quarta-feira, 21 de agosto de 2002

Esquerda e direita

Se subsiste hoje uma diferença residual entre “esquerda” e “direita” na política, ela é mais fácil de descortinar nas posições extremas dos partidos que ocupam as franjas do espectro ideológico. Quanto aos maiores partidos, os que em geral disputam mais directamente o poder e que dependem, para o alcançar, de aliciar o eleitorado do “centro” (essa massa crítica de independentes e indecisos que ninguém sabe exactamente como caracterizar e que geralmente decide o vencedor das eleições), os pontos de contacto são evidentes.

Desde que o socialismo democrático abandonou a inspiração marxista e as correntes neoliberais se distanciaram das teorias do Estado mínimo, já quase ninguém entre os partidos moderados coloca em causa a necessidade de regulação da economia pelo Estado e o imperativo ético de pôr em prática programas vastos de protecção social. O que se discute é até onde deve ir essa regulação e como deve ser feita, bem como a natureza e montante dos benefícios a conceder aos mais desprotegidos na sociedade. Ou seja: todos reconhecem ao Estado uma vocação dupla, simultaneamente reguladora e proteccionista.

O mundo real dá também a sua contribuição para a aproximação pragmática entre as teses partidárias, já que os problemas de fundo, quando encarados de um ponto de vista essencialmente técnico, forçam os especialistas a ultrapassar as bagarras doutrinárias e a ir buscar aos conhecimentos académicos as soluções mais recomendáveis. Os fundamentos comuns da formação técnica tendem, até certo ponto, a esbater as divergências ideológicas, embora sobre alguma margem de manobra para a hierarquização de opções possíveis e prioridades. Como efeito perverso, pode mesmo a ideologia sobrepor-se à objectividade e ao cariz técnico das questões, mas creio que é mais frequente acontecer o contrário: que o distanciamento ideológico seja atenuado ou até obliterado pela convergência de pontos de vista que tende a ser produzida por conceitos comuns e por instrumentos de análise técnica partilhados.

Na realidade, acontece amiúde que os eleitores não se apercebam de qualquer reviravolta ideológica na condução dos assuntos governativos, sempre que a alternância democrática produz uma substituição dos partidos no poder. Durante as campanhas eleitorais, a retórica panfletária difunde a mensagem de que existem diferenças abissais no modo de conduzir as coisas públicas; mas quando os eleitos são obrigados a enfrentar os dossiers e as questões reais, a perspectiva que domina é geralmente a tecnocrática. E como todos os governos tendem a ser cada vez mais tecnocráticos, nesse bom sentido, por imposição das próprias circunstâncias em que decorre a acção governativa, o que inevitavelmente os faz assemelhar-se entre si, são obrigados a revirar as gavetas das velharias ideológicas para se distinguirem artificialmente na sua luta pelo poder, mais do que no exercício dele.

São esses factos que levam muita gente a questionar-se se ainda existe algum fundamento sólido na tradicional distinção entre esquerda e direita, algo mais do que um hábito teimoso ou uma convicção cega. De facto há, pois as tradições políticas não são inofensivas, mas para as compreender é necessário saber distinguir entre preconceitos e propensões.

Entre os preconceitos, encontramos a ideia arreigada de que a “direita” defende o capitalismo selvagem, as organizações religiosas, os grandes interesses económicos e a prepotência dos patrões, e que é à “esquerda” que cabe o papel de defensora da regulação da economia pelo Estado, do laicismo e independência deste, da salvaguarda dos direitos dos trabalhadores e do alargamento dos esquemas de protecção social. Ora não há nada, nos tempos de hoje ou na história recente, que confirme isto claramente: “esquerda” e “direita” são obrigadas a entender-se para quase todas as reformas constitucionais, que exigem votações por maioria qualificada, e no resto e de facto limitam-se a discutir, de forma artificialmente acirrada, as modalidades e os graus de intervenção do Estado e os detalhes polémicos da concertação social, ao mesmo tempo que ambas pactuam a seu modo com as instituições religiosas, os sindicatos, as associações patronais e outras organizações, disputando entre si o controlo dos diversos lobbies. Em todos esses aspectos, a diferença entre “esquerda” e “direita” não é de género, é de estilo ou de eficácia.

Mas restam as propensões, e é aqui que bate o ponto. As tradições, os preconceitos, os sectarismos, as alianças duradouras ou preferenciais, todos estes factores contribuem para criar nos vários partidos certos tiques característicos, certas orientações dominantes que se traduzem na prática em probabilidades de actuação ou em clichés programáticos. Independentemente do que prometam nas campanhas eleitorais ou do que esteja ao seu alcance fazer no exercício concreto do poder, acreditamos saber à partida o que podemos razoavelmente esperar deles, devido às suas tendências intrínsecas.

À esquerda, encontramos geralmente uma linguagem mais populista e mais virada para a promessa fácil, uma ambição desmedida de distribuir benefícios sociais a qualquer preço, sejam quais forem os recursos efectivamente disponíveis; uma indisfarçável necessidade de aumentar os impostos e taxas, para financiar os novos programas mais ou menos indiscriminados de protecção social, demagógicos e permeáveis ao abuso; a retórica de um crescendo de direitos e garantias que amiúde nem sequer tem contrapartida nas reais e imediatas necessidades das pessoas; uma pressão sistemática para o aumento irrealista dos salários e das pensões; uma falta de sensibilidade e uma hostilidade crónicas para os mecanismos espontâneos do mercado e para a filosofia empresarial; uma tendência irresistível para a sobrecarga fiscal e para os ataques ao património e aos rendimentos elevados; e em política externa, um alinhamento preferencial contrário aos interesses ocidentais, em prol de uma visão terceiro-mundista das relações geoestratégicas.

À direita, predomina uma linguagem mais centrada na responsabilidade das promessas e nos equilíbrios colectivos; uma visão gradualista do crescimento dos benefícios sociais, ajustada ao ritmo do crescimento económico; uma assumida preferência pela contenção fiscal ou mesmo pela redução dos impostos directos; uma noção bastante mais moderada quanto à dimensão desejável da administração pública; uma hostilidade ao intervencionismo desmedido do Estado e aos excessos de regulamentação e burocracia; uma maior confiança, não raro exagerada, no bom funcionamento e nos resultados dos mecanismos de mercado; a moderação do crescimento salarial e a defesa apaixonada da produtividade; uma maior sensibilidade para os factores de sobrevivência e de competitividade internacional das empresas, nem sempre acompanhada por igual sensibilidade para as dificuldades reais das pessoas em tempos de crise; uma fé imoderada no credo empresarial e nas novas modas da gestão; e na política externa, um alinhamento quase incondicional pelos interesses ocidentais e, dentro destes, pelos da zona económica a que se pertence.

No entanto, se tivesse que reduzir estes vários aspectos a uma dicotomia mais simplista, diria que o ponto de vista da “esquerda” se centra no avanço rápido das chamadas “conquistas sociais”, sem olhar muito àquilo que o sistema económico pode realmente suportar; e que o ponto de vista da “direita” privilegia a preservação dos equilíbrios básicos da economia, a ela subordinando o progresso dos diversos benefícios e regalias, assim como o dos rendimentos do trabalho. É óbvio que a relação que há entre estes pontos de vista é aproximadamente a mesma que existe entre a demagogia e o realismo, e por essa razão a “esquerda” há-de sempre ostentar uma aparente e aliciante superioridade ideológica sobre a “direita”, apesar de ser quase sistematicamente esta que vence no cômputo das realizações práticas, numa perspectiva de longo prazo.

Devemos porém resistir a simplificar demasiado a questão. A experiência tem demonstrado sobejamente que o facto de um partido se situar num dos lados do espectro partidário típico não significa obrigatoriamente que, uma vez no exercício do poder, se disponha a promover de uma forma predominante ou exclusiva as políticas tradicionais desse lado do espectro. O pragmatismo do poder impõe muitas traições ao fundamentalismo dos princípios, de um lado e de outro.