terça-feira, 3 de dezembro de 2002

A inconstitucionalidade da disciplina de voto

Começo por propor à doutrina jurídica uma distinção conveniente entre duas formas de inconstitucionalidade material das leis.

Chamemos inconstitucionalidade primária àquela que resulta de uma norma ou procedimento afrontar directamente um preceito constitucional, violando-o de forma óbvia através do próprio fim ou resultado pretendido. E considere-se que enferma de inconstitucionalidade secundária uma norma ou procedimento que, não contrariando pelo seu conteúdo expresso os imperativos constitucionais, produz no entanto, como resultado normal da sua aplicação, ainda que não pretendido, efeitos contrários ou diversos daqueles que a Constituição visa consagrar ou proteger.

Pode-se desde logo questionar se a disciplina de voto imposta pelos partidos políticos aos deputados parlamentares não constitui uma violação primária da natureza do voto, que a Constituição considera como um direito pessoal. Ser alguém coagido a votar contra a sua consciência, independentemente de qual o seu estatuto, quando é sua a titularidade do direito de voto, não é apenas imoral; pior do que isso, é uma aberração.

Sendo cada deputado membro dum órgão de soberania, como o é o Parlamento, segue-se que a imposição de uma disciplina de voto – que constitui para ele uma obrigação atribuída do exterior, e não uma mera recomendação, visto que a inobservância é sujeita a sanções – constitui afinal uma transferência sub-reptícia da soberania do Parlamento para os partidos políticos. Fica-se o Parlamento por uma soberania aparente, mas detêm os partidos a soberania real, visto que são eles que determinam de fora as decisões que hão-de ser tomadas lá dentro. Ora o Parlamento deve ser o órgão que efectivamente detem a soberania (isto é, a parte dela que lhe é constitucionalmente atribuída) e não apenas o local onde tal soberania é formalmente exercida, através de mandatários fiéis, por organizações políticas que lhe são exteriores.

Este é um exemplo de inconstitucionalidade secundária. Em nenhum local vem escrito que a soberania reside nos partidos políticos, que a exercem conjuntamente num local chamado Parlamento. A Constituição não é expressamente violada em nenhuma das suas partes, mas o resultado de tal prática é estranho ao que a lei fundamental dispõe.

Há outros resultados igualmente perversos.

Através da disciplina de voto, o chefe do Governo, sendo também o líder do partido maioritário ou da coligação vencedora, controla – directa ou indirectamente – o comportamento parlamentar dos deputados eleitos pelas listas do seu partido ou coligação, mantendo-os sob tutela. E assim, aqueles que constituem a maioria de um órgão que deveria controlar e fiscalizar o Governo, como preceitua o nosso ordenamento político, são afinal controlados e fiscalizados por ele.

O próprio presidente da Assembleia da República, considerado a segunda figura na hierarquia do Estado, ao ser membro do partido dominante no Governo, como geralmente acontece, fica subordinado à disciplina de voto que lhe é indirectamente imposta pelo líder do seu próprio partido, ou seja, o primeiro-ministro, que é apenas a terceira ou quarta figura da hierarquia do Estado, consoante os purismos protocolares que convenhamos adoptar.

Os próprios deputados, que constitucionalmente representam todo o país (e não, como vulgarmente se julga, o círculo por onde são eleitos) ficam reféns das orientações desses segmentos ideológicos do país que são os partidos políticos, que se arrogam estatutariamente o direito de transformá-los em moços-de-recados detentores de habilitações em excesso (valha a verdade, as intervenções parlamentares ditadas pela ortodoxia partidária e o esforço de levantar o braço ou premir um botão para exercer o voto não exigem desempenhos brilhantes). Mas a dignidade do Parlamento aos olhos do país ressente-se disso, assim como a própria imagem dos políticos. E não podemos censurar as opiniões perigosas que, por causa disso, consideram que a democracia é uma palhaçada.

Convém frisar que os partidos políticos são apenas associações que concorrem para a formação do poder político, mas que não são a fonte dele. Pelo menos, é o que diz a Constituição. Ora parece que andam por aí espalhadas algumas confusões acerca da origem da soberania e sobre quem tem o direito de exercê-la.