o aleatório, para o superficial, quase para o arbitrário?