quinta-feira, 23 de dezembro de 2004

A obsessão do défice

São espantosos os resultados a que o fervor ideológico pode conduzir. Na América, a nova ortodoxia religiosa pretende fazer tábua rasa de quase dois séculos de avanço científico e regressar aos dogmas do criacionismo, suprimindo dos manuais escolares quaisquer referências a Darwin e à teoria evolucionista. Na Europa, um vento de ortodoxia sopra também nas teorias financeiras em voga, vituperando qualquer défice orçamental como um pecado em si mesmo e fazendo de conta que Keynes nunca existiu.

O que não deixa de ser curioso. Durante décadas, ensinou-se nas universidades, e de um modo geral em qualquer curso roçando ao de leve a economia política, que o recurso ao défice orçamental era um instrumento possível e útil no combate à recessão ou à estagnação económicas. Contra-indicado em períodos de forte e espontâneo crescimento económico ou no cenário de significativas tensões inflacionistas, era uma terapêutica recomendada para sair de depressões ou para enfrentar ameaças delas. É certo que entretanto o remédio ganhou má fama pelos exageros do seu uso e pelo modo indiscriminado como foi administrado; mas o seu princípio activo não deixou de ser eficaz. Seja como for, conjugam-se agora inúmeras forças para bani-lo do receituário.

Hoje em dia, em certos quadrantes do pensamento económico, Keynes passou a ser tão proscrito como Darwin na biologia. De um momento para o outro, segundo parece, alguém se lembrou de estatuir que qualquer destes génios só disse asneira e que as suas teorias estão desajustadas aos factos, embora não desmentidas por eles. E a partir daí, com zelo escolástico e ecoando fortemente na imprensa, não mais deixaram de se entoar loas ao equilíbrio orçamental nas contas públicas, como se essa fosse a verdadeira e única panaceia universal.

Mesmo perante as evidências, muitos economistas encartados se recusam a reconhecer que retracções bruscas na despesa pública em clima de depressão económica só podem contribuir para agravá-la. Não adianta argumentar. O célebre Pacto de Estabilidade e Crescimento que os líderes europeus inventaram ainda em período de vacas gordas, sem preverem que ele podia ser absolutamente inadequado e contraproducente no período de vacas magras que lhe iria suceder, continua a ser a cartilha de todas as virtudes. E olham-se como consequências do défice orçamental todos os efeitos perversos que resultam do próprio combate ao défice. Este atingiu tal paranóia obsessiva e um grau tal de dogmatismo que a ele se sacrificam o emprego, o crescimento, a saúde das empresas e o progresso dos particulares.

Resta aguardar por outra vaga de ortodoxia que um dia nos explique, preto no branco e com o mesmo tom de convicção, que tudo isto não passou de um enorme disparate. Esse dia virá, não sei é quando. Mas seria bom que fosse depressa.