domingo, 19 de dezembro de 2004

Duas tradições políticas: utopismo e reformismo

Podem descortinar-se duas tradições distintas na história política e doutrinária do Ocidente, a que por simplicidade (e simplificação grosseira) chamarei utopismo e reformismo.

O utopismo, apesar das suas múltiplas variedades e ramificações, radica na ideia matriz de que é possível conceber intelectualmente e implantar socialmente uma qualquer forma de comunidade perfeita, baseada em leis e instituições racionais. Uma tal racionalidade intrínseca retiraria substância e fundamento a quaisquer conflitos civis, quer entre os próprios cidadãos, quer entre estes e as instituições. A resultante necessária só poderiam ser a harmonia social e um estado de paz geral, já que a racionalidade pressupõe a justiça, o respeito dos direitos individuais e a ausência de corrupção no exercício de um poder legítimo.

O reformismo parte de pressupostos diferentes: a racionalidade humana é limitada e, por esta e por diversas outras razões, conflituante; aos princípios e aos valores, os indivíduos frequentemente sobrepõem os seus egoísmos e interesses pessoais; desta divergência de premissas e objectivos resulta um estado crónico de conflito, latente ou manifesto, que as instituições podem lograr amortecer ou civilizar, mas não suprimir; e os própios poderes de facto na sociedade são facilmente permeáveis à corrupção e aos excessos de ambição, pelo que raramente se pode esperar deles uma actuação à altura dos cânones doutrinários.

Estas duas visões têm importantes consequências teóricas e práticas. O que não é de admirar, pois a cada uma delas subjaz uma diferente concepção do homem.

O utopismo apoia-se na noção de um homo rationalis, mas não tem geralmente a pretensão de que cada exemplar da espécie corresponda integralmente a este ideal. São admitidos diferentes graus de racionalidade, conforme a diversificação que é comum na natureza, e por isso caberá naturalmente aos mais dotados inteligir ou estabelecer os própios padrões do pensamento e do comportamento racionais, assim como delinear as instituições desejáveis e exercer o poder que lhes é inerente. Ora isto conduz em linha recta à ideia de uma aristocracia necessária, e ainda por cima de uma aristocracia de privilégio, visto que o seu direito à pilotagem da sociedade deriva de uma inquestionada superioridade intelectual.

Como se admite que a racionalidade pode ter diferentes graus, base de uma indispensável estratificação social, mas não manifestações divergentes entre si, fermento de facções e conflitualidades, disso se extrai que não há razão para uma diversificação das fontes do poder. Se a razão é una, o poder deve ser uno também. E como, em princípio, nada de válido se pode opor à razão, não sobra fundamento para a instituição de contrapoderes. Por tudo isto somado, a tendência dos utopistas sempre foi para a concentração autoritária do poder.

É fácil de perceber que a este poder concentrado está associada uma presunção de ciência e infalibilidade para aqueles que exercem o poder; e qualquer oposição que por absurdo pudesse despontar teria ab origine o anátema do desvario ou do obscurantismo, justificando a sua posterior submissão pela persuasão ou, se necessário, pela repressão, visto que se pode considerar que é também um dever da razão erradicar o obscurantismo, seja qual for a forma por que se manifeste.

Racionalidade, infalibilidade, concentração, jurisdição sobre os actos e as consciências, legitimidade na supressão dos antagonismos: eis aqui reunidos os principais ingredientes de um poder totalitário. Este surge quase como a consequência natural das radicais exigências da razão. Dada a infelicidade de as capacidades racionais não estarem igualmente repartidas entre os indivíduos (caso contrário, a sociedade ideal seria de geração espontânea), deve a razão impor-se contra todas as resistências, contra todos os focos de irracionalidade, e só pode fazê-lo se estiver investida de uma autoridade total. Uma autoridade mitigada não poderia impedir a subsistência ou a explosão de variadas formas de irracionalidade e imperfeição para que tendem os indivíduos comuns. Como corolário, a sociedade perfeita não pode brotar senão de um poder forte, autoritário, abrangente, ubíquo, exercido pela clarividência de uma elite dotada. E tão importante como isso, não pode ser uma sociedade aberta a influências estranhas, pertubadoras, imprevistas, que ponham em causa o seu delicado equilíbrio. Deve ser, pelo contrário, uma sociedade fechada à novidade e à heterogeneidade, uma sociedade privada da liberdade de mudar e até da própria liberdade de conhecer o que lhe pudesse originar o desejo de mudar, visto que a única mudança a partir do racional só pode ser a degenerescência sob qualquer forma. Utopismo e liberdade são portanto incompatíveis.

O reformismo, pelo contrário, apoia-se na noção do homo pragmaticus, que procura difíceis e fortuitas convergências entre os princípios e os interesses, entre a racionalidade e os egoísmos, e que engendra múltiplas concepções da acção desejável e das instituições adequadas para harmonizar os conflitos daí resultantes. Só que tal harmonia já não é procurada na perfeição racional, na pureza dos ideais e dos valores, mas nas soluções de compromisso capazes de gerar equilíbrios duradouros. A fasquia não é colocada no ideal, mas na linha média entre o desejável e o possível.

Não existindo um só padrão de racionalidade e aceitando que a história deu sobejos exemplos de que as diversas racionalizações possíveis da realidade nem sempre se conformam com as lições da experiência, a visão reformista abre-se à diversidade das perspectivas, dos valores, das soluções. Aceita a diversidade como um fenómeno natural e acredita que ele seja um factor de aprendizagem e de progresso.

Ora a existência desta diversidade amplamente aceite postula que o confronto de ideias e de tendências tenha o seu lugar, a sua utilidade e a sua justificação. A heterogeneidade é criativa, através da crítica recíproca ou da simbiose, enquanto que a homogeneidade paralisa. Mas isso implica liberdade e tolerância, não a imposição de um padrão uniforme de pensamento e de actuação.

Também a aceitação lúcida das naturais limitações e perversões do comportamento individual tem as suas consequências. A existir uma aristocracia, tem de ser fundada no mérito e não no privilégio, visto que em ninguém se presume a clarividência e esta, mesmo quando exista, é indemonstrável. E às limitações das elites dirigentes deve corresponder uma saudável limitação do poder, em termos absolutos e relativos. Isto é: devem existir poderes, e não apenas o Poder -- poderes separados, mas interdependentes; restritos, mas contrabalançando-se mutuamente; somando à delimitação pela lei da sua esfera de acção a acção fiscalizadora de contrapoderes adequados para prevenir ou sancionar abusos.

O reformismo compatibiliza assim a ideia de uma liberdade necessária com a da própria limitação do poder. A trajectória resultante não será a da sociedade ideal, mas é a da sociedade composta pela simbiose possível dos seus elementos heterogéneos, cuja diversidade assegura um progresso talvez mais lento do que a razão pode aspirar, mas mais seguro, tanto quanto a realidade prática pode suportar em quantidade e em ritmo.