domingo, 11 de agosto de 2002

Ser de esquerda, ontem (carta aberta a Mário Soares)

Para começar, não é verdade que os valores éticos e políticos, na sua essência, não mudaram. Podem alguns, ao longo do tempo, ter-se mantido relativamente estáveis na sua roupagem retórica, mas quase todos tiveram de evoluir na sua expressão prática. Os valores são factos sociais e todos os factos sociais estão actualmente sujeitos a rápida evolução. O ritmo apressado da História não perdoa. O problema está em que há pessoas que ficam agarradas ao fascínio retórico e aparentemente humanista de certos valores e perdem a noção da sua evolução semântica, da sua mudança de conteúdos, da sua inflexão de sentido; outras há que não perdem tal noção pela simples razão de que, cristalizados no idealismo ético de uma certa época, nunca chegam a adquiri-la.

Sou dos que acreditam que ainda subsiste uma diferença residual entre “esquerda” e “direita” na política. Mas também reconheço que essa diferença não está onde habitualmente a apontam, pelo que se torna necessário combater ideias anacrónicas.

Em abono da verdade, sublinhe-se que muitos dos valores que a chamada “esquerda” continua a reivindicar como fazendo parte da sua identidade própria formam hoje um substracto comum a todos os grandes partidos. Acreditar no progresso e na possibilidade de transformar o mundo para melhor, reparar as injustiças e desigualdades humanas, a liberdade, a solidariedade, a igualdade de oportunidades, a justiça social, o laicismo do Estado, a concertação social, as conquistas básicas do movimento sindical, a defesa do ambiente e dos equilíbrios ecológicos, a previdência social, a luta em favor dos excluídos, a democracia representativa e a participação directa dos cidadãos na vida política, o direito à diferença, a liberdade sexual, a defesa dos direitos das minorias, o estímulo ao associativismo – tudo isto e mais qualquer coisa pode ser encontrado nos textos programáticos e na acção política dos partidos de todos os quadrantes do espectro ideológico das sociedades ocidentais. Se são estas as referências que ainda caracterizam a “esquerda”, então já nada a individualiza.

Ah! Falta acrescentar certos imperativos puramente éticos? Pois acrescentem-se “os valores de devoção à coisa pública e ao bem comum, da estrita moralidade política e individual, do serviço público em favor da comunidade, da boa governação em benefício dos mais desfavorecidos, da generosidade e da solidariedade.” Por que não? Toda a gente subscreve, sem excepção. “Não são valores exclusivos da esquerda, obviamente”. E para sermos mais precisos, não há sequer quem conteste que a boa governação – que deve afinal ser feita em benefício de todos, visto que todos devem ser cidadãos de primeira, e não apenas em benefício dos mais desfavorecidos – deve exercer alguma discriminação positiva em favor destes, através dos programas de protecção social e de outras medidas que diminuam a diferença relativa de rendimentos entre os estratos sociais.

Quanto a isso, estamos todos de acordo. Porém, se existem diversos partidos políticos, é porque há algumas linhas de demarcação que têm a ver com a expressão concreta dos valores, dos interesses, das ambições e dos projectos. E a questão coloca-se cada vez menos no terreno das ideologias, não porque estas tenham entrado todas em colapso, mas porque as sobreviventes em grande parte convergiram. Curiosamente, começaram por convergir sobretudo na retórica, mas acabaram por fazê-lo também nos princípios. Como consequência inevitável, as diferenças partidárias que hoje subsistem têm muito maior relevo no campo pragmático do que no campo ideológico; neste, tornaram-se de tal modo subtis que escapam à maior parte dos observadores comuns. De facto, os partidos distinguem‑se hoje muito mais pelo estilo e pela orientação das respectivas lideranças do que pelos ditames de qualquer ideologia.

Mas a questão não acaba aqui. Se “a primeira e mais importante obrigação de uma esquerda moderna é redefinir-se, sem ambiguidades, perante a globalização que temos”, então acrescentarei que estamos todos condenados a ser de “esquerda”. Tomar posições perante a globalização tornou-se inevitável para todos os partidos, seja qual for a sua orientação dominante, porque a globalização se tornou um facto político incontornável. Grande parte dos programas de acção dos partidos tem de ser pensada em função dela ou arrisca-se a não ser credível. E se esta que temos é desregulada, selvagem e predadora, como todos os quadrantes reconhecem, devido à escassez de instituições globais ou supranacionais com capacidade para regulá-la, a globalização alternativa e ética que se pode desejar está certamente também na mira de todos, embora inevitavelmente sob diferentes versões.

Infelizmente, ficamos sem saber em que é que a versão da “esquerda” difere das outras. A impressão omnipresente que nos fica é que o assunto, de tão recente que é nas suas mais graves implicações (ou, pelo menos, na intensidade delas) apanhou muitos dos líderes e ex-líderes políticos impreparados para lhes propor soluções exequíveis e com contornos bem definidos. Modestamente, arrisco dizer que o panorama não é melhor à esquerda do que à direita e que ao centro é semelhante. De maneira que também não é por aí que nos podemos esclarecer sobre o que hoje diferencia a “esquerda”, pois não é o vazio ou a retórica das preocupações que sugere rumos à política partidária.

Agradecemos o esforço, Dr. Mário Soares, mas ficámos na mesma.

(Réplica ao artigo de Mário Soares “Ser de esquerda, hoje” publicado em 03/08/2002 no semanário Expresso.)