segunda-feira, 2 de dezembro de 2002

A fiscalização do governo

Um facto reconhecido por muita gente como óbvio é que o Parlamento não fiscaliza adequadamente o Governo. E não o faz, pelo menos, sob dois aspectos cruciais: quanto à sua vinculação ao programa com que os partidos vencedores se apresentaram ao eleitorado; e quanto ao cumprimento das regras orçamentais.

Que um partido ou uma coligação convertidos a governo possam arbitrariamente quebrar as suas promessas eleitorais, não apenas por omissão, mas fazendo exactamente o contrário daquilo que prometeram, pode parecer coisa de pouca monta que não mereça mais do que o inevitável arrazoado jornalístico. Mas é, de facto, um fenómeno grave: significa que a mentira e a fraude são aceites como legítimas para ganhar eleições, que vale tudo para captar votos e que, afinal de contas, na democracia não se votam realmente ideias e projectos, mas apenas pessoas e partidos. O que perverte a natureza do regime e transforma o exercício do voto numa mera prática referendária para a escolha dos líderes – portanto, algo próximo do plebiscito.

Se os partidos vencedores não ficam vinculados aos seus programas eleitorais, então estes não servem rigorosamente para nada – a não ser para aliciar os incautos. Para o país, no entanto, o que mais interessa são as reformas e as contra-reformas que os futuros possíveis governos se propõem executar, e não os nomes e rostos de quem as concretizará ou de quem as deixará por fazer.

Quanto ao orçamento do Estado, é certo que em boa parte ele se baseia em meras previsões de receitas e despesas, e que prever fluxos financeiros não é a coisa mais fácil deste mundo. Mas há regras mínimas de rigor e de equilíbrio que devem ser obrigatoriamente respeitadas, sob pena de se cair na quase discricionariedade e de a aprovação parlamentar do orçamento não passar de um espectáculo anual de circo que anuncia a proximidade das festas natalícias, período em que os espíritos e os cordões das bolsas andam mais soltos. Mas com a importante diferença de, para o Governo e as autarquias, passar a ser Natal durante o ano inteiro.

Quais as soluções para moralizar a vida política nestes dois aspectos?

O único crivo político que pode actuar regularmente contra a fraude governativa é o Parlamento. É a ele que cabe o principal papel fiscalizador e essa é uma das suas funções fundamentais.

Por um lado, é indispensável que as coligações ou os partidos vencedores fiquem juridicamente vinculados aos seus programas eleitorais de governo e que não disponham da possibilidade de os violar arbitrariamente. Todos os actos governativos que sejam contrários ao programa sufragado, ainda que sejam da competência exclusiva do Governo, deveriam carecer de autorização parlamentar, de modo que só a possa o poder executivo obter com carácter excepcional e invocando alteração das circunstâncias.

Por outro lado, quanto ao cumprimento das regras orçamentais, é necessário, para além da efectiva fiscalização sobre o poder executivo, tipificar e criminalizar as diversas infracções que possam ser cometidas, desde as ligeiras e negligentes até às graves e dolosas. E depois disso, como corolário, é indispensável que a justiça seja aplicada. Se é levado a tribunal quem é apanhado a roubar uma carteira, como pode safar-se tão tranquilamente quem rouba ou burla um país inteiro? Enquanto houver impunidade, não haverá maneira de pôr ordem duradoura nas finanças públicas, onde a parcimónia de uns só consegue alimentar involuntariamente o despesismo de outros.

Contudo, a criminalização das infracções orçamentais só tem efeitos “a posteriori”, o que significa que funciona como ameaça dissuasora. Mas no que respeita à actuação específica dos governos, só a fiscalização em tempo útil permitirá evitar desmandos graves e défices perigosos.

Podem agora objectar-me: mas como pode o Parlamento fiscalizar o Governo, se os deputados da maioria não dispõem de independência política e estão submetidos à disciplina de voto?

Boa pergunta! Mas não é preciso muito esforço para adivinhar qual será a resposta: banir da actividade partidária a obrigatoriedade da disciplina de voto, proibindo-a na própria Constituição, e assegurar métodos de democracia interna na escolha dos candidatos a deputados, obrigando a que estes sejam eleitos em vez de designados.