domingo, 19 de abril de 2009

Os ingredientes do insucesso

As dificuldades por que passa o país são o resultado natural de uma receita simples cujos principais ingredientes são três: falhas institucionais, hábitos instalados pouco recomendáveis e um certo desfalecimento intelectual e moral. Consoante as suas idiossincrasias pessoais, políticos e jornalistas dos vários quadrantes dão mais destaque a uma maleita ou a outra e alargam-se mais em certo género de comentários e prescrições, mas as coisas não deixam de ser o que são por variar o ângulo da análise.
No tocante às falhas institucionais, vai-se tornando evidente com o tempo a insustentável ausência de um sistema adequado de normas, freios e controles, capaz de pôr cobro ou limites mais encurtados a toda a espécie de incoerências políticas ou desmandos financeiros, nomeadamente quando se trata de respeitar compromissos eleitorais ou restrições orçamentais. Até para o desrespeito do texto das leis, inclusive as constitucionais, se tem encontrado sempre alguma justificação no espírito das medidas postas em prática, e ainda continua a achar-se amiúde que uma boa justificação elimina a própria infracção ou desculpa a camuflagem dela.
Se passarmos aos hábitos instalados, depressa concluímos que o Estado teima em não renunciar às obsessões perdulárias, que os contribuintes parecem não fazer mais do que a sua obrigação quando desembolsam para todos os gastos e desperdícios públicos, que a lei é para cumprir só quando não pode deixar de ser e que, com boa vontade e os necessários conluios, sempre os vários poderes arranjam forma de poderem fazer aquilo que é sabido que não devem.
Mas é no declínio intelectual e moral que menos se põe a tónica e onde reside a maior gravidade do problema nacional, o qual, referido assim em abstracto, mais não é que o vago e vasto somatório de muitos problemas evitáveis com que colectivamente arcamos. Poderíamos referir o espírito de corrupção mais ou menos generalizado, cujo nível e gabarito dependem apenas da capacidade e inspiração de cada um (para já não falarmos das oportunidades, que sempre são muitas), da debilidade dos idealismos e dos empenhos cívicos, da facílima traição das promessas e dos programas políticos, da supremacia das conivências sobre as competências, do intuito de carreirismo privado com que se perseguem e aceitam cargos públicos, da ausência de uma educação selectiva para o ingresso nas carreiras superiores do funcionalismo público e na descarada partidarização destas, nas feudalidades administrativas que subsistem, na incompreensão absoluta de que a mais importante e prioritária das opções é a de uma certa política de civilização, transcendendo em muito as preocupações pragmáticas das tecnocracias, e enfim, todo um rol de pequenos e grandes sintomas de que o Estado é afinal algo que serve para pilhar ou ser pilhado, de que os cargos públicos não são o corolário de um percurso de competências adquiridas e provas dadas, mas antes pelo contrário, um utilíssimo trampolim para saques, privilégios e mordomias.
A respeito dos nossos políticos, em particular, se falássemos da falta de "espírito de missão" diríamos quase tudo, se falássemos da falta de estadistas diríamos o resto.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

O elogio da leitura

Um célebre provérbio chinês diz-nos que uma imagem vale por mil palavras. E sob inúmeros aspectos, isso é verdade.
Uma imagem consegue dar-nos com mais facilidade e precisão os detalhes, os contornos, o impacto de um objecto ou situação; retrata ou transmite de forma mais intuitiva e directa uma emoção, um sentimento, um gesto; permite-nos vivenciar um acontecimento como se estivéssemos diante dele, e não como se nos facultassem apenas um relato; e uma boa sequência de imagens permite-nos visualizar toda a riqueza do movimento que uma sequência de palavras apenas poderia escassamente descrever.
A imagem parece pois ser um recurso privilegiado de comunicação. Mas essas, que parecem ser as suas maiores forças e vantagens, são também as suas debilidades e limitações face à palavra. Quando se trata de interpretar o que se vê, de discutir a sua importância e significado, de filtrar a importância das coisas, a imagem de pouco nos serve. Ela pouco pode ajudar-nos a valorizar ou desvalorizar algo, apenas pode dar-lhe ou tirar-lhe ênfase. E para quem procura captar o geral, o abstracto, as implicações do óbvio, as alternativas ao que nos é dado, ou seja, o lado complexo ou subtil da vida e do mundo, ela não consegue ser mais do que um mero cartão de visita, um convite, um incitamento, nada mais.
Uma imagem pode despertar-nos uma simpatia ou uma antipatia, mas não justificá-la. Pode proporcionar-nos uma impressão estética ou uma reacção moral, mas não os seus fundamentos. Pode confrontar-nos com os nossos gostos, mas não apurá-los. Pode alargar o nosso horizonte, mas não nos faz vislumbrar o que possa existir para além dele. Permite-nos conhecer, mas não descobrir; perceber, mas não inventar; aliciar, mas não persuadir; intuir uma ideia, mas não desenvolvê-la.
Embora não no sentido em que o dizia Platão, existem de facto dois mundos: o das coisas e o das ideias. Querendo ou não, com consciência ou não, cada um de nós vive simultaneamente em ambos. Ora a imagem está para o mundo das coisas assim como a palavra está para o mundo das ideias. Cada uma delas é a ponte de passagem para um território distinto. A imagem dá-nos o superficial, o fugaz, o transitório, o particular, o aparente. A palavra permite-nos o acesso ao profundo, ao duradouro, ao perene, ao geral, ao essencial. São tão distintas como complementares. Uma sem a outra, a imagem e a palavra vivem na mais perturbadora solidão. Uma sem a outra, praticam o angustiante celibato dos significados, ainda que possam não se dar conta disso.
Nem tudo nelas são contrastes. Ambas são capazes de uma certa espécie de retórica, ambas dispõem de truques de eloquência, ambas têm regras de morfologia e de sintaxe que permitem melhorar o seu desempenho. E ambas revelam capacidades simbólicas e narrativas capazes de nos estimular a imaginação. Mas, no limite, a mundividência a que nos conduzem não é do mesmo género.
Fazer o elogio da imagem não é hoje em dia necessário. Fazem-no sem cessar a publicidade, o cinema, os videojogos, o design gráfico e industrial, a parafernália dos museus, as seduções do turismo. Mas a palavra tem apoios mais limitados, pois a favor dela apenas militam a oratória e o texto. E como o uso virtuoso da oralidade parece tender a desaparecer gradualmente num mundo contemporâneo cujo panorama intelectual é minado pelo improviso desleixado e pela tagarelice, ou talvez ainda mais pela proliferação das gírias, impõe-se a defesa obstinada dos últimos bastiões “esclarecidos” ou "eruditos" da palavra escrita: a revista, o jornal, o livro, e seus similares.
Eis-nos assim chegados ao universo da leitura, onde todos os contrastes e todos os contrários se encontram e se revezam inesperadamente: a aventura e a estratégia, a emoção e a reflexão, o plano e o improviso, a poesia e o drama, a intriga e o desfecho, a análise e a síntese, o concreto e o abstracto, o senso comum e a filosofia, a superstição e a ciência.
Bem vistas as coisas, a palavra escrita permite-nos, muito mais do que a imagem ou o movimento, ultrapassar os limites do trivial. Ler é como desvendar o enigma de outras vidas, outras mentes, outras culturas, outros códigos, ser verdadeiramente um cidadão do mundo, algo que nem o turista mais viajado alguma vez conseguirá apenas pelo facto de se deslocar muito de um lado para o outro. E quem não lê, embora o não perceba, nunca deixará de ser um estrangeiro até na sua própria terra.

Um referendo à hipocrisia

Legislatura atrás de legislatura, vão passando os anos, vários, sem que ninguém se preocupe no dia a dia, alto e bom som, se há mulheres que abortam, se algumas morrem ou adoecem por causa disso, se há outras soluções socialmente viáveis para as gravidezes indesejadas ou insustentáveis. Apesar da magnitude do problema e do número imaginável de casos, ninguém toma a questão muito a peito, excepto alguns grupos organizados com expressão marginal e repercussão quase nula.
Sabemos que se fazem abortos clandestinos em quantidade, e porquê, e como. Sabemos os riscos para a saúde de quem lança mão a este expediente de último recurso. Sabemos que há inúmeras crianças que deixam de nascer, sem que ninguém grite "aqui d'el rei". Sabemos que há quem assim se alivie de um pesadelo previsível, de uma consciência culpada ou de um estigma social. E sabemos que a proibição do aborto não diminui a sua ocorrência. Mas faz-se vista grossa.
De repente, alguém se lembra de submeter o assunto a um referendo e logo rebenta o alvoroço. De um instante para o outro, nascem organizações empenhadas, revitalizam-se outras que estavam em coma profundo, montam-se encenações mediáticas, fazem-se reuniões e comícios entusiásticos, prodigaliza se a propaganda, terçam armas as opiniões irredutíveis, os nervos agitam-se à flor da pele. Já não são simples pessoas que se movimentam, mas ideologias rivais e heterogéneas forças sociais, cuidando de não perderem prestígio e influência junto da comunidade.
Bem vistas as coisas por este insólito viés, o que se vai referendar em breve não é propriamente o direito à interrupção voluntária da gravidez, mas a hipocrisia das nossas convicções publicamente assumidas, que às vezes nem sequer o são em privado.
Não tenho a mínima dúvida de que, no que respeita à maioria dos seus protagonistas, por debaixo de todo este reboliço, de todo este linguajar verborreico e incoerente, não medra qualquer preocupação sincera com os dramas humanos que estão subjacentes, e para os quais ninguém oferece reais soluções práticas.
Se o contrário fosse verdade, já há muito que teriam surgido os apoios suficientes às grávidas carenciadas, os mecanismos ágeis de adopção, as instituições de acolhimento, o acesso generalizado e fácil à contracepção gratuita.
Quando se trata de resolver problemas, mas de resolvê-los a sério, seja por iniciativa pública ou privada, onde param então os humanistas e os panfletários de todos os quadrantes?
Não nos venham de novo com a ética humanista. Toda esta recente agitação é essencialmente política, religiosa, ideológica. O que mais tem andado arredado deste assunto é precisamente o humanismo, para não dizer a própria ética, especialmente durante todo o tempo que decorre antes e depois de referendos, em que quase nada se faz para resolver ou minorar o problema real.
Nós, portugueses, sabemos como somos. Mais facilmente nos interessamos por causas do que por pessoas. E ligamos mais a controvérsias do que a quem sofre com o resultado delas.

Moda ou falta de imaginação?

O défice orçamental do Estado passou a ser o novo bicho-de-sete-cabeças da política contemporânea. A inflação foi destronada, o desemprego bem pode esperar melhores dias e a pobreza tornou-se tacitamente um mal necessário ou um tópico residual de retórica parlamentar ou televisiva. A cada época sua perspectiva e sua hierarquia de preocupações.
O que se constata importar agora é que o Estado consiga arrecadar tantas receitas fiscais quanto o balúrdio que indistintamente gasta com todas as suas obrigações e extravagâncias, com todas as suas prioridades e irrelevâncias. Poderia também pôr-se a questão de outro modo, e há quem o faça, que seria a de o Estado cortar criteriosamente nas despesas e desembolsar apenas na medida do que recebe ou espera receber; mas parece que, para quem está no poder, esse método não dá tanto jeito ou exige competências mais transcendentes do que aquelas que se adquirem nas universidades. A prova disso, convenhamos, é quase quotidiana e está à vista até dos leigos.
Afigura-se pois a muitos razoável que o Governo faça aquilo que sabe fazer melhor, ou seja, aumentar a colecta por decreto e dar instruções implacáveis, embora nem sempre eficazes ou equitativas, para perseguir os caloteiros. Alguém tem alguma coisa a objectar? Então objecte, mas de pouco lhe servirá. Pois quem faz só o que sabe a mais não é obrigado, e não se vislumbra sequer porque haveriam os governantes de ser excepção.
Haverá outros remédios? Talvez. Um crítico perspicaz logo se atreveria a dizer que o primeiro grande passo para o equilíbrio orçamental seria a consciência plena de que ninguém tem o direito de desperdiçar o dinheiro subtraído pelo fisco ao trabalho ou aos lucros de quem labuta ou investe. Mas francamente, quem se iria apiedar dessa ética balofa, se desde tempos imemoriais o saque dos impostos serve prioritariamente para ser desperdiçado, ou seja, precisamente para aquilo que os moralistas dizem que não se deve fazer com ele? O Estado já não é o príncipe, nem sequer a família real inteira, mas alberga agora novos príncipes e novas realezas.
Retirar ao Estado o privilégio de sempre gastar acima das suas posses, acrescentando-as um pouco desmesuradamente com as alheias, não só lhe retiraria a sua dignidade própria, que é a de poder fazer o que se apresenta interdito ao cidadão comum, como poderia implicar uma autêntica revolução psicológica e administrativa que às vezes, mas só de passagem e com natural acanhamento, alguém se atreve a referir como "reforma do Estado". E com a agravante de que a moda das febres revolucionárias já passou, o que se aprecia agora são aquelas tendências reformistas muito mais moderadas que consistem, na maior parte dos casos, em dar um passo à frente e dois atrás. Portanto, ó Deus, se acaso existes, livra-nos de tais exageros!
Que não venha pois ninguém falar-nos da "avaliação da eficácia das políticas públicas", que não nos macem com essa conversa de "suprimir as despesas inúteis e reencontrar margens de manobra", de "substituir a lógica dos meios pela lógica dos resultados". Tudo isso, estamos fartos de o saber, é perfeitamente correcto, mas é precisamente por sê-lo que só dificilmente aparecerá alguém com ciência e consciência e aptidão e ética para fazê-lo. Relaxemos, pois, tanto o espírito como os cordões à bolsa. Talvez morramos mais velhos.

O Estado predador

Nem sempre é fácil distinguir entre a análise objectiva e o facciosismo político, mas há domínios onde os factos falam por si com uma contundência que abala convicções e dificulta a réplica, na feliz expressão de alguém.
O Estado, tal como o conhecemos hoje, já não é o que era. Não emite moeda, não determina juros, não fixa câmbios, não levanta barreiras alfandegárias, não controla a circulação de capitais e, espartilhado orçamentalmente, não tem sequer capacidade para promover políticas anticíclicas, isto é, que contrariem os maus ventos que sopram sobre a economia, quando os há (e, infelizmente, há-os com demasiada frequência). Estas palavras, na sua maior parte e sem as devidas aspas, são roubadas a um reputado economista, mas quase todos os outros concordam com ele. Nisso, pelo menos, há consenso.
Em perpétua crise financeira, o Estado já não dispõe de instrumentos para influenciar directamente a economia, o investimento e o emprego. É um Estado desfigurado, reduzido nas suas competências, bastante esvaziado nas suas funções, limitado nas suas capacidades. É uma sombra do que foi.
No entanto, o Estado cresce. E cresce desmesuradamente. Como um sol em declínio, projecta agora a sua sombra com muito maior extensão. Como? Cobrando mais impostos, contribuições, taxas e coimas. Proliferando em organismos, legislação, regulamentos e circulares. Impondo mais obrigações aos cidadãos, mais procedimentos complicados, mais burocracia. Aumentando o seu tamanho, as suas despesas e o seu peso no produto interno bruto. E distribuindo dinheiro ou outras benesses a um número cada vez maior de políticos, funcionários, pensionistas e subsidiados, que o parasitam ou que dele dependem, desde as variegadas elites à humilde e anónima plebe.
Que temos hoje? O "Estado-tesoureiro" ao serviço do "Estado-asilo", acumulando ambas as funções para poder justificar uma com a outra. E sempre pretendendo ampliar ambas, porque se tornou essa a sua principal razão de existir ou porque almeja deliberadamente compensar com dimensões o que vai perdendo em funções, a fim de poder manter devidamente instalado e satisfeito todo o pessoal político e seus respectivos séquitos, não só os que já o são como os que ainda aspiram a sê-lo.
Quem sustenta tais veleidades? Obviamente, as vítimas e os mecenas do costume: os contribuintes que trabalham e que pagam os seus impostos e contribuições; os investidores que produzem ou arriscam e vêem pesadamente tributados os seus lucros e mais-valias; os consumidores que adquirem bens e serviços e desembolsam sumariamente os exagerados impostos sobre o consumo; e os fundos providenciais que nos vão chegando da Europa abastada, aos quais simulamos dar melhor destino e aproveitamento, para que continuem a vir enquanto for possível.
Em suma: já não temos um "Estado intervencionista" que actua sobre a economia para a proteger e incentivar, mas um Estado astuto e predador que a debilita e a suga, em boa parte porque não dispomos de normas constitucionais e órgãos reguladores capazes de lhe impor limites adequados. Até quando?

domingo, 5 de abril de 2009

Duas contribuições teóricas...

Embora a declaração de princípios do Movimento para a Democracia Directa já vá bastante longe nos seus propósitos de reforma do nosso sistema político, considero que há nele duas lacunas, duas referências omissas. Sem necessidade, porém, de alterar uma vírgula no texto já aprovado, que está muito bem, creio que no seu espírito cabem duas ideias que proponho também à vossa consideração e que poderemos facilmente incorporar nos nossos ideais e objectivos: a adopção do voto preferencial e a proibição constitucional da disciplina de voto.
Passo a explicar ambas as ideias.
Quando os partidos políticos portugueses concorrem a eleições, fazem-no através da apresentação de listas de candidatos cuja ordenação é rígida. O eleitor escolhe a lista do partido que prefere, mas nada pode fazer para alterar a ordenação dos candidatos na lista.
Na Europa, o sufrágio de lista é esmagadoramente maioritário, e compreende-se que assim seja, pois esse é um dos componentes necessários dos sistemas eleitorais que tendem a assegurar uma maior proporcionalidade da representação política. Mas, em muitos países, para além de votar na lista de um partido, o eleitor dispõe também de um ou mais votos para atribuir aos seus candidatos preferidos nessa lista, podendo assim interferir na respectiva ordenação. Deste modo, ele não está somente a escolher um partido, mas também os que considera serem os melhores candidatos desse partido. Não escolhe apenas uma força política, mas também pessoas, personalidades.
Em Portugal, onde se usa um sistema de listas fechadas e bloqueadas, um eleitor ao votar num partido aceita inevitavelmente a ordem dos candidatos que lhe é proposta na lista (e os eleitos, não esqueçamos, são apurados pela sua ordem na lista). Noutros países, dá-se maior poder aos eleitores, permitindo-se-lhes fazer uma escolha intra-partidária dos melhores candidatos e alterar a sua ordem na lista em que concorrem. É a isso que se chama voto preferencial e pratica-se, com diversas nuances, na Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Grécia, Holanda, Hungria, Islândia, Itália, Lituânia, Noruega, Polónia, República Checa e Suécia. Obtém-se assim uma maior personalização dos mandatos e uma maior responsabilização dos eleitos perante os eleitores. Não resolve todos os problemas da representação política, mas ajuda a atenuar alguns, e é óbvio que dá mais peso ao eleitorado.
Quanto à chamada disciplina de voto, que obriga deputados e autarcas a votarem de acordo com as instruções recebidas dos directórios partidários ou das chefias de bancada, considero-a um dos maiores males da nossa democracia. Ela viola o artigo 155º da Constituição, que determina que o deputado exerce livremente o seu mandato; e fá-lo violar a sua consciência e até a sua competência técnica, fazendo-o pronunciar-se contrariamente ao que pensa ou sabe. Por isso, na pior das hipóteses, ela deveria constituir uma excepção em prol da governabilidade (admissível talvez em matérias como o Orçamento do Estado, as moções de confiança e de censura ou o Programa de Governo) e não uma regra.
A disciplina de voto tem vários efeitos muito perniciosos: arregimenta os deputados da maioria parlamentar como uma claque subserviente ao Governo e, como tal, impede qualquer controlo e fiscalização eficaz deste pelo Parlamento, ao contrário do que é pressuposto pelos próprios fundamentos da teoria democrática; favorece a corrupção política e os abusos de poder, e dá-lhes cobertura; impede a livre expressão de opiniões por aqueles que foram mandatados para nos representar; torna rígida e monolítica a maioria parlamentar, e por vezes a própria oposição, inviabilizando qualquer debate sério; subverte a separação de poderes, colocando o Parlamento sob o jugo do Governo, através de uma maioria dócil e controlada; afasta do jogo político os mais competentes, em proveito dos meros sequazes dos líderes, e leva a colocar a lealdade incondicional acima da própria competência para o desempenho dos cargos. Et cetera.
Há vozes que se levantam contra ela nos vários partidos, mas que são sufocadas pelas claques instaladas no poder. Compete-nos, fora dos partidos, dar também expressão a mais este combate pela racionalização do sistema político. Não estaremos sozinhos.